A Terceira Margem – Parte CDXXVIII

Descendo o Rio Branco

Cel Hiram em seu caiaque

Francisco J. R. Barata (1798/9)
Parte III 

14 e 15 

Continuou-se na varação das canoas, e se concluiu na tarde deste último dia.

16 e 17 

Nos dois seguintes se calafetaram as canoas, e se lhes taparam alguns rombos que na varação tiveram, e na tarde do último se botaram ao Rio, e se carregaram.

1

Depois de haver despedido os índios que me acompanharam com os Soldados para a Fortaleza do Rio Branco, e que deviam regressar por terra até a cachoeira onde ficou a outra canoa que acima disse, me embarquei na canoa em que vim, e o Soldado na outra, e partimos pelo Rio Rupununi abaixo. Este Rio, que ali traz a sua corrente da parte do Sul e se dirige para Norte, é caudaloso no inverno; porém no verão fica apenas navegável por pequenas ubás do gentio que tem suas habitações nas margens do mesmo. Encontramos algumas cachoeiras e bancos de pedras, que suposto não eram perigosos, contudo nos serviam de grande atraso; porquanto era preciso que os índios andassem, ora por água, ora pelas margens segurando as canoas com cordas, a fim de que estas pudessem ir descendo suavemente, para se não despenharem sobre as grandes pedrarias com a força da correnteza.

E assim continuamos neste dia, até às 16h00, em cujo tempo principiamos a achar melhor navegação, por já não termos os referidos obstáculos, e deste modo continuamos até depois do Sol posto.

19 

De manhã seguimos sem novidade, até às 09h00, tempo em que chegamos a um tijupar ([1]) onde havia estado gentio na enchente do Rio; e porque aqui havia muita pindoba ([2]), e as canoas necessitavam de toldas, lhas mandei fazer, ficando tudo concluído à noite.

20 

Partimos do dito lugar, e, às 09h00, chegamos à Boca de um pequeno Ribeiro ou Igarapé, pelo qual no Rio cheio se vai para o trajeto do Pirarara, e se vem sair no Mau. Pelas 16h00, passamos pela Boca de outro pequeno Igarapé, chamado Macará, pelo qual se faz também trajeto para o dito Mau, do qual em seu lugar falaremos.

Serve para marca do lugar deste o estar ele em um lugar, em que o Rio corre diretamente quase na distância de ¾ de hora de viagem, e avistarem-se dali Rio abaixo as serras chamadas Murá. Como os práticos disseram que em pouca distância se achava o gentio Macuxí, situado nas margens do Lago Apequeme, navegamos para irmos pernoitar na Boca dele até quase às 21h00, tempo em que chegamos à Boca do outro, que eles disseram ser o mesmo, e aqui ficamos.

21 

Amanheceu o dia, circulamos o pequeno Lago, e porque não achamos o lugar onde pudesse habitar o dito gentio, nos vimos obrigados a seguir viagem. Seria pouco mais de 07h00 quando por casualidade vimos que na nossa retaguarda vinha uma ubá de gentio. Mandei encostar as canoas à terra para os esperar; porém eles encostaram também em grande distância, e portanto regressei a procurá-los o que vendo eles, vieram também encontrar-me. Mandei-os cumprimentar da minha parte pelo intérprete, e saber onde residiam, e onde estava o seu Principal; ao que eles responderam prontamente, certificando que eles já sabiam que nós havíamos passado, porquanto estando eles no porto onde principia o caminho para sua morada, ouviram o estrépito dos remos das nossas canoas, e igualmente as cantilenas dos remeiros, e logo viram que não eram ubás dos gentios, nem de pessoas que por ali costumassem navegar.

Enfim eu lhes fiz declarar o desejo que tinha de falar ao seu Principal, e que por isso quisera que eles me servissem de guias, ao que um deles [e era irmão do mesmo Principal] respondeu, que não podiam voltar, porquanto iam buscar suas mulheres, as quais se achavam em uma roça que tinham nas faldas de um monte, e em grande distância, mas deu um guia que nos pudesse conduzir.

Partimos uns e outros, e às 10h30 fomos chegar ao referido porto, que se acha dentro do Lago Apeque­me. Saltei em terra, e com o intérprete e alguns mais da equipagem fomos seguindo pelo caminho que o guia nos ensinava. Porém em menos de meio caminho o guia correu adiante de nós, e o não torna­mos a ver, mas, enfim seguimos pelo mesmo lugar ora subindo e descendo outeiros pedregosos, ora passando nas suas faldas medonhos alagadiços e pantanais, quase às 14h00, fomos chegar a um profundo Lago. Aqui fiquei persuadido de que não era este o caminho, porém os índios me advertiram de que era, porquanto o mesmo Lago tanto pela parte inferior, como pela superior, estava coberto de carananzais, e que só ali estava limpo, sinal de que era continuação do caminho. Quadrou-me este raciocínio, e com efeito passamos a nado para a outra banda, e ali vimos realizada a verdade do referido. Subimos pela montanha acima, e chegando ao seu cume avistamos pequenas casas de palha, e nos dirigimos a elas, e eis que não vimos pessoa alguma, e só indícios de que ali haviam morado.

Novas desconfianças se me ofereceram, mandei subir acima das ditas casas um índio para descobrir o campo, e ele me declarou que mais adiante estavam outras três casas ou palhoças. Seguimos em sua demanda, e com efeito esta era a residência do dito gentio, e já lá estava deitado em uma pequena e pobre maca o índio nosso guia, o qual assim que nos viu deu suas risadas, como quem se gloriava de nos ter enganado.

Mandei cumprimentar ao Principal e as mais pessoas que ali se achavam de um e outro sexo, ao que corresponderam com mostras de alegria. Fiz-lhe saber que eu queria que me desse um dos seus vassalos para servir de prático nas cachoeiras do Rio Essequibo; mas quando eles ouviram a minha pretensão, se tornaram tristes, e o Principal, depois de haver falado com a sua gente, respondeu que não podia ser, porquanto tinha poucos vassalos, e estes não podia mandar, por lhe serem precisos, não só para sua defesa, mas também para fazerem os seus roçados para as suas plantações, pois era tempo próprio.

Fiquei desgostoso, porém instei com agrados e promessas; comi com eles algumas frutas de mamão que me ofereceram, enfim consegui ceder ele às minhas rogativas, o que lhe agradeci muito. Depois das três horas regressei para as canoas, e todos me acompanharam até o porto, onde já se achavam os que acima disse haviam ido buscar as mulheres, que todos seriam perto de cinquenta almas de diferentes sexos e idades. Passei a brindá-los com aguardente de que gostavam muito, e com sal de que dei ao Principal uma grande cuia, e igualmente duas cuias pintadas.

Todos os outros queriam a mesma oferta; mas como o negócio só dependia do Principal, dei a este mais um frasco de aguardente e uma pequena porção de pólvora, e tratei de me despedir. A este tempo se me ofereceu mais um prático, que eu boamente ([3]) aceitei, e larguei do porto. Eram a este tempo já quase 20h00, e navegando até depois das 21h00, fui pernoitar no lugar onde de manhã havíamos encontrado a ubá, cuja pequena viagem fiz para me livrar dos peditórios ([4]) que me faziam, porque de tudo que viam se agradavam.

Estes índios selvagens são de estatura ordinária, bem nutridos e com boas feições; porém como se tingem por todo o corpo com urucu, se fazem por tanto artificiosamente horrendos. As mulheres praticam o mesmo, usando de muita miçanga nas pernas, braços e a tiracolo. As casas de sua habitação eram de palha, e não se lhes divisava nelas outras coisas mais do que os seus arcos e flechas, e a pobreza, no meio da qual vivem com muita satisfação e alegria.

22 

De manhã partimos do dito lugar, e com feliz viagem chegamos, pelas 17h00, à Foz do Rupununi, que tributa aqui as suas águas ao Essequibo, o qual traz ali a sua direção da parte do Sueste. Continuamos por este Rio, e fomos pernoitar junto a uma ilha, que é a primeira que se encontra indo do Rupununi.

23 

Seguimos pelo mesmo Rio, e logo, às 07h00, passamos à canal a primeira cachoeira dele, e assim fomos continuando por outras muitas já maiores e já menores, das quais umas passamos a canal, e outras à sirga até a noite.

24 

Partimos e navegamos com as mesmas dificuldades até às 17h00, a cujo tempo chegamos ao princípio de uma dilatada cachoeira, a qual não se podia passar no restante do dia, não só pela sua extensão, como por ser preciso examinar primeiro por onde era navegável, pois que as grandes pedrarias que tinha ofereciam grandes dificuldades.

25 

Depois de examinadas as partes por onde devíamos passar, principiamos com esta diligência descendo as canoas à sirga, no que nos demoramos até depois das 08h00; mas logo se nos seguiram outras, que fomos passando até que as sombras da noite nos obrigaram a descansar.

26 

Neste dia prosseguimos a nossa viagem, e, às 08h00, chegamos ao princípio de uma medonha cachoeira, a qual mandei examinar pelos práticos, que voltaram anunciando que não achavam lugar por onde passássemos sem uma grande dificuldade e risco de vida, e que apenas havia um pequeno canal por entre duas ilhas; porém que seria preciso limpá-lo de muitos ramos de árvores, que embaraçavam a sua passagem. Entramos enfim por este canal, que com efeito era como eles diziam, acontecendo-me nele o fato seguinte, pelo qual fiquei desenganado de que os índios são insensíveis. Estava eu em pé na boca da tolda da canoa ao tempo em que esta passava de popa, como em semelhantes lugares se costuma, por baixo de uma árvore, cujos ramos foi preciso suspender, o que fez um índio que estava em cima da dita tolda. Ao tempo em que este índio largou o ramo me advertiu para que o segurasse, o que fiz, mas com tal rapidez passou a canoa, que ela fugiu debaixo dos meus pés e eu fiquei suspenso e pendente do ramo, e caí finalmente no Rio.

Era violenta a correnteza, e portanto eu não podia vencê-la, pelo que segurando sempre no dito ramo diligenciei chegar à terra; porém era isto mui dificultoso, porque o ramo estava perpendicular no meio do Rio, então chamei a um índio da canoa para que me desse uma corda, o que fez, e no entanto todos os mais se puseram a rir, sem que algum me quisesse ou viesse socorrer. Tal é a triste situação de quem anda em companhia de semelhantes indivíduos faltos de toda a humanidade. Saímos enfim do canal, quase às 15h00, e continuamos a nossa marcha no restante do dia sem novidade.

27 

Neste dia viajamos encontrando apenas algumas pedras que formavam grandes correntezas, porém sem perigo, havendo a cautela que tínhamos.

28 

Partimos logo que amanheceu, e navegamos, até às 14h00, sem obstáculo algum, mas a este tempo principiou a nossa navegação a ser trabalhosa por motivo das muitas pedras e correntezas, que principiaram a anunciar as grandes cachoeiras que tínhamos ainda de passar. Os índios práticos Macuxís não tinham todo o conhecimento preciso para nos guiarem, e às canoas pelos canais das ditas cachoeiras, pelo que me disseram que pouco abaixo estava habituado o gentio Caripúna, e que seria bom fosse ali buscar prático, porquanto eles continuamente cursavam este Rio.

Aproveitei-me desta advertência, e mandei seguir para o lugar onde estava o gentio, que era em um Braço do Rio na margem esquerda, onde cheguei pelas 16h00. Depois de haver mandado cumprimentar ao Principal, lhe pedi o prático, que ele logo me concedeu dando-me um para ir na minha canoa, e dois que mandou em uma ubá, para irem adiante indicando o canal.

Advertiu-me o mesmo Principal que não tivesse receio algum de passar as cachoeiras, porque ainda que eram horríveis e medonhas, à vista, contudo tinham bons canais, por não haver nelas pedras. Agradeci tudo ao Principal com as possíveis mostras de agrado, e dando-lhe um frasco de manteiga de tartaruga, que ele sumamente estimou, porquanto lhes serve para se untarem e pintarem os corpos com urucu, não menos estimou duas cuias pintadas, e uma pequena porção de sal, que também lhes dei. Este gentio é o mais respeitado entre as outras nações que habitam naquelas vastas campinas e elevadas serras.

Ele tem estatura mais que ordinária, é assaz robusto, e não menos o parecem as mulheres. Pelo que pertence porém aos seus trajes, usos e costumes, não têm diferença dos mais.

Partimos do dito lugar, e chegamos, pelas 16h30, às mencionadas cachoeiras; e precedendo a ubá dos guias, entramos nos seus canais. Com efeito, se as outras muitas que havíamos passado eram medonhas, estas excediam, tanto que os mesmos índios, já acostumados a semelhantes passagens, se assustaram, e eu não menos, principalmente quando repetidos cachões d’água me entravam na canoa, de que nos salvou a rapidez da mesma correnteza, que foi a causa de não nos alagarmos, porquanto em breve tempo nos lançava em remansos, onde esgotávamos a canoa da água introduzida; e assim fomos continuando até depois do Sol posto, a cujas horas chegamos às primeiras plantações [a que nós chamamos vulgarmente roça], pertencentes a umas mulatas holandesas, que tem fábrica de madeiras, em que ocupam grande número de pessoas livres e escravos próprios, tanto índios como negros.

Receberam-nos com muito agrado e hospitalidade, oferecendo-nos a casa, e de comer com todo o asseio e profusão, e nós aceitamos com igual vontade; porque o costume daquele País faz passar por incivis ([5]) aos que rejeitam semelhantes ofertas.

Eram quase 22h00, quando nos persuadiram ao repouso por julgarem que dele precisávamos, muito na inteligência dos incômodos, porque de necessidade havíamos de ter passado em tão prolongada viagem, e por tão inóspitos caminhos, o que na verdade assim era. (Continua…) (BARATA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 09.05.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

BARATA, Francisco José Rodrigues. Da Viagem que fez à Colônia Holandesa de Suriname o Porta Bandeira da Sétima Companhia do Regimento da Cidade do Pará, pelos Sertões e Rios Deste Estado, em Diligência do Real Serviço – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 08 – Tipografia de João Inácio da Silva, 1846.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Tijupar: palhoça.

[2]   Pindoba: palmeira.

[3]   Boamente: de bom modo.

[4]   Peditórios: pedidos importunos e insistentes.

[5]   Incivis: descorteses.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *