Os ambientalistas não gostam de escolhas conflitantes. Criticam a falta de empenho na defesa do Protocolo de Kyoto, mas calam-se sobre o esvaziamento da matriz hidrelétrica renovável, construída ao longo de 50 anos.
Em um país detentor de 13% da água de superfície do planeta, é natural que os governos optem por hidrelétricas para gerar energia em larga escala desde a década de 1950. Do ponto de vista da economia, as hidrelétricas estão perto do paraíso: graças às quedas d’água e ao seu armazenamento em reservatórios, produzem fluxos de energia estáveis, firmes e contínuos, estocam recursos que podem ser liberados na estiagem, ajudam a controlar cheias e otimizam a irrigação. Do ponto de vista da engenharia, as empreiteiras não pagam royalties, dominam a tecnologia de construção, erguem usinas em vários países e são capazes de fazê-las no mais rigoroso estado da arte ambiental – quando isso é determinado.
Do ponto de vista ambiental, mesmo as pequenas centrais hidrelétricas barram rios com muros de concreto, prejudicam os peixes e a biodiversidade, inundam terras e florestas e deslocam populações, para ficar apenas com os impactos mais conhecidos. Mas, como o interesse maior da sociedade acaba sobrepondo-se ao das populações afetadas (que podem ser indenizadas), poucas grandes oportunidades de geração hidrelétrica deixam de ser aproveitadas.
Graças à água que move turbinas, sem combustão, o Brasil dispõe de uma das matrizes renováveis mais limpas existentes: 70% da eletricidade que consumimos provém de hidrelétricas e 9%, de biomassa e de usinas eólicas e solares. Ocorre que não é possível atender à demanda intensiva de energia usando só biomassa, sol e vento. Além de sazonalidade do ciclo da cana-de-açúcar, a intensidade da energia produzida nas usinas eólicas e solares é fraca e intermitente, pois não venta nem faz sol regularmente o tempo todo. As fontes alternativas são ótimas para complementar um sistema, mas não para estruturá-lo.
Considerando as opções de energia “firme” disponíveis – gás, petróleo, carvão e nuclear –, todas fósseis e não renováveis, e o crescimento desejável da economia (que precisa incluir mais gente), deveríamos barrar todos os rios para atender à demanda? Não, é claro que não. Só se a sociedade desistisse de definir o seu destino e se entregasse ao mercado. Mas nas democracias não costuma ser assim.
Para evitar os alagamentos, sobretudo nas terras planas da Amazônia, o setor inventou as “turbinas a fio d’água”, movidas apenas pela força da corrente, com reservatórios pequenos, como em Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, e em Belo Monte, no rio Xingu. Com a inovação, cedeu às críticas ambientais, reviu os projetos e inundou menos áreas. Mas perdeu a capacidade estratégica de estocar energia em forma de água, que regula todo o sistema.
Não é por outra razão que o mercado voltou a pressionar para a retomada da construção de hidrelétricas com reservatórios. Têm sido frequentes as manifestações a respeito. Curiosamente, do lado ambientalista não se ouve uma palavra de defesa das turbinas a fio d’água. A oposição às hidrelétricas do Madeira e do Xingu permanece inabalável e nem a multiplicação das termelétricas a gás, emissoras de CO2, a perturba.
Os ambientalistas não gostam do dilema das escolhas conflitantes. Criticam a falta de empenho na defesa do Protocolo de Kyoto, mas calam-se sobre o esvaziamento da matriz hidrelétrica, limpa e renovável, construída ao longo de 50 anos com muitos sacrifícios.
Ricardo Arnt é diretor da revista Planeta
FONTE : http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/coluna/286550_TIRO+NO+PE