A Terceira Margem – Parte CDLXIV

Descendo o Rio Branco

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Theodor Koch-Grünberg (1911)
Parte VI

O amanhecer, de 4 de agosto, desponta claro e fresco sobre Koimélemong, há um clima de festa. É servido um kalamalayekü forte e escuro. Um grupo de índios Macuxí já está dançando a “parischerá” na Praça da Aldeia. À tarde, numa longa fileira, chegam os moradores da “Maloca Bonita”, que fica na encosta Sudeste da Serra Mairari. O velho chefe, que os está conduzindo, tem uma pele muito clara, rosto alongado e um bigode branco que lhe tapa a boca, lembra por demais um lorde inglês. Talvez ele pudesse contribuir com algum material sobre o problema dos filhos bastardos a um antropólogo. Todos me apertam a mão, as crianças um tanto ou quanto forçadas […].

Até meu velho amigo Julião compareceu, o tio de Pitá que mora com Ildefonso, conta-nos que outro dia, ao voltar para casa, o mekorö brigou com Ildefonso na casa deste e que, durante a briga o chefe bateu várias vezes em seu rosto com um cinto de couro. Julião traz uma carta de Neves, na qual este confirma a notícia do tiroteio em Pedra Grande. A casa de Manuel Galvão, o proprietário rural de lá, que, junto com outros, também estava sob a mira dos soldados, ficou toda furada de balas. Com exceção do oficial de polícia, ninguém saiu ferido. […] Quando estamos indo para o banho vespertino, uma jovem Taulipáng vem nos avisar que a “parischerá” está chegando. Pirokaí diz que eles devem esperar até estarmos de volta. Vamos, então, para a cabana de Theodoro.

Os dançarinos chegam numa longa fila, vindos da savana. É uma espécie de dança das máscaras, eles usam singulares adornos de cabeça, feitos de folha da palmeira inajá, que cobrem parte do rosto. Longos penduricalhos do mesmo material envolvem o corpo e cobrem-lhes as pernas.

Eles tiram abafados sons de tubos feitos da embaúba ([1]), que tem na parte anterior todo tipo de figuras pintadas de várias cores, enquanto agitam os instrumentos para cima e para baixo, dobram os joelhos e a cada dois passos, batem com o pé direito no chão, dobrando ligeiramente o tronco para frente, assim, deslocam-se sempre um segmento mais longo para frente e um mais curto para trás e vão chegando, lentamente, à Praça da Aldeia. Cada bloco tem o seu primeiro dançarino, que vai batendo e chocalhando, no compasso das batidas dos pés, o longo bastão de ritmo, cuja extremidade superior é envolta com pingentes de casco de veado ou metades de cascas de frutos.

As mulheres, pintadas de vermelho e preto, vestindo somente uma graciosa tanga de miçangas, juntam-se a eles. Com a mão direita no ombro esquerdo do parceiro, seguem, a passos miúdos, numa segunda fila ou ao lado seguem numerosos adolescentes.

As mulheres mais jovens e as meninas estão ricamente adornadas, usando na cabeça um bonito diadema de vime trançado e com flocos de algodão e finas penas brancas coladas. Os dançarinos formam uma grande roda e aberta e movendo-se alternadamente para a direita e para a esquerda, ora para frente, ora para trás. Após cada volta, batem várias vezes o pé onde estão e gritam alto:

‒  hê‒hu–haí-haí-haí-haí-haí-ju–juhu.

A um sinal do primeiro dançarino, eles ficam parados, como os rostos voltados para o centro do círculo, segurando os instrumentos, com uma das mãos, diante de si ou debaixo do braço, e cantam suas canções simples, bem ritmadas. O primeiro dançarino canta alguns compassos e a seguir, os demais começam cantando baixinho e vão aumentando gradualmente para depois voltarem a sussurrar novamente o monótono refrão, repetido inúmeras vezes:

‒  haí-ã–ã…haí-ã–ã.

Dançaram assim, por várias horas, diante da minha cabana, na esplêndida noite de lua Cheia. Estou sentado no banco de honra e aceito a ovação. Ao meu lado, Pirokaí, sentado num banquinho baixo, anima os dançarinos, gritando alto:

‒  Dotoro-parischerá! Dotoro-parischerá!

Em um grande círculo, à nossa volta e também dos dançarinos, muitos espectadores, nus e seminus, assistem deitados ou agachados, iluminados apenas pela luz bruxuleante irradiada pelas fogueiras. Um quadro inesquecível. No dia seguinte, de manhã cedo, recebo muitos visitantes na minha cabana. Permito que avaliem e manuseiem meu acervo, livros ilustrados, fotos, armas, fonógrafo, tudo é observado com admiração.

Pitá está muito orgulhoso de seu hóspede. O tempo continua maravilhoso, ainda continuam chegando convidados, índios Macuxí e Wapischána da Serra Uraucaüna e do Amajarí. Grupos isolados, Vestindo o traje de “parischerá” chegam dançando e me fazem as honras na Praça ensolarada da Aldeia. Provavelmente encontram-se aqui reunidas umas mil pessoas. […]

Hoje é o principal dia da festa. À tarde, pouco após as 15h00, a dança tem início, como desejei por causa das fotografias. Uma fila de uns duzentos dançarinos de “parischerá”, chega do Oeste, da savana, debaixo do som abafado das buzinas de madeira. […]

Eles dançam e cantam na Praça da Aldeia, numa roda enorme. No meio do círculo, homens e mulheres dançam “tuküí”, a dança do beija-flor, usando apenas uma tanga e estão pintados com motivos artísticos ou simplesmente besuntados com argila branca, até no cabelo, o que lhes dá uma aparência muito selvagem. Em grupos de dois ou de três, parte deles de braços dados, andam um atrás do outro, dobrando os joelhos, batendo com o pé direito no chão. Os homens sopram, emitindo sempre o mesmo som estridente, num pequeno pedaço de taquara. Nessa dança, como na “parischerá”, também se cantam, às vezes, canções épicas, longas com numerosas estrofes. Todas as danças e os cantos de dança desses índios estão intimamente relacionados a seus mitos e lendas. […]

Assim, por exemplo, o “parischerá” se refere ao mito em que desempenham seu papel uns instrumentos mágicos de caça e pesca que um xamã recebe dos animais e que, ao final, por culpa de parentes malvados, tem de devolver. Tal como o “tukuí” ou tukúschi é a dança de todos os pássaros e de todos os peixes, o “parischerá” é a dança dos porcos e de todos os quadrúpedes.

A chegada dos dançarinos numa longa fileira, sob som monótono das trombetas de madeira, represen­ta os porcos do mato grunhindo surdamente. Com toda certeza, todas essas danças tem o mesmo objetivo, o de se conseguir recursos mágicos para alcançar sucesso na caça e na pesca.

As danças duram a noite toda, sem parar. […] Permaneço longo tempo sentado fumando com o Majonggóng e outros xamãs. Os doutos senhores já estão um tanto bêbados. Conversamos sobre kanaimé. Dizem que o pior kanaimé de toda a região é Dxilawó, chefe de uma Aldeia Taulipáng próxima da Missão no Alto Surumu, o homem mais odiado também entre seus companheiros de tribo. No fundo, ele é um homem bastante bom, Manduca acha, mas sua alma não presta. Ela se separa do corpo quando ele dorme e carrega todos os maus espíritos possíveis, na forma de onças, cobras gigantescas etc., de fazer mal às pessoas. […]

O Majonggóng me traz um índio de tez escura e nariz acentuadamente aquilino. Ele é, de acordo com a tribo de sua mãe ([2]), um Taulipáng do Alto Urariquera.

Seu pai, que deve ter-lhe dado seu tipo físico especial, era um Purukotó, de uma tribo antigamente numerosa na região de Maracá e que, segundo dizem, está praticamente extinta, restando apenas 5 mulheres e alguns homens.

Infelizmente, parece que ele não fala nada dessa língua. Seu nome Maipalalí, um homem viajado que já esteve com os Majonggóng e Máku do Auari e com os Schirichána do Curaricará. Como muitos índios, ele fala várias línguas e conversa com Manduca nos sons suaves de sua terra. Também conhece algumas palavras de Máku e Schirichána. Procuro saber dele dados mais exatos sobre essas tribos.

Sua mulher, que o acompanhou em todas as viagens, está sentada atrás dele e fica bastante aborrecida quando ele não sabe alguma coisa:

‒  Lá você falou tão bem com as pessoas e agora já esqueceu tanta coisa!

Diz que os Schirichána do Curaricará, antigamente perigosos, agora são pacíficos e habitam algumas casas grandes de planta quadrada. […]

Já faz quase um mês que estou em Koimélemong […] E, no entanto, meu olhar se dirige diariamente, cheio de ansiedade, para o Norte, para as serras distantes que fecham o horizonte. Atrás delas deve ficar o Roraima, aquele maravilhoso monte de arenito que levou cada viajante que o viu a fazer descrições apaixonadas. Pitá também nunca esteve lá e quer me acompanhar. Mantemos longas consultas com todos os Taulipáng que vêm do Norte. O chefe envia alguns mensageiros à frente para avisar de nossa ida às aldeias por onde deveremos passar e, principalmente, para encomendar caxirí.

Serão apenas seis dias de viagem, dizem os índios, contando para mim nos dedos das mãos. Dizem que a cada dia se chega a uma casa e que só uma vez será necessário dormir ao ar livre. Partindo do Roraima, queremos visitar também os bravos Ingarikó, mas tem um problema, afirma Pitá que os Ingarikó são “kanaimé” perigosos.

Quando respondo:

‒  Não tenho medo!

Ele replica depressa:

‒  Eu também não! […]

Partiremos logo após a festa. Em 10 de agosto, meus mensageiros expressos voltam de São Marcos. Isso altera meus planos de repente. Trouxeram um grande pacote de cartas para mim, com algumas notícias boas e outras nem tanto. […]

Em vários fios trançados de fibras de miriti, ele faz nós que representam o número de dias que se passarão até a festa, então envia esses fios por rápidos mensageiros até as diferentes aldeias. Os convidados desfazem um nó a cada dia e, na data marcada, estarão todos presentes no local dos eventos. Ainda há muito a fazer até a partida. As coleções têm de ser ordenadas e empacotadas. As mulheres fazem beijus e os põem para secar ao Sol, nos telhados; os homens tratam da caça e da pesca e as conservam sobre os moquéns simples em fogo lento; são nossas provisões para a longa jornada. Os muitos índios que nada têm a fazer ficam agachados à minha volta, observando diligentemente meus afazeres e me pedem para contar “n” vezes nos dedos dentro de quantos dias estarei de volta.

Índias Taulipang
Descanso.
Mapa de Schomburgk, 1887
Partida dos Schirianas (Grünberg)
Café matinal (Grünberg)
Catarata Purumane (Grünberg)
Catarata Möraumelu, Rio Uraricoera (Grünberg)
À jusante de Emenuli, Rio Uraricoera (Grünberg)
Corredeiras de Murua, Rio Uraricoera (Grünberg)
Baixios de Aracasa (Grünberg)
11a – Gebirge Pidscha-tepö, Rio Uraricoera e 11b – Aracasa no acampamento Paciência (Grünberg)
Acampamento Paciência (Grünberg)
Rio Aiakeni, sem água (Grünberg)
Rio Aiakeni, sem água (Grünberg)
No porto de Mawoinya, Rio Merewari (Grünberg)
No alto do Merewari (Grünberg)
17a – Cataratas Kuruhudu, Rio Merewari e 17b – Moradores de Mawoinya e as fotos (Grünberg)
Motokurunya (Grünberg)
Pescaria proveitosa (Grünberg)
Nossa cabana em Motokurunya (Grünberg)
Colheita (Grünberg)
Ralando as raízes da mandioca (Grünberg)
Manduca com a mãe e irmãos (Grünberg)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 01.08.2022 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia: 

GRÜNBERG, Theodor Koch. De Roraima ao Orinoco. Volume II – Mitos e Lendas dos Índios Taulipáng e Arekuná –  Alemanha – Berlim – D. Reimer (E. Vohsen), 1915.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Embaúba: Cecropia angustifólia. (Hiram Reis)

[2]   Mais uma vez, Koch-Grünberg, afirma que o clã dos filhos é o mesmo da mãe e não o do pai, por isso, reproduzo minha colocação na página 460, do Tomo I de meu livro “Descendo o Negro”:

Os Tucanos dividem-se em dois ramos linguísticos importantes: o ramo Oriental formado pelos que habitam a Colômbia e o Brasil, e o ramo Ocidental encontrado no Peru, Bolívia e Equador. Vivendo em pequenas Comunidades, evitam casamentos consanguíneos só permitindo que as uniões sejam realizadas com mulheres de outras etnias, que falam, consequentemente, língua diferente, princípio conhecido como “exogamia linguística”. A miscigenação forçada, pela “cultura”, coloca os Tucanos num patamar multilinguista sem paralelo no mundo, fazendo com que cada indivíduo fale no mínimo três línguas. A mulher, após o casamento, vai morar no clã do marido, passando a fazer parte dele. A identidade étnica dos filhos, portanto, é determinada pela etnia paterna. (Hiram Reis)

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