O encontro dos deuses brasivianos – parte III

Na acepção de se manterem nos seringais do rio Mamu, os milicianos armados que expulsaram os seringueiros brasivianos, e que se intitulavam “zafreros” ou “campesinos”, tiveram a nítida impressão de que estariam definitivamente fixados à terra, e que iriam desfrutar de toda a riqueza natural ali existente.

Rio Mamu – Pando – Bolívia – foto: Marquelino Santana

Na sua grande maioria – os “zafreros” ou milicianos armados – eram provenientes da cidade de Riberalta no Departamento de Beni, e, portanto, não possuíam nenhuma relação com os modos de vida existentes nos seringais brasivianos. Nessa clarividente discrepância entre a cidade e o seringal – no espaço e tempo – os “campesinos” ficaram desabastecidos da alimentação que recebiam dos seus financiadores, e como eram desprovidos da prática das atividades da agricultura de subsistência e dos processos de extração, eles foram cada vez mais tornando-se vulneráveis diante da desmesurada mata.

Como se não bastasse essa conturbada gama de problemas, os invasores ainda tiveram que conviver com as intempéries do tempo e com o surgimento de acontecimentos considerados inexplicáveis, e que segundo eles, a cada dia os deixavam cada vez mais atônitos e estupefatos com o que os “zafreros” denominaram de assombração. Os fenômenos foram acontecendo numa conturbada dissensão entre os deuses e o cotidiano excêntrico dos novos moradores do rio Mamu.

Numa certa noite vários homens saíram para caçar, mas retornaram para casa com profundas cicatrizes no corpo, informando que haviam sido surrados por uma pessoa altamente veloz, de estrutura pequena e muito valente. Certamente eles foram surrados pelo caboclinho-da-mata brasiviano. Na manhã do dia seguinte eles foram informados de que havia um curador numa distante colocação, mas o curandeiro e benzedor não pôde ser encontrado, pois também havia sido expulso por eles próprios. Amedrontadas, as famílias doentes decidiram abandonar os seringais de Pando e retornaram para a cidade de Riberalta.

Rio Mamu – Pando – Bolívia – Foto: Marquelino Santana

O sol causticante perdeu o brilho, e a escuridão assolou os seringais, mas a mãe-da-lua havia saído para um encontro e não pôde ajudar na claridade. As águas do Mamu esmaeceram juntamente com a mata, e o rio ficou estagnado e intrafegável. A mãe-d’água-brasiviana não pode ressuscitar a água visto que estava participando de um encontro; o velho-da-canoa parou de remar, pois decidiu participar também do encontro; o menino-boto espantou todos os peixes e foi chamado para o encontro; as veias das seringueiras secaram, e em vez de leite, jorraram sangue no rio, mas a mãe-da-seringueira não pôde fazer nada, pois também foi convidada para o encontro.

Rio Mamu – Pando – Bolívia. Foto: Marquelino Santana

Os novos moradores do Mamu temendo a funesta e predominante escuridão, resolveram partir para sempre, pois a terra se transformou num pântano de obliteração de vidas. As árvores tombaram funestas, sem galhos e sem flores, mas o pai-da-mata não pôde fazer nada para salvá-las porque estava presidindo um grande encontro: o encontro dos deuses brasivianos.

Por: Marquelino Santana

FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor

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