A Terceira Margem – Parte CCCXLII

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XLX

Monumento Arbóreo Tombado, Rio Jaú, A

Quedas de Árvores   

[…] A pequena altura relativa da mata, onde se destacam de momento em momento, à feição de grandes calotas esféricas, as frondes dominantes das samaumeiras, reflete bem a exuberância do solo que favorecendo a multiplicidade das espécies prejudica o desenvolvimento próprio de cada uma delas. Além disto, as condições naturais do meio de algum modo se contrapõem à grande altura dos tipos vegetais. Realmente, estes dispondo, graças à umidade excessiva, de todos os elementos de vida, não precisam procurá-los nas camadas mais profundas do subsolo.

Assim as árvores, de um modo geral, não têm o eixo descendente. As suas raízes irradiam diferenciadas em radículas fasciculadas, quase à flor da terra inconsciente e úmida que ao mesmo passo lhes favorece o crescimento e se opõe a uma exagerada altura capaz de torná-las instáveis. De fato, as que se destacam desta grandeza uniforme a qual desdobra num plano quase de nível as frondes das matas amazônicas criam dispositivos que lhes explicam o porte excepcional.

Consistem na formação tão característica das sapopembas, mercê das quais se alteiam as copas alterosas da samaúma e do caucho. Apesar disto, às menores rajadas de uma tormenta é vulgaríssimo o fato da queda de numerosas árvores, desabando largos lances de floresta. (CUNHA)

Quando comandei a 1ª Companhia de Engenharia de Construção, do 6° Batalhão de Engenharia de Construção, sediada no Abonari, Norte do Amazonas, ao Sul da Terra Indígena Uaimiri-Atroari, nos idos de 1982 a 1983, um curioso fenômeno despertou-me a atenção – o lúgubre estrondo produzido pela queda das grandes árvores.

Funesto Crepitar

Atendendo à uma salutar dinâmica natural, as árvores mais altas e mais antigas, assoladas constante­mente pelas amazônicas intempéries e por elementos da própria biota, que refugiam-se sob suas frondosas copas, acabam por tombar levando consigo a vegetação que lhe circunda. O intrincado cipoal que a cinge e a irmana à mata que a cerca metamorfoseia-se mostrando repenti­namente as cruéis garras de um pacto mortal. O gigante arbóreo, como Menés, o unificador do Alto e Baixo Egito de outrora, arrasta consigo para o eterno descanso a mata que a rodeia em submissa veneração. A queda do gigante arbóreo, o esmagar furioso de troncos e galhos, a tensão produzida pelo cipoal arrastando frágeis arbustos do entorno produzem um estrépito, similar a um crepitar soturno de gigantesca fogueira.

Monumento Arbóreo Tombado, Rio Jaú, AM

O Grito da Copaibeira 

[…] o estouro do tronco velho de um sassafrás ou capivi [copaibeira] oco, que o acúmulo de bálsamo repentinamente fez rachar. (SPRUCE)

As qualidades cicatrizantes do óleo da copaíba (Copaifera sp) foram enaltecidas pelo Padre José de Anchieta, em Carta de Maio de 1560, enviada aos seus superiores:

Das árvores uma parece digna de notícia, da qual, ainda que outras haja que destilam um líquido semelhante à resina, útil para remédio, escorre um suco suavíssimo, que pretendem seja o bálsamo, que a princípio corre como óleo por pequenos furos feitos pelo caruncho ou também por talhos de foices ou de machados, coalha depois e parece converter-se em uma espécie de bálsamo; exala um cheiro muito forte, porém suavíssimo e é ótimo para curar feridas, de tal maneira que em pouco tempo, como dizem ter-se por experiência provado, nem mesmo sinal fica das cicatrizes. (ANCHIETA)

Segundo Spruce, o velho, fragilizado e carcomido tronco de uma copaibeira pode armazenar seiva em tal quantidade que o faz rachar, de repente, provocando um característico estrondo. Consegui confirmar a afirmativa de Spruce com apenas uma fonte na minhas amazônicas jornadas.

O Lamúrio da Palmeira 

No dia 22 (01.1853), às 16h00, quando preparávamos o jantar, fomos surpreendidos pelo som do disparo de fuzil, vindo da floresta existente na margem oposta do Rio, que teria quando muito 73 m de largura. (SPRUCE)

Um ruído em especial, análogo a um tiro de fuzil, surpreende e chama a atenção daqueles que arrostam a Hileia pela primeira vez. Os nativos atribuem tal ruído a Yamadu, Curupira e a tantas outras entidades que segundo sua crença perambulam pela floresta caçando ou mesmo caçoando dos humanos que a invadem contrariando suas leis naturais. Mas repercutamos mais alguns parágrafos de Richard Spruce à respeito do curioso som:

Fiquei intrigado ao escutar tal ruído naquela desolada e inóspita floresta, na qual dificilmente um ser humano se atreveria a penetrar, especialmente usando arma de fogo. […]

Havia muitos anos que ninguém residia à beirado Lago Vasiva, e naquela época não se tinha notícia da presença de mercadores ou viajantes no Cassiquiare, além de nós, evidentemente. Tendo em vista tudo isso, era natural que eu estivesse perplexo. Na realidade o barulho que tínhamos escutado não era exatamente igual ao disparo de um fuzil ou rifle, mas tampouco era um dos costumeiros ruídos que de tempos em tempos quebram o silêncio daquelas vastas solidões, e com os quais eu estava perfeitamente familiarizado. […]

Entrementes, meus índios, tão assustados quanto eu, logo tentaram encontrar uma explicação para a origem daquele inusitado estrondo. Ora disseram, aquilo só podia ser coisa de “Yamadu”, que por ali deveria estar “in própria persona” caçando por aquelas paragens e ele, com certeza, iria mandar-nos um terrível pé-d’água, ou outra calamidade qualquer, para espantar-nos de seu território. […]

Durante muitos anos depois, aqueles estampidos isolados, que escutei vindos da floresta sombria do Lago Vasiva, costumavam frequentar minha lembrança e meus sonhos. […]

E assim foi que, em abril de 1857, enquanto subia o Rio Pastasa, no sopé Oriental dos Andes, escutei de novo aquele som que lembrava o disparo de uma arma de fogo, e bem perto de onde estávamos. Os índios Jivaros, que habitavam aquela área, não usava, arma de fogo, e o ruído que eu acabara de escutar era idêntico ao que tinha ouvido no Lago Vasiva. Intrigado, perguntei ao piloto:

–  Que barulho foi esse?

Ao que ele respondeu:

–  Quer ir ver o que foi?

Aceitei a oferta e entrei no mato atrás dele. Três minutos depois chegamos a um monte de escombros que lembravam o aspecto de um montão de feno – eram os restos do tronco de uma palmeira cuja queda fora a razão do estampido. Era uma palmeira grossa e alta, que quando ereta, deveria ter uns 24 a 30 m de altura. Quando a vitalidade de uma dessas palmeiras se exaure, a copa frondosa primeiro murcha e cai; depois o cerne tenro gradualmente apodrece e é carcomido internamente pelos cupins, até que nada mais resta dele senão uma delgada casca, e quando essa casca não consegue mais suportar seu próprio peso, ela racha e desaba de uma hora para a outra, com um estrondo que lembra o disparo de um fuzil. (SPRUCE)

Dinâmica Florestal 

As mais velhas árvores ao sucumbir atendem a um chamado natural primevo onde a lei da natureza impera e onde a harmonia quebrada por instantes será dentro de poucos decênios devidamente restaurada. Ao presenciar tais fenômenos ficamos estarrecidos, confusos mesmo, pois olvidamos, por vezes, que a selva é um organismo vivo e astuto. Alguns estudos avaliam que a idade média das árvores de 100 cm de diâmetro da Bacia Amazônica é de 500 anos embora, não raras vezes, encontremos troncos de mais de 200 cm que ultrapassam um milênio de idade. Quando esses monumentos arbóreos tombam arrastam consigo outras árvores menores abrindo clareiras proporcionais a seu porte.

Samaúma de 60 m – Mãe das árvores – Rio Negro, AM

A clareira aberta permite que os raios solares penetrem, favorecendo o crescimento de novas árvores que ocuparão paulatinamente o lugar das que feneceram. Logicamente as clareiras abertas vão tornar as árvores situadas nas suas bordas muito mais vulneráveis à ação dos ventos além de provocar localmente uma sensível redução da umidade e elevação da temperatura. Essas mudanças vão provocar, inicialmente, uma mudança radical no tipo de vegetação, a clareira será invadida por plantas oportunistas como cipós, trepadeiras, árvores de tronco oco e de crescimento muito rápido como a embaúba, mas após duas ou três décadas estas abruptas transformações terão sido neutralizadas progressivamente pela dinâmica natural da floreta que recuperará sua antiga fisionomia.

Acampados nas proximidades da Cachoeira Carapanã testemunhamos, mais uma vez, esta magnífica, extraordinária mesmo, e nada sutil dinâmica do Reino Vegetal. Aqueles que desconhecem os mistérios e segredos da nossa Hileia assustam-se, impressionam-se com os ruídos oriundos dos ermos dos sem fim que as trevas solidárias fazem questão de ocultar. É a sobrevivência em jogo, os monumentos centenários abrindo espaço e trazendo a luz benevolente do Astro Rei aos mais jovens. Ao adentrarmos neste Paraíso Perdido devemos manter a mente e os sentidos alertas e racionalmente interpretar as mensagens que os seres da floresta nos enviam.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.11.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

Bibliografia 

ANCHIETA, José de. Cartas, informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta – Brasil – Rio de Janeiro – Officina Industrial Graphica, 1933.

CUNHA, Euclides da. Apresentação do Diário Realizado por Membros da Expedição, “Desde a Partida de Manaus até às Cabeceiras do Purús” – Brasil – Rio de Janeiro, DF – Arquivo histórico do Itamarati, 1906.

SPRUCE, Richard. Notas de um Botânico na Amazônia ‒ Brasil ‒ Minas Gerais ‒ Editora Itatiaia, 2006.FREGAPANI, Gélio Augusto Barbosa. Orgulho e Vergonha ‒ Brasil ‒ Porto Alegre, RS ‒ Defesa Net, 09.03.2014.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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