A Terceira Margem – Parte CDIII

EPOPEIA ACREANA 

Alto Purus, n° 305 – 09.08.1914

O Herói Plácido de Castro – I

Alto Purus, n° 305
Sena Madureira, AC – Domingo, 09.08.1914
Plácido de Castro
 
 Sobrevive, porém, na história
eu vejo-o hoje maior do que nunca.
(Soares Bulcão
[1] ‒ Jornal do Ceará, 12.08.1910)  

Já se vai escoando nas sombras do tempo, para ficar pairando na imaginação dos seus pósteros, como num nimbo de legenda, a figura lendária do grande sacrificado do Acre. Não a sua memória, que essa, de tão grata que nos é, mais se avulta e se nos impõe ao espírito, quanto mais longínqua se vai ficando a história dos seus feitos, quanto mais benéficos se vão demonstrando os resultados de sua obra.

Da ação que ele exerceu no Acre, que cada vez se nos afigura mais meritória, muito se já disse e escreveu, porque o seu nome, de obscuro que fora, andou, nesta banda Meridional da América, enchendo vantajo­samente um decênio no século que corre. Como revolucionário, que o foi em toda plenitude de sua vida acidentada e aventurosa, herdeiro e repre­sentante que era do velho caudilhismo platino, cava­lheiresco e sanguinário, ele soube ser o guerrilheiro incansável, o estrategista perspicaz e audacioso, o ferrenho dominador de povos, aliando, todavia, à fereza de sua autoridade despótica, à rigidez de sua disciplina desumana, uma bondade paradoxal de camarada generoso, nas folgas da guerra e no remanso da paz, e a fidalguia do vencedor magnânimo para com os vencidos, depois da vitória.

Como administrador, ele também o foi numa revela­ção surpreendente de estadista, organizando politi­camente o Estado Independente do Acre, após a ca­pitulação definitiva dos bolivianos, em 24.01.1903 e no governo do Acre Meridional, que lhe coube, em 21 de março, em virtude do “modus-vivendi” que prece­deu o Tratado de Petrópolis, de 17 de novembro do mesmo ano, e, ainda posteriormente, na interinidade do governo prefeitural daquele Departamento, de 24.06.1906 a 26 de março do ano seguinte.

O seu relatório, apresentado, nesta data, ao então Ministro da Justiça, Dr. Tavares de Lyra, é um atestado vibrante da sua extraordinária atividade, da clarividência do seu patriotismo, sereno e seguro, e, sobretudo, da desassombrada coragem que lhe animava a palavra, da altanaria ([2]) dos seus concei­tos, fustigando a inépcia e o crime, o abuso e a desonestidade.

Nele se acha delineada com as cores vivas da verdade e da indignação, num grito de revolta e de piedade, a história edificante do Acre, do “regimen” das Prefeituras, dos delegados que o governo lhes envia, do martirológio, daquele povo infeliz, das suas aspi­rações insatisfeitas, e do eterno problema que continua sendo, insolúvel ao desinteresse criminoso dos poderes da União. Foi probo e autoritário; probo, digo-o eu, dentro da acepção lexicológica do vocábu­lo: de caráter integro; justo; honrado; reto. O seu caráter não admitia dúvidas. Tinha a integridade que vem da coragem cívica, da convicção do próprio valor; a sua justiça não conhecia complacências subalternas: pronta e decisiva, se errou, foi sempre em obediência aos ditames da sua razão: honrado, se honradez consiste em servir bem a consciência, ter o culto da verdade, a inteireza de princípios e o respeito de si mesmo, ninguém o foi mais que ele, que só dela se ufanava, com ela se fez invulnerável aos ataques dos seus inimigos, e ainda, por ela, se impôs ao respeito dos seus coetâneos ([3]): e da sua retidão, mais que palavras vãs, di-lo, na lógica dos fatos, a inquebran­tabilidade da retilínea que se traçou, e seguiu, im­perturbavelmente, toda a sua curta vida.

Honesto, foi-o quanto possível e quanto devia, com o orgulho da sua missão exemplificadora, com a soberbia da sua altivez inteiriça, fechando ouvidos à maledicência, que o não poupou, filha que era do despeito e da inveja, e nunca se subordinando a defesas que parecessem justificativas.

Não me defenderei, disse-me ele, certa vez, sobran­ceiramente magoado com um ataque que lhe fizera a imprensa de Manaus:

A quem acusa compete dar as provas do que alega, e, quem se defende, algo de culpa se reconhece, e aceita em parte a acusação que se faz: eu desprezo esses miseráveis que me mordem.

Ficou sem defesa, escudado na marmórea impassi­bilidade do seu brio, no soberano desdém que votava à calunia e à difamação; mas não indefensável para os que lhe devassassem a vida, para os que a estudassem, de espírito desanuviado, sem a sugestão maligna do falso deslustre que lhe emprestavam. A sua honestidade, como governo, era uma obsessão de egoísmo, um tormento de usurário, uma preocu­pação doentia de avarento, traduzindo-se na ativa vigilância que exercia em torno dos haveres públicos, no zelo desmedido pelos bens da comunhão, no ciúme feroz de tudo que estava sob a sua guarda, na sovinagem com que dispunha das verbas, na redução dos empre­gados que o serviam, e na mesqui­nhez dos seus ordenados, numa eterna ânsia de poupar, como se andasse no amanho ([4]) cobiçoso da sua própria fortu­na. Valeu-lhe este cuidado, que parecia uma manifes­tação de ganância, mais que essa malsinada riqueza que tanto se avolumou na imaginação dos seus detra­tores, a suspeita de improbidade, a pecha de desones­to, labéu ([5]) infamante que o acompanhou em vida, e vai perdurando, injustamente, sobre a sua memória.

Mapa do Estado Independente do Acre

O autoritarismo, que lhe dava uma fisionomia de rispidez e antipatia, era de resto, afeição proeminen­te do seu temperamento arbitrário; tinha a presun­ção máscula da sua força, a nobre vaidade do seu prestígio, e, embora transigindo, no cotejo dos seus argumentos, ponderados e medidos, num exame íntimo e meditado, nada o sustinha na execução do seu intento, menosprezando-lhe as consequências, desatendendo quaisquer opiniões outras, que não fossem as da sua própria razão. Assim agiu sempre, mesmo nas suas relações particulares, com esse vislumbre de prepotência invertendo-lhe a índole justiceira, dando aos seus atos de administração, como governo, esse cunho odioso de despotismo que tanto lhe prejudicou a reputação. Para comprovar sobejamente esta qualidade, que lhe acarretou a animadversão ([6]) da maioria dos seus cabos de guerra, a quem negara os favores da parcialidade, reclamados com exigências e alegações de serviços prestados à campanha, aí ficaram, além dos seus decretos de sábia organização administra­tiva, as sentenças de perfeita equidade e desabusada justiça, com que, arbitrariamente, fulminava, dentro da razão natural e da lógica dos arrazoados, a chica­na e o sofisma, as delongas e as escapatórias da advocacia amparada na controvérsia dos códigos e na citação de decretos e leis contraditórias.

Conhecedor da região, cuja geografia lhe não tinha segredos, confeccionador que fora de um mapa mi­nucioso daquela zona, que ele percorrera em todos os seus meandros, nas marchas e contra marchas do seu exército, Plácido, mais que ninguém, estava aparelha­do para decidir com justiça, de qualquer litígio de fronteiras entre os seringais limítrofes. E no comércio, não foi sem grande pesar e amargas decepções, mas com firme resolução, que teve de condenar devotados camaradas de peleja, em querelas de dívidas com as praças de Pará e Manaus, cuja razão reconhecia aos credores, ludibriados que vinham sendo nos seus direitos, pelos devedores relapsos, há tantos anos acobertados com a imunidade das revoluções, e con­sequente desorganizarão da justiça, desde o primeiro levante, em 1899, na periodicidade delas e durante a vigência do domínio boliviano.

Para com alguns, que desonesto proveito esperavam dos seus serviços à guerra, a sua justiça foi inexorá­vel, e daí o clamor que contra ele se foi levantando no Acre, num crescendo alarmante, entre os seus antigos auxiliares da revolta. Inexorável também se o poderia julgar, na punição de crimes contra a vida e contra a honra, se os seus autores, de tão aveza­dos ([7]) na prática deles, e no gozo da impunidade que lhes dera tão largos anos de desordem, mais não merecessem, senão pela reincidência e contumácia, pela desfaçatez com que afrontosamente os alardeavam.

Dessa sua austera justiça e da retidão dos seus jul­gamentos, de uma imparcialidade que parecia, às vezes, propósito hostil contra os seus mais afeiçoa­dos companheiros, acarretando-lhe prevenções odio­sidades que foram, mais tarde, habilmente explora­das para o fim trágico que lhe deram, nasceu-lhe a excessiva confiança de que gozou no alto comércio aviador, em detrimento do seu prestígio no Departa­mento. Daí também a origem desse crédito ilimitado, que o fez, dentro em pouco findo o período revolu­cionário, procurador geral das maiores casas aviado­ras do Acre, e do qual, descortinasse-lhe logo as grandes vantagens, se utilizou largamente, para as arrojadas operações comerciais que começou de fazer com a aquisição do Seringal “Paraíso”, cuja margem direita ocupou.

Convém dizer, para que se julgue com segurança da licitude dessa transação e do seu apoucado valor, que foi, aliás, o início da sua tão discutida fortuna, que esse Seringal, a esse tempo, era uma proprie­dade em demanda, deteriorada pelo desamparo em que a deixaram os litigantes, desvalorizada na sua improdutividade onerosa, sem administração e sem freguesia, reduzido à faixa marginal do Acre, com os fundos entregues à ganância usurpadora dos vizinhos, que o iam assediando, desfrutando-lhe os produtos, sem ônus de arrendamento, e apossando-se afinal da fácil conquista. De um acordo entre as partes, que a influência de Plácido facilmente conseguiu, e em transação com a casa Alves Braga & Ciª, do Pará, que o houvera em liquidação de dívidas, com os herdeiros de Mileno Benevenuto de Santiago, veio-lhe a posse dele, na­turalmente, e legalmente, sem lesão e sem vanta­gens, senão as inerentes à solução pacífica de um longo litígio, fatigante e prejudicial, não só aos inte­resses particulares, mas ao sossego da comunidade ao progresso do Território.

Custara-lhe cerca de 25 contos de reis, a crédito, importância porquanto fora oferecida anteriormente a J. Dias, do “Riozinho”, sendo que a firma vende­dora o recebera por sessenta, mais ou menos, em pagamento de dívidas só por ele amparadas. De feito, concluída que foi a transação e de posse dele, iniciando reformas radicais, em contraposição à roti­na e à precariedade de sistemas até então seguidos no Acre, entregou-se Plácido à sua exploração, en­chendo-o de fregueses, ao mesmo tempo que fazia avultados pedidos de mercadorias. Para isto apesar do crédito de que dispunha individualmente, pois, além de outras de igual conceito, só a firma B. Antunes & Ciª, de Manaus, lhe abrira um de seiscentos contos de reis, não o querendo fazer só por si, que para tanto lhe sobrava escrúpulo, organizou uma sociedade mercantil com o capital de sessenta contos de reis, com a firma P. Braga & Ciª, da qual faziam parte os coronéis Pedro Braga e João Rôla, assumindo ele mesmo a gerência da casa. E, no ostracismo, a que se recolhera desde o estabe­lecimento da prefeitura, em agosto de 1904, na reor­ganização do seu Seringal que recebera no abandono, a sua atividade tomou proporções assombrosas.

Jamais se viu no Acre, na labuta da vida, que ali se faz incessante, mas com os lazeres que o meio fácil autoriza e a canícula reclama, maior esforço de tra­balho fecundo, de ação interrupta, de afanosa dili­gência, para adquirir e acumular fortuna.

Naquele clima depauperante, tão hostil à saúde e ao vigor, o organismo mais robusto sente-se invadido por um torpor mórbido, um amolecimento de pregui­ça, um desejo invencível de inércia, que é como uma compensação necessária à seiva perdida; Plácido, apesar de ter sido atingido pelo impaludismo que o vinha minando sem conseguir abatê-lo, parecia imu­ne a essa influência. Nunca se o viu reclamar des­canso, e o repouso, se o tinha, era o suficiente à meditação e à elaboração dos temerários planos de combate com que se aventurava à conquista da vida. Resoluto e tenaz, na execução deles, levava-os por de avante, ao Sol ou à chuva, dias e noites a fio, quer em viagens a soalheira ou às desoras ([8]), pelo Rio, em canoas remadas com o seu próprio concurso, quer em explorações pelo intrincado das matas, na abertura de campos e varadouros intermináveis, através dos seringais que ia descobrindo, no legítimo afã de aumentar, ou na demarcação deles, que logo a executava, cuidoso que era em saber o que pos­suía.

Como a margem esquerda do “Paraíso” lhe ofereces­se pouca vantagem, explorada que era e confinada por seringais já demarcados, logo a vendeu, em fevereiro de 1904, ao sr. Lesko Araújo, proprietário do Seringal “Iza”, seu confinante, por trinta contos de reis, restringindo a sua atividade à outra margem, que denominou “Capatará”, nome de uma barraca já existente ali. Previdente e expedito, foi seu primeiro cuidado, ocupando o “Capatará”, reivindicar-lhe os limites que o longo abandono deixara invadir; e nas extremas com a Bolívia, delimitadas pelo Tratado de Petrópolis, entrando na selva inculta, além do Rapirran, fez explorações de terrenos baldios, tão dilatados e valiosos, num largo trecho do Rio Abunã, que logo se constituiu possuidor do maior Seringal da região, sendo que no Brasil lhe ficava somente a décima parte dele. Numa viagem à cidade de “Ribera Alta”, foz do “Madre de Dios”, no interior daquela República, porventura um dos mais temerários e audaciosos lances de sua vida, penetrando desacom­panhando o cenário das suas recentes investidas guerreiras, onde o ódio contra o seu nome sangrava ainda no coração daquele povo vencido, requereu pessoalmente a posse legal desses terrenos, que lhe foram prontamente concedidos. Assim aparelhado, rico que se tornará com tão dilatado domínio, e com as vantagens especiais que ele lhe oferecia fácil se lhe tornara conseguir o que ambicionava, que nem lhe falecia a coragem para os grandes empreendi­mentos, nem lhe faltavam as fortes qualidades de administra­dor. (Continua…)

 

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 07.03.2022 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

JAP, N° 305. Plácido de Castro ‒ Brasil – Sena Madureira, AC – Jornal Alto Purus – n° 305, 09.08.1914.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   José Pedro Soares Bulcão: nascido na Uruburetama ou Vila do Arraial, num 13 de maio precursor da áurea data brasileira. […] Poeta lírico e mavioso, atestam-no “Parêmias”, estreia de 1910. Vocações artísticas, tão altas, são gigantes do bosque, que não requestam cultivadores para crescer nem frondejar; consigo trazem o dom, assim como os cedros ou os nossos juazeiros em seu verde admirável e opulência. No Instituto do Ceará, onde ocupou desde 1929 a cadeira n° 13, destacou-se Bulcão, o pesquisador das genealogias mais intentadas, mais difíceis de nossa terra. Político, deputado, fez-se jornalista, e advogou neste foro e no acreano. Pobre a ocupar em fim modesto encargo federal, a sua biblioteca semelha ermida ou pequenino templo, santuário votivo das Ciências e das Letras, que tanto ele amou e dignificou. (GOMES)

[2]Altanaria: altivez.

[3]   Coetâneos: contemporâneos.

[4]   Amanho: trato.

[5]   Labéu: mácula.

[6]   Animadversão: ódio.

[7]   Avezados: acostumados.

[8]   Desoras: altas horas.

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