A Terceira Margem – Parte CCCLXXVII

Epopeia Acreana  

O canoeiro

Aos Entusiastas da Amizade Americana  

E quando Ulysses Grant, mais tarde, vindo à Europa cobiçou a honra de visitá-lo [Victor Hugo], o poeta republicano recusou-se a receber na sua casa “un tel goujat” ([1]). As nossas contas com os negociantes de fraternidade norte-americana são ainda mais sérias. Entretanto, há, entre nós, nativistas, que projetam estátuas a Monroe, julgam praticar ato de republicanos, suscitando para amparo do Brasil o protetorado dos Estados Unidos.

Se esses entusiastas quisessem refletir, eu lhes encomendaria o folheto precioso, com que o Sr. Eduardo Prado acaba de enriquecer a literatura brasileira: “A Ilusão Americana” [2ª edição]. Esse livro teve singular destino: no Brasil foi proibido uma hora depois de posto à venda, isto é, proibido antes de lido; em Portugal, depois de composto na Imprensa Nacional, não pôde ser editado por ela. A sua publicação em São Paulo comprometia as boas relações entre o Marechal Peixoto e o Presidente Cleveland; a sua tiragem em Lisboa embaraçava a reconciliação entre o Ministério Hintze e o Marechal Peixoto.

Sejamos gratos à polícia florianista e à política lusitana. A primeira fez passar o livro pelo cadinho de novos estudos, habilitando o autor a retificar, pelo exame das fontes no “British Museum”, os elementos da sua narrativa; a segunda levou-o a sair à luz em pleno Paris.

Uma e outra conspiraram para dar a maior notoriedade a esse opúsculo, absolutamente novo no assunto, em que, como repositório de verdades ignoradas, é o mais oportuno serviço ao Brasil.

Se, lido ele, ainda restarem, nesse País, fundidores de monumentos monroínos e cunhadores de medalhas benhamitas, estarão, nesse caso, confirmadíssimas as palavras, em que o famoso Almirante, no seu discurso ao “United States Service Club”, se referiu às manifestações oficiais da simpatia brasileira, que selaram a nossa humilhação como reconhecimento dos humilhados. O egrégio Benham atribuía publicamente essas festas a um sentimento, que teve a gentileza de não definir, mas cuja natureza lisonjeira à nossa honra as gargalhadas do auditório militar em Nova Iorque não deixam dúvida razoável:

That friendship is founded on respect with perhaps a little tinge of something else ([2]). (RUI BARBOSA)

A Illusão Americana – Dr. Eduardo Prado

A Illusão Americana
Prefácio 

Este trabalho, já editado no Brasil e agora reimpresso no estrangeiro, merece vir de novo à luz, ainda na falta de próprio interesse. Este despretensioso escrito foi confiscado e proibido pelo governo republicano do Brasil. Possuir este livro foi delito, lê-lo, conspiração, crime, havê-lo escrito. Antes da dolorosa provação que sob o nome de república tanto tem amargurado a Pátria brasileira, nenhum governo se julgou fraco e culpado ao ponto de não poder tolerar contradições ou verdades, nem mesmo as de uma crítica impessoal e elevada.

Eram jovens os nossos bisavós quando foi extinto o Santo Ofício. Desde então, em nosso País, nunca mais o poder ousou interpor-se entre os nossos raros escritores e o seu escasso público. Julgavam todos definitiva esta conquista liberal, mas o governo republicano do Brasil, tristemente predestinado a agir sempre contra a civilização, a todos desenganou. Na República o livro não teve mais liberdade do que o jornal, do que a tribuna, nem mais garantias do que o cidadão. Disse um romano que “os livros têm o seu destino”. O deste não foi dos piores, honrado, como foi, com as iras dos inimigos da liberdade. A própria verdade não proclamou felizes os que sofrem perseguição pela justiça?

Londres, 7 de novembro de 1894. […]

Dr. Eduardo Prado (Karl Ernst Papf, 1901)

A Illusão Americana ‒ Apêndice  

No dia 4 de dezembro de 1893 foi posto este livro à venda nas livrarias de São Paulo. Vendidos todos os exemplares prontos nesse dia, foi às livrarias o chefe de polícia e proibiu a venda. Na manhã seguinte a tipografia em que foi impresso o livro amanheceu cercada por uma força de cavalaria, e compareceram à porta da oficina um delegado de polícia acompanha­do de um burro que puxava uma carroça. O delega do entrou pela oficina e mandou juntar todos os exempla­res do livro, mandando-os amontoar na carroça. O burro e o delegado levaram o livro para a repartição da polícia. No mesmo dia a “Platéa” publicava o seguinte:

A Platéa

Um interview com o Dr. Eduardo Prado:

Como sabem os nossos leitores, apareceu à venda o novo livro do Dr. Eduardo Prado, “A Ilusão Americana”, de cuja aparição nos ocupamos no último número desta folha.

Todos os exemplares postos à venda no sábado foram vendidos. Soubemos nesse dia que a polícia proibiu a venda do livro. O nosso colega Gomes Cardim, por ir lendo num bonde a obra proibida, foi levado à polícia. O mesmo aconteceu com um cavalheiro, de cujas mãos, na Paulicéia, foi arrancado um exemplar por um polícia secreta.

Um redator desta folha foi procurar o autor para ouvir da sua boca as suas impressões relativas ao sucesso do seu livro e o seu parecer sobre a proibição. O Dr. Eduardo Prado recebeu muito graciosamente o nosso companheiro, e não pareceu dar muita importância nem ao livro nem à sua proibição. Eis, mais ou menos, o que ele nos disse:

Na minha infância, havia na rua de São Bento um sapateiro que tinha uma tabuleta onde vinha pintado um leão que, raivoso, metia o dente numa bota. Por baixo lia-se: “Rasgar pode – descoser não”. Dê-me licença para plagiar o sapateiro e para dizer: “Proibir podem, responder não”. Quanto ao honrado chefe de polícia, penso que S. Exª lisonjeou-me por extremo julgando a minha prosa capaz de derrotar instituições estão fortes e consolidadas como são as instituições republicanas no Brasil.

Demais, S. Exª pode dizer-se que, só por palpite, proibiu o livro. Saiu o volume às quatro horas e, às cinco, foi proibido antes da autoridade ter tempo de o ler. Confesso que a publicação foi um ato de ingenuidade da minha parte. Não quero dizer que confiei, e por isso digo antes que estribei-me no art. 1° do Decreto n° 1.565 de 13 de outubro pas­sado, regulando o estado de sítio. O vice-presidente da República e o senhor seu ministro do Interior disseram nesse artigo:

Art. 1° É livre a manifestação do pensamento pela imprensa, sendo garantida a propaganda de qualquer doutrina política.

E com suas assinaturas empenharam a sua palavra nessa garantia. Escrevo um livro sustentando a doutrina política de que o Brasil deve ser livre e autônomo perante o estrangeiro, e adoto o aforis­mo de Montesquieu, de que as repúblicas devem ter como fundamento a virtude. O governo é contrário a essas opiniões, e está no seu direito. Manda, porém, proibir o livro! Onde está a palavra do governo, dada solenemente num decreto, em que diz garantir a propaganda de qualquer doutrina política?

A sabedoria popular diz: “Palavra de rei não volta atrás”.

O povo terá de inventar outro provérbio para a palavra do vice-presidente da República.

O autor recebeu de todos os pontos do Brasil grande número de cartas pedindo-lhe um exemplar do livro proibido. Estas cartas vinham assinadas por nomes dos mais distintos do País, e a todos estes correspondentes peço desculpa por me ter sido impossível aceder aos seus pedidos. Mencionarei somente, para prova de que os republicanos brasileiros, alguns não são inimigos da liberdade de pensamento, uma carta do Sr. Saldanha Marinho, em que este patriarca do republicanismo, saudoso de certo das práticas liberais da monarquia e rebelde às ideias liberticidas de hoje, protestava contra a proibição deste trabalho. A todos e a cada um cabem o agradecimentos do autor.

[…] Com o seu imediato vizinho Meridional, o México, a política dos Estados Unidos terá sido uma política de fraternidade? O fato mais importante dessa política, qual foi? Foi uma guerra. E essa guerra contra o México é pintada com verdade e eloquência pelo historiador americano Hubert Howe Bancroft:

A guerra dos Estados Unidos contra o México foi um negócio premeditado e determinado de antemão. Foi o resultado de um plano de salteio, que o mais forte organizou deliberadamente contra o mais fraco. As altas posições políticas de Washington eram ocupadas por homens sem princípios, tais como os senadores, os membros do congresso, sem falar do presidente e do seu gabinete, e havia a grande horda dos demago­gos e dos politiqueiros, que se comprazia em satis­fazer os instintos dos seus partidários. Estes eram os senhores de escravos, os contrabandistas, os assassi­nos de índios, que, com as suas ímpias bocas macu­ladas de tabaco, juravam pelos sagrados princípios, de 4 de julho, que haviam de estender o predomínio americano do Atlântico até o Pacífico. E esta gente, despida das noções do justo e do injusto, estava disposta cinicamente a reter tudo quanto pudesse saquear, e invocando para isso o princípio único da força.

O México, pobre, fraco, lutando para obter um lugar entre as nações, vai agora ser humilhado, espezinha­do, algemado e vergastado pela brutalidade do seu vizinho do Norte. E este é um povo que tem o maior orgulho da sua liberdade cristã, dos seus anteceden­tes puritanos! Veremos como os Estados Unidos começaram, então, a empregar toda a sua energia em descobrir plausíveis pretextos para roubar a de um vizinho mais fraco uma vasta extensão de terra. E para que? Para aí estabelecer a escravidão. […]

Em 1836, no Congresso americano, exclamava o senador Preston:

A bandeira estrelada não tardará em flutuar sobre as torres do México, e dali seguirá até o cabo Horn, cujas ondas agitadas são o único limite que o Yankee reconhece para a sua ambição. […]

Esta rápida exposição demonstra o que é a fraternidade dos Estados Unidos para os países latinos. Vimos o México; vamos agora à América Central.

“Está no destino de nossa raça”, dizia na sua mensagem de 7 de janeiro de 1857 o presidente Buchanan:

o estender-se por toda a América do Norte, e isto acontecerá dentro de pouco tempo se os acontecimentos seguirem o seu curso natural. A emigração seguirá até o Sul, nada poderá detê-la. A América Central, dentro de pouco tempo, conterá uma população americana, que trabalhará para o bem dos indígenas.

O senador G. Brocon em 1858:

Temos interesse em possuir a Nicarágua. Temos manifesta necessidade de tomar conta da América Central, e, se temos essa necessidade, o melhor é irmos já como senhores àquelas terras. Se os seus habitantes quiserem ter um bom governo, muito bem e tanto melhor. Se não quiserem, que vão para outra parte. Vão-me dizer que há tratados, mas que importam os tratados se temos necessidade da América Central? Saibamo-nos apoderar dela, e se a França e se a Inglaterra quiserem intervir – avante ó doutrina de Monroe! […]

Durante a guerra do Paraguai o ministro americano general Mac-Mahon, em desprezo de todos os costumes internacionais, escrevia para os jornais americanos artigos difamatórios dos aliados. Dizia que López era inocente das crueldades que caluniosamente lhe imputavam os aliados, que as centenas de mortes atribuídas a López tinham sido perpetradas pelos brasileiros, enquanto os paraguaios trabalhavam nas trincheiras; que o povo brasileiro era fraco e efeminado; que o seu exército [a cuja covardia o diplomata americano constantemente alude] era composto de escravos e galés; que a “honra nacional” como nós a entendemos na zona tórrida é coisa bem diversa da honra nacional americana, etc. […]

No Havaí a usurpação americana foi simples e rápida. A raça indígena, isto é, perto de um milhão de habitantes, raça que tem a brandura de índole própria de todo os polinésios, havia perto de um século que ia sendo educada por missionários de várias nações, e tinha chegado já a um grau de civilização que lhe permitiu constituir um governo regular. Há no arquipélago uns quinhentos americanos e uns seis ou oito mil portugueses.

Pois bem, os americanos, auxiliados por um vaso de guerra do seu país, expeliram do governo os indígenas, e, fazendo desembarcar tropa, tomaram conta de todo o país, excluindo inteiramente os havaianos de toda a administração de sua terra. Os governantes americanos, impostos pelas baionetas, decretaram a federação com os Estados Unidos tal qual queriam talvez os insensatos brasileiros que em 1834 apresentaram um projeto análogo na Câmara dos Deputados. O Congresso de Washington não quis a anexação do Havaí, mas ficou aquele país sempre governado pelos americanos. Esta grande e clamorosa iniquidade, este abuso da força, não encontra justificativa. […]

A política americana, em relação aos índios que ela ainda não acabou de exterminar, é uma política de ferocidade inacreditável neste final do século XIX. Os documentos oficiais que se referem à administração dos índios são trágicos. Os inquéritos sucessivos têm demonstrado que o roubo é a regra, quase sem exceção, no trato do governo americano com os índios.

O governo falta com cinismo à fé dos tratados, mata os índios à fome e a tiro, rouba-lhes as terras onde os instala. Os empregados na administração dos índios são de uma desonestidade proverbial nos Estados Unidos. Não há uma voz que conteste isto, e há muitos livros americanos em que as particularidades desta longa campanha de sangue, de morticínio, de roubo e de incêndio vem miudamente narrados. […] Já falamos do muito que contribuíram os Estados Unidos para a duração da escravatura no Brasil pela força danosa do seu exemplo, e também por ter inspirado aos tímidos o receio de que a solução do problema no Brasil fosse a mesma tragédia da América do Norte. Não devemos, porém, esquecer que os americanos contribuíram muito para o tráfico africano no Brasil.

O presidente Taylor, na sua mensagem de 4 de dezembro de 1849, dizia:

Não se pode negar que este tráfico é feito por navios construídos nos Estados Unidos pertencentes a americanos e tripulados e comandados por americanos.

E isto não nos deve causar maior admiração do que nos causa lermos, na mensagem presidencial de 1856, que:

é indubitável que o tráfico africano encontra nos Estados Unidos muitos e poderosos sustentadores.

Dentre as muitas provas da grande parte que os americanos do Brasil tomaram no tráfico, destacaremos o depoimento juramentado do capitão W. E. Anderson, americano, depoimento prestado na legação americana do Rio de Janeiro no dia 11 de junho de 1851. Diz o capitão Anderson que, em 1843, fez o conhecimento de Joshua M. Clapp, cidadão americano, que:

antes e depois daquela época ocupava-se em larga escala da compra e frete de navios americanos para o tráfico. […]

Devemos concluir de tudo quanto escrevemos:

Que não há razão para querer o Brasil imitar os Estados Unidos, porque sairíamos da nossa índole, e, principalmente, por que já estão patentes e lamentáveis, sob nossos olhos, os tristes resultados da nossa imitação;

Que os pretendidos laços que se diz existirem entre o Brasil e a república americana são fictícios, pois não temos com aquele país afinidades de natureza alguma real e duradoura;

Que a história da política internacional dos Estados Unidos não demonstra, por parte daquele país, benevolência alguma para conosco ou para com qualquer república latino-americana;

Que todas as vezes que tem o Brasil estado em contato com os Estados Unidos tem tido outras tantas ocasiões para se convencer de que a amizade americana [amizade unilateral e que, aliás, só nós apregoamos] é nula quando não é interesseira;

Que a influência moral daquele país, sobre o nosso, tem sido perniciosa.

Se a longa série de fatos que apresentamos, se as razões que expendemos não bastassem para chamar à verdade os espíritos ainda os mais rebeldes, bastaria citarmos a opinião do maior dos americanos, para dissipar as veleidades de afeto e os ingênuos senti­mentalismos que nos querem impor a respeito dos Estados Unidos. […]

Deveis ter sempre em vista que é loucura o esperar uma nação favores desinteressados de outra, e que tudo quanto uma nação recebe como favor terá de pagar mais tarde com uma parte da sua independência… Não pode haver maior erro do que esperar favores reais de uma nação a outra… […] (EDUARDO PRADO)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia

EDUARDO PRADO. A Illusão Americana – França – Paris – Editora Armand Colin et Cie, Éditeurs – Libraires de la Société des Gens de lettres, 1895.  

RUI BARBOSA. Cartas De Inglaterra ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Tipografia Leuzinger, 1896.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Un tel goujat: tal admirador.

[2]   Essa amizade baseia-se no respeito, e talvez em alguma coisa mais.

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