ANP faz leilão que avança sobre terras indígenas e unidades de conservação

Manaus (AM) e Brasília (DF) – Um dos blocos arrematados pelas empresas Eneva e Atem Participações no leilão da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) na bacia do rio Amazonas na última quarta-feira (13) está sobreposto à Zona de Amortecimento da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uatumã, uma unidade de conservação estadual, e nas proximidades de terras indígenas, nos municípios de São Sebastião do Uatumã e Urucará, a 246 quilômetros e 260 quilômetros de Manaus, respectivamente. O bloco também se sobrepõe aos sítios arqueológicos Ney Duty Almeida Gama, Santa Helena (AM-UR-03) e Ingá (AMUR-04). A Eneva terá 80% de participação e a ATEM, 20%.

Blocos em azul que foram leiloados no dia 13 – Imagem postada em: Amazônia Real

Campo de Japiim, como é chamado, é vizinho do Campo do Azulão, onde a Eneva já realiza operações. A área de gás foi descoberta em 2001 e entrou para a Rodada Zero dos leilões da ANP em 2004. A primeira concessionária foi obtida pela Petrobras, que desistiu de operar. As informações constam em um levantamento do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, do Instituto Internacional Arayara e em um documento conjunto do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Ministério do Meio Ambiente (MMA) que a Amazônia Real teve acesso. Os dois ministérios se posicionaram a favor da exploração. No documento, consta que o Campo de Japiim está localizado “em uma área isolada, em meio à floresta amazônica, próxima apenas ao Campo de Azulão”.

O bloco identificado como JAP_OP foi um dos cinco arrematados no leilão de quarta-feira. Os demais foram AM-T-107, AMT-133, AM-T-63, AM-T-63 e AM-T-64, todos arrematados pela Atem Participações. Estas áreas, sem exceção, interferem em terras indígenas, algumas delas já demarcadas, e unidades de conservação federal, estadual e municipal no Amazonas.

O leilão da ANP foi marcado por protestos de indígenas, especialistas e ambientalistas. O Instituto Arayara e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entraram com uma ação civil pública contestando o leilão. O MPF-AM encaminhou uma recomendação para a exclusão de ao menos quatro blocos que estavam previstos para irem a leilão.

A expansão da exploração de gás e petróleo faz parte dos planos da Eneva de ampliar sua operação na bacia do Amazonas. No Campo do Azulão, localizado em Silves (a 203 quilômetros de Manaus), a exploração é acusada por indígenas e comunidades tradicionais de violar direitos territoriais e de não ouvir as populações locais.

Jorge Barros, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do município de Itacoatiara (a 175 KM de Manaus), afirma que a exploração no Campo de Japiim vai aumentar o impacto e a destruição da região. Ele alertou que o empreendimento está “avançando” sem ouvir as populações impactadas.

Impactos locais

“Os povos indígenas de Itapiranga têm uma comunidade que fica bem à margem do rio Uatumã, a Vila Isabel. A maioria é Mura. A área de uso deles é afetada diretamente pelo bloco Japiim. E a RDS que será impactada é muito grande. Vai chegar até o povo Hyxkariana, em Urucará”, afirmou Barros à Amazônia Real.

O membro da CPT apontou contradições e incoerência do governo brasileiro na sua retórica de proteção da Amazônia e dos povos originários. “Esse leilão ofertado no Campo de Japiim mostra que o Estado não está sendo coerente com seu discurso de comprometimento com a questão ecológica e também com a defesa da vida”, disse.

Em nota divulgada à imprensa, o diretor de exploração da Eneva, Frederico Miranda, afirmou que “a aquisição da área de acumulação marginal de Japiim era um movimento natural da Eneva por ser uma área adjacente ao campo de Azulão e aos blocos exploratórios na região”.

O Campo de Japiim era operado pela Petrobras, que chegou a receber duas licenças prévias, com aval do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão do governo do estado. A Petrobras fez apenas duas perfurações de poços de petróleo e gás e devolveu o bloco. Em 2022, a ANP incluiu o campo no processo de Oferta Permanente de áreas, após aprovação do MME e do MMA. O bloco foi incluído no leilão no item de “acumulação marginal”, que é um lugar inativo onde a produção foi interrompida ou não foi iniciada.

Nicole Oliveira, diretora do Instituto Internacional Arayara, organização que monitora exploração de gás e petróleo no Brasil, afirmou que a área do Campo de Japiim é a mais preocupante dos blocos leiloados na bacia do Amazonas por se tratar de área de extração de gás não-convencional que se utiliza de uma técnica altamente degradante de exploração.

“O fracking é assim: você precisa perfurar repetidamente para extrair a mesma quantidade de gás e isso vai deteriorando a paisagem. Isso me preocupa muito, especialmente em locais arqueológicos importantes, porque mesmo que não ocorra perfuração diretamente nessas áreas, a extração pode se espalhar e, se feita de forma não convencional, pode degradar a floresta, resultando em desmatamento, contaminação e destruição dos sítios arqueológicos”, afirmou Nicole à Amazônia Real.

Conforme manifestação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Amazonas (Sema) e do Ipaam no relatório do Ministério de Minas e Energia e do Ministério de Meio Ambiente, o Campo de Japiim está a 125, 100, 100 e 67 quilômetros, respectivamente, das Terras indígenas Andirá/Marau, Rio Urubu, Paranã do Arauto e Kaxuyana-Tunayana, todas já demarcadas. No entanto, há outras que não estão regularizadas pela Funai, como é o caso de terras do povo Mura.

“Atribuição da ANP”

A área está também a 10 quilômetros e 13 quilômetros de espécies de floras ameaçadas de extinção e a 100 quilômetros do assentamento PDS Amatari, terra quilombola do rio Andirá, entre outras localidades.

Em nota enviada à reportagem, a Eneva afirmou que a região de Japiim está situada no setor SAM-O da Bacia do Amazonas, abrangendo uma superfície total de 52 quilômetros quadrados. Após a quarta rodada da concessão da ANP, a empresa conta agora com três blocos no total, que cobrem mais de 7.000 quilômetros quadrados de área exploratória.

Questionada sobre o Campo de Japiim estar a apenas 10 quilômetros de uma unidade de conservação e nas adjacências de terras indígenas e sobre os procedimentos seguintes em relação ao licenciamento ambiental, a Eneva enviou uma nota dizendo que “atua com total responsabilidade em todas as fases de implantação de seus empreendimentos”. A Eneva também disse que todos os impactos ambientais e referentes à Terras Indígenas são de atribuição da ANP, que já considera esses fatores quando coloca áreas de exploração de petróleo e gás em leilão.

“A empresa se compromete a manter essa linha de transparência e diálogo com as instituições e comunidades durante todas as suas atividades, inclusive no caso da recente aquisição da área de acumulação marginal do Japiim, no Amazonas. A companhia reitera que cumpre rigorosamente leis e regulamentos que permitem contribuir com o desenvolvimento, a preservação ambiental, a geração de empregos e oportunidades, em sintonia com as novas matrizes econômicas reivindicadas para a região”, disse a nota.

A empresa Atem Participações confirmou à Amazônia Real que arrematou os blocos T-63, T-64, T-107 e T-133 com 100% de participação, além de 20% de participação no Campo de Japiim, em consórcio com a Eneva. Sobre a recomendação do MPF do Amazonas, a empresa disse que “não teve acesso ao referido documento e, portanto, não está apta a comentar”.

“Contudo, cumpre esclarecer que todas as áreas ofertadas pela ANP são precedidas de diagnóstico socioambiental sustentadas por manifestação conjunta do Ministério de Minas e Energia e do Ministério do Meio Ambiente, complementadas, por pareceres emanados pelos Órgãos Estaduais do Meio Ambiente, em conformidade com a Resolução CNPE nº 17, de 8 de junho de 2017”, acrescentou em nota.

O Ipaam também foi procurado para informar se iniciará um novo processo de licenciamento após a desistência da Petrobras no bloco e que medidas proporá à Eneva para evitar impactos ambientais, mas não respondeu.

Ameaça às terras Mura

No total, quatro Terras Indígenas e três Unidades de Conservação estão na área de interferência dos cinco blocos arrematados no leilão da ANP desta semana. Ao cruzar dados oficiais do Governo sobre o Leilão dos blocos com informações do Ministério Público Federal, a Amazônia Real identificou algumas das áreas que podem ser impactadas.

Entre elas, estão a Unidade de Conservação APA (Área Proteção Ambiental), do Guajuma, em Nhamundá; APA Adolpho Ducke em Manaus; APA Lago Rei, no Careiro; Reserva de Desenvolvimento Sustentável Sauim Castanheiras em Manaus; RDS Canumã e Terra Indígena Coatá-Laranjal, do povo Munduru, em Borba. Três terras indígenas dos Mura também serão impactadas: Gavião, Ponciano e Sissaíma, todas no município de Careiro da Várzea, e Lago do Marinheiro, no Careiro. Os blocos também alcançarão a Flona Saracá-Taquera em Faro, Oriximiná e Terra Santa, no Pará.

Duas lideranças do povo Mura de Careiro da Várzea ouvidas pela Amazônia Real mostraram indignação e exigem que seu povo seja consultado sobre os impactos da exploração de gás e petróleo. Herton Mura lembrou que Sissaíma fica na cidade onde ele mora.

“Muitos desses blocos estão dentro e próximos das nossas terras. Vão trazer grandes impactos. Vão afetar a vida dos povos indígenas, como é o nosso caso, o povo Mura. Tem o caso dos Mura em Silves, onde a Eneva já está. Tem alguns lotes dentro de terras indígenas do Careiro da várzea, onde eu habito. Isso é preocupante para nós. Não existe uma ação de norteamento para nós e o que está acontecendo é violação da Convenção 169 que nos garante ser consultados”, disse Herton, que é professor e assessor da Organização de Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV).

O líder Diego Mura, da aldeia Guapenu, afirmou que os leilões são retrocessos e as operações resultam em perseguições a quem se contra a exploração de gás e petróleo. “Já estamos na luta contra a exploração de potássio. Agora tem essa outra luta. Isso é crítico e perigoso para futuras gerações, mas estamos atentos e mobilizados para lutar contra retrocesso e ganância. Muitos desses minérios acontecem próximo ou nas terras indígenas. São leilões para invadir a natureza e invadir nossos territórios.”

Ação civil pública

Impactos como estes apontados pelos indígenas foram o motivo pelo qual o Instituto Internacional Arayara, junto da Apib, ingressou com uma ação civil pública contra o leilão a fim de proteger os territórios tradicionais. “É um absoluto contrassenso expandir a exploração petróleo e gás sobre regiões que gozam de proteção ambiental elevada em razão da existência de Povos Indígenas, configurando-se, em razão da sistemática adotada, caso patente de racismo ambiental”, diz trecho da ação conjunta.

A ação civil alerta ainda que “rios poderão ser impactados pelo vazamento de petróleo, e todo o povo indígena sofrerá as consequências nas suas atividades de pesca, colocando em risco sua segurança alimentar e nutricional”. “A atividade humana e tecnológica em território vizinho também pode afugentar a caça e desestabilizar o equilíbrio natural que provê a subsistência desses povos originários. A exploração e o transporte de petróleo pode resultar em degradação ambiental, poluição e acirramento dos conflitos sociais”, diz o trecho da ação.

Na última terça-feira (12), o MPF solicitou à ANP uma manifestação em até cinco dias sobre a exclusão dos blocos que interferem em terras indígenas, seguindo laudos técnicos e recomendações anteriores. O MPF alertou que mesmo quando não diretamente sobrepostos, blocos próximos podem acarretar impactos sociais e ambientais consideráveis.

“As atividades de exploração e produção de petróleo e gás não seriam recomendadas, de modo que suas conclusões estariam sustentadas por consultas públicas envolvendo as comunidades indígenas”, recomenda a laudo técnico produzido pelo MPF em 2021, apontando criticamente riscos ambientais associados à exploração e produção de petróleo e gás natural sobre Terras Indígenas e Unidades de Conservação.

Não é de hoje que o MPF vem se pronunciando sobre os impactos negativos que os leilões trariam para os territórios tradicionais, mencionando inclusive o impacto do encontro das águas. Em 2015, o órgão emitiu uma recomendação para os riscos dos leilões na bacia do rio Amazonas. Na ocasião, Amazônia Real publicou reportagem sobre a inclusão de sete blocos nas proximidades de 15 terras indígenas no Estado do Amazonas. As terras indígenas do povo Mura já estavam no radar dos editais, entre elas Trincheira, Gavião, Sissaíma, São Pedro, Miguel/Josefa e Rio Juma. Naquele momento, os blocos não tiveram interessados.

“Os Blocos que serão ofertados situa-se ao lado da cidade de Manaus, margeando o Encontro das águas dos Rios Negro e Solimões, fenômeno natural tombado pelo seu valor arqueológico, etnográfico e paisagístico”, diz trecho da recomendação do MPF ainda em 2015.

Discurso oficial contraditório

A polêmica desencadeada por esse leilão, conforme especialistas, ressalta um desequilíbrio preocupante entre lucro econômico e preservação ambiental, sobretudo na Amazônia. Em um movimento que contradiz os compromissos da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023, o Brasil persiste no projeto de seguir na rota da expansão do petróleo.

No início de dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ofereceu mais um indício do rumo que o atual governo está adotando em relação à transição dos combustíveis fósseis ao ingressar na Opep+.

Para Nicole do Arayara, do Instituto Arayara, o Brasil sinaliza possíveis entraves na transição das políticas energéticas do país, atrasando os compromissos sustentáveis já firmados. “Com o Brasil como sede da COP3, em Belém, em 2025, nós acreditávamos que essa era uma excelente oportunidade para o país se consolidar como uma liderança Global climática inclusive, mas o país anda na contramão disso.”, analisa Nicole.

Procurada, a ANP disse apenas que iria analisar o documento do MPF. O órgão informou à reportagem que as áreas do 4º Ciclo da Oferta Permanente de Concessão ficam na Bacia sedimentar do Amazonas, que “são um tipo de estrutura geológica caracterizada pela sua presença em áreas de depressão relativa ou absoluta resultantes do acúmulo de sedimentos (partículas de rochas) ao longo do tempo, formando várias camadas de rochas, usualmente sedimentares, no caso da exploração e produção de petróleo e gás natural, as atividades são realizadas em rochas que se encontram no subsolo”. A ANP, fez questão de informar que a exploração “não tem relação com a Bacia Hidrográfica do Rio Amazonas”.

Sobre as áreas possivelmente impactadas, a ANP disse que “conforme determinação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), Resolução CNPE 17/2017, para a inclusão de blocos/áreas com acumulações marginais em licitações como a Oferta Permanente, a ANP precisa consultar previamente os órgãos ambientais (Ibama, para áreas marítimas, e órgãos ambientais estaduais) e seguir suas respectivas diretrizes, além das manifestações conjuntas do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).”

A Funai também foi procurada, mas não deu retorno à demanda da reportagem.

Por Amazônia Real – Por Elaíze Farias e Tainá Aragão, da Amazônia Real – ANP faz leilão que avança sobre terras indígenas e unidades de conservação – Amazônia Real (amazoniareal.com.br)      

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