Uma usina hidrelétrica emite grandes quantidades de gases de efeito estufa nos primeiros anos após a sua construção, que cria uma “dívida” de aquecimento global que é lentamente paga na medida em que a eletricidade gerada pela barragem desloca combustíveis fósseis nos anos subsequentes; em contraste com isto, a geração de eletricidade a partir dos combustíveis fósseis emite gases em uma taxa constante, com a emissão ocorrendo ao mesmo tempo em que a eletricidade é gerada. Esta diferença é fundamental em comparações entre barragens e combustíveis fósseis, com qualquer valor atribuído ao tempo pesando fortemente contra as represas [1, 2].
O perfil completo de emissões de uma barragem é um complexo conjunto de créditos de emissões e débitos de CO2, CH4 e outros gases ao longo do tempo. Em contraste, usinas de combustível fóssil liberam emissões principalmente quando o combustível é queimado para gerar eletricidade. O fato de que barragens emitem metano, com um impacto de curta duração, porém muito intenso, enquanto que os combustíveis fósseis emitem principalmente CO2 , com um impacto suave mas longevo, também é muito importante.
Observe, no entanto, que em muitos países, inclusive no Brasil, a maioria das novas usinas termelétricas queimam gás natural ao invés de carvão ou petróleo, e há vazamentos nos gasodutos que fornecem o metano às usinas.
A indústria hidrelétrica não gostaria que nenhuma forma de ponderação por preferência de tempo seja aplicada às emissões neste século: a Associação Internacional de Energia Hidrelétrica (IHA) defende que todo cálculo seja em um horizonte de tempo de 100 anos sem nenhum desconto (e.g., [3]).
Infelizmente, não temos 100 anos para tomar medidas eficazes na mitigação do aquecimento global, e serão as emissões dentro dos próximos poucos anos que determinarão se a mudança climática “perigosa” pode ser evitada.
Planos de construção de barragens na Amazônia brasileira, por exemplo, implicam na liberação de grandes quantidades de gases de efeito estufa, precisamente na janela de tempo quando o aquecimento global precisa ser controlado [4].
NOTAS
[1] Fearnside, P.M. 1996. Montreal meeting on ‘greenhouse’ gas impact of hydroelectric dams. Environmental Conservation 23: 272-273. doi: 10.1017/S0376892900038935.
[2] Fearnside, P.M. 1997. Greenhouse-gas emissions from Amazonian hydroelectric reservoirs: The example of Brazil’s Tucuruí Dam as compared to fossil fuel alternatives. Environmental Conservation 24: 64-75. doi: 10.1017/S0376892997000118.
[3] Goldenfum, J.A. 2012. Challenges and solutions for assessing the impact of freshwater reservoirs on natural GHG emissions. Ecohydrology & Hydrobiology 12: 115-122. doi: 10.2478/v10104-012-0011-5.
[4] Isto é uma tradução parcial atualizada de Fearnside, P.M. 2015. Emissions from tropical hydropower and the IPCC. Environmental Science & Policy50: 225-239. http://dx.doi.org/10.1016/j.envsci.2015.03.002. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03).
Leia os artigos da série: Hidrelétricas e o IPCC
Hidrelétricas e o IPCC: 2 – Barragens nos relatórios e diretrizes
Hidrelétricas e o IPCC: 3 – Escolha enviesada de literatura
Hidrelétricas e o IPCC: 4 – Barragens tropicais emitem mais
Hidrelétricas e o IPCC: 5 – Emissões de gases nos inventários nacionais
Hidrelétricas e o IPCC: 6 – As diretrizes de 2006
Hidrelétricas e o IPCC: 7 – Reservatórios como “áreas úmidas”
Hidrelétricas e o IPCC: 8 – Turbinas e árvores mortas ignoradas
Hidrelétricas e o IPCC: 9 – Contagem incompleta a jusante
Hidrelétricas e o IPCC: 10 – Concentrações subestimadas de metano
Hidrelétricas e o IPCC: 11 – Potencial de Aquecimento Global desatualizado
Hidrelétricas e o IPCC: 12 – Ignorando o valor do tempo
Hidrelétricas e o IPCC: 13 – O horizonte de tempo
Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.
Hidrelétricas e o IPCC: 14 – A “dívida” de aquecimento global