Ágeis quando deslizam pelas águas. Estridentes e graciosas. As duas espécies de lontras amazônicas (Mustelidae) têm muitas outras características que despertaram grande interesse do mercado internacional de peles no século XX. Reflexo da intensa caça para fins comerciais, a lontra neotropical e a lontra gigante (popularmente conhecida como ariranha) sofreram severo declínio populacional e redução de sua abrangência geográfica em grande parte das áreas da Pan-Amazônia onde ocorriam originalmente. Quem analisa esse cenário é a bióloga Natalia Pimenta, autora do artigo recém-publicado na revista PLOS ONE.
Com o título Differential resilience of Amazonian otters along the Rio Negro in the aftermath of the 20th century international fur trade, o artigo foi desenvolvido com apoio do Programa de Capacitação Institucional (PCI) do Museu Goeldi pela Mestre Natalia Camps Pimenta em coautoria com os pesquisadores Glenn Shepard (Museu Emílio Goeldi), André Antunes, Adrian Barnett (INPA) e Valêncio Macedo, pesquisador indígena do Projeto de Monitoramento Ambiental e Climático da Bacia do Rio Negro (FOIRN/ISA).
Resultados – Estudos prévios mostraram que pelo menos 23 milhões de animais foram caçados na Amazônia Ocidental de forma predatória para obtenção de peles entre os anos de 1904 e 1969. Segundo os autores da recente publicação, o valor de uma única pele de lontra neotropical chegava a 175 dólares e equivalia ao preço de um rifle de caça, arma que se tornou comum à época e que substituiu técnicas tradicionais, como a armadilha do matapi e o arco e flecha. A pele da ariranha chegou a alcançar o patamar equivalente a três novos rifles, ou seja, cerca de 440 dólares em valor atual.
“Uma série de leis tentou regulamentar esse comércio, até a completa proibição da caça comercial no Brasil em 1967. No entanto, uma extensão do prazo para a liquidação de couros e peles armazenados resultou na manutenção da caça comercial ilegal até 1974. Somente após a adesão do Brasil à Convenção de 1975 sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES), que proibiu completamente o comércio de lontras, houve uma redução significativa na demanda comercial e, consequentemente, na caça legal de animais silvestres”, destacam os autores.
Metodologia – Geralmente, os estudos de uso da fauna neotropical têm optado pela observação de direta de animais terrestres, mas o interesse de Natalia Pimenta se dedicou à discussão de questões do impacto histórico da caça de peles no século XX. Para compreender como as populações de lontra neotropical e ariranha reagiram à caça comercial no passado, a bióloga se valeu do cruzamento de diferentes fontes de dados históricos, ecológicos e etnográficos.
Por um lado, foram analisados registros portuários regionais e manifestos de carga relativos à movimentação de barcos e navios provenientes do rio Negro no porto de Manaus (AM), para rastrear mudanças no montante de peles de lontras e ariranhas comercializadas na bacia como forma de detectar o estado populacional das espécies exploradas em escala regional. E, paralelamente, foram registradas as histórias orais dos índios Baniwa que habitam o rio Içana no alto rio Negro, que testemunharam ou participaram diretamente da caça comercial, para identificar os fatores socioeconômicos que teriam influenciado o comportamento das espécies em escala local.
A partir das diferentes fontes, inferiu-se sobre os aspectos biológicos e ecológicos das duas espécies de lontras amazônicas que possibilitaram que as lontras neotropicais persistissem, enquanto as ariranhas colapsaram frente a caça comercial do século XX na área de fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela.
Os dados apresentados nesta pesquisa apontam uma intensificação da caça comercial no alto rio Negro a partir da década de 1950, que coincide com a penetração dos regatões (barcos comerciais) para o território dos Baniwa nos ríos Içana e Aiary. Os impactos foram claros: “No início dos anos 70 já não havia mais ariranhas no rio Içana”. De acordo com os conhecedores indígenas, os poucos grupos de ariranhas que sobreviveram fugiram para as cabeceiras remotas de longos igarapés, que se tornaram áreas de refúgio para a espécie. Já as lontras neotropicais persistiram em densidades mais baixas do que antes do boom da caça. No entanto, “o desaparecimento das ariranhas e o baixo custo das peles de lontras, somado à redução da demanda comercial movida por medidas legislativas sobre o uso da fauna foi responsável pelo fim do comércio de peles na região”, descrevem os autores.
Terras indígenas – Atualmente, o território alvo do estudo é protegido por cinco reservas indígenas, totalizando uma área de dez milhões de hectares. As reservas são conhecidas coletivamente como Terra Indígena Alto Rio Negro.
“O estudo evidencia que a caça predatória, não regulamentada, é capaz de impactar negativamente as espécies alvo, sobretudo as mais sensíveis, como as ariranhas. No entanto, a recente recuperação da espécie sugere que a criação de terras indígenas é uma medida efetiva para a recuperação e conservação de espécies historicamente exploradas”, pontua Natalia.
Glenn Shepard, antropólogo do Museu Goeldi, também explica que “a colaboração com populações indígenas é fundamental para documentar os impactos de suas próprias atividades de caça, e para manejar a fauna em seus territórios a fim de contribuir para a conservação da biodiversidade.”
Lontras neotropicais – As lontras da espécie Lontra longicaudis são solitárias, de hábito majoritariamente diurno e discreto. São animais de médio porte, chegando a atingir 1,20m e 15kg no máximo. Apesar da aparente recuperação da espécie aos índices populacionais históricos, a espécie segue como “quase ameaçada” na lista vermelha da IUCN devido aos impactos antropogênicos em seu habitat.
Ariranhas – De nome científico Pteronura brasiliensis, a ariranha é o maior carnívoro semiaquático da América do Sul, sendo a espécie de lontra com o maior risco de extinção do mundo. Podendo atingir até 1,80 m e 30kg quando adulta, os indivíduos da espécie possuem hábitos essencialmente diurnos, com elevada taxa metabólica e vivem em grupos sociais de até 20 indivíduos. A perda, descaracterização e fragmentação dos hábitats por atividades humanas são as principais ameaças enfrentadas pela espécie, classificada como “ameaçada” pela lista vermelha da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN, em inglês).
Para saber mais sobre a ariranha, assista ao vídeo da série Aves e Mamíferos do projeto Viva Amazônia do Museu Goeldi.
Texto: Erika Morhy
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