A Terceira Margem – Parte DXCVIII

Jornada Pantaneira 

Cantinière (Adrien Moreau)

Mulheres Guerreiras – Parte I

A lenda das Amazonas guerreiras percorreu todas as orbes celestes. Ela pertence àqueles círculos uniformes e estreitos de sonhos e ideias em torno dos quais a imaginação poética e religiosa de todas as raças humanas e todas as épocas gravita quase que instintivamente. (Von Humboldt)

Amazonas

É do Frei Gaspar de Carvajal o primeiro, e “único”, relato daquele que teria sido, supostamente, um fortuito contato com as temíveis Amazonas ameri­canas. Carvajal afirma que mesmo cansados, doentes e debilitados em decorrência da carência alimentar e da extenuante jornada pelo Rio-Mar, os 59 homens en­frentaram bravamente as famosas Valquírias Latinas.

As valorosas indígenas, hábeis no manejo do arco e da flecha, bem nutridas, formosas e adestradas para guerra, foram derrotadas por um punhado de espanhóis famélicos e combalidos.

O exagero das narrativas corria parelha com a ingenuidade dos ouvintes. […] A propensão tendia para deformar tudo. O próprio Pero Vaz de Caminha, na carta enviada a D. Manuel, fabulava a respeito das índias, que a seus olhos propiciatórios pareciam quase tão belas, como as damas de Lisboa. Era este o espírito da época. (Raymundo Moraes)

Os relatos de Carvajal sobre a expedição de Orellana são fantasiosos, superlativos em relação às riquezas da terra e da população nativa e por diversas vezes contraditórios. Seus devaneios, porém, atingem o clímax ao fomentar a lenda das Amazonas.

Guerreiras Mundurucus

A mais formidável e cruel etnia que já existiu no Médio e Alto Amazonas foi, sem dúvida, a dos “Senho­res da Guerra Mundurucus”. Estes nativos americanos adestravam seus descendentes, desde cedo, numa rígi­da disciplina militar e consideravam o combate como a atividade mais nobre e gratificante da vida de um guerreiro. O porte físico do “Povo Mundurucu” impres­sionava, eram altos, dotados de invejável compleição física e portadores das mais belas e elaboradas tatua­gens do planeta. Os complexos desenhos eram grava­dos quando o jovem guerreiro atingia seus oito anos de idade e eram ampliados, com o passar dos anos, no inverno amazônico, até cobrir-lhe inteiramente o corpo.

No combate, os Mundurucus, se faziam acompa­nhar das mulheres que carregavam suas flechas e, se­gundo antigos relatos, eram capazes de apanhar as flechas inimigas em plena trajetória. A participação das mulheres no combate, comum em tantas culturas, au­xiliando e incentivando e, eventualmente, substituindo os maridos abatidos, pelos inimigos, na peleja gerou a criação do mito das Amazonas brasileiras.

Intrepid Women (CARDOZA)

As Rabonas Latinas

Da narrativa da viagem do francês Laurent Saint-Cricq, mais conhecido pelo pseudônimo de Paul Marcoy, na sua obra “Voyage a travers l’Ámérique du Sud de l’Océan Pacifique à l’Océan Atlantique”, vamos nos deter no trajeto de 3.300 km que o mesmo percorreu pelo Rio Amazonas desde a fronteira peruana até Belém do Pará, vencidos em cerca de quatro meses, em meados de 1847. Vejamos o que nos conta Marcoy a respeito das guerreiras americanas:

No lugar de poucas mulheres lutando entre os índios na embocadura de um afluente insignificante do grande Rio, esse último tornou-se inteiramente po­voado de mulheres guerreiras cuja audácia era com­parável à das Amazonas asiáticas. […] Raleigh, Laet, Acunha, Feijó, Sarmiento e Coronelli escreveram copiosamente sobre o tema. Além de refutar a existência passada e presente das Amazo­nas americanas como um povo separado, e mesmo como um corpo separado de guerreiros, queremos salientar aqui que viragos ([1]) ou marimachos ([2]) não são absolutamente raros no continente meridional.

Muitas mulheres acompanham na guerra seus maridos e irmãos, seja contendo o seu ímpeto, seja estimulando-os quando necessário com seus gritos e invectivas ([3]). Elas recolhem as lanças que foram arremessadas, provêm os guerreiros de flechas e quando a luta termina cuidam dos feridos e despo­jam os mortos. Essa é a parte que as mulheres tomam na guerra entre os Murucuris no Leste, os Mayorunas no Oeste, os Otomacs no Norte e os Huatchipayris no Sul. O leitor lembrará de como a brava mulher Ticuna do Atacuary afundou a lança no jaguar que havia arran­cado o escalpo do seu marido. Esse temperamento belicoso do sexo frágil na América do Sul não se limita às Índias que vivem na mata.

Ele caracteriza também as suas irmãs civilizadas que vivem nas cidades serranas da costa do Pacífico. As mulheres dos soldados chilenos seguem-nos na guerra com devoção canina, embora voltem a abandoná-los quando a paz é concluída. Elas preparam a comida e os abrigos campais, participam das expedições de saque para acrescentar algum luxo ao seu pobre cardápio e ajudam a devastar as terras conquistadas.

Também as “rabonas” do Peru, ao mesmo tempo “huarmipamparunacunas” e vivandeiras ([4]), formam batalhões às vezes mais numerosos que os esquadrões de guerreiros e os precedem como bate­doras ou os seguem como retaguarda. Elas recolhem tributos nos povoados que atravessam e, quando há oportunidade, saqueiam, pilham e queimam sem o menor escrúpulo. Elas são, sem dúvida, verdadeiras Amazonas de caráter forte e selvagem.

No tempo em que Francisco de Orellana e seus companheiros desceram o Rio, esses fatos eram porém ignorados pelos europeus; e a visão de mulheres lutando entre os índios, ou incitando-os à luta foi para os aventureiros tão nova quanto surpreendente.

Quando eles voltaram para a Espanha, o que conta­ram a seus compatriotas foi, como já observei, logo modificado e desfigurado pelo exagero e pelo gosto do maravilhoso que lhes é natural e que parecem ter herdado dos Mouros, seus antepassados. É a esse costume de ampliar, enobrecer e idealizar fatos ordinários ‒ um hábito que se tornou uma segunda natureza para os espanhóis ‒ que as índias do Rio Nhamundá devem a honra de serem comparadas às célebres mulheres guerreiras da Trácia.

Estando agora cabalmente demonstrado que as vira­gos de Orellana e suas descendentes viveram e vivem em todas as partes da América do Sul, elas jamais existiram em qualquer parte do continente como um corpo governante.

As obras dos sábios que tratam esse conto romântico como uma história verdadeira não tem mais valor que o papel velho em que estão escritas, e que seria mais útil para fazer embrulhos num armazém. (MARCOY)

As “Vivandières” e “Cantinières” Francesas

Vivandières” e “cantinières” é a designação francesa para as mulheres que acompanhavam as Expedições Militares escoltando oficialmente os exér­citos ou mesmo particularmente a seus cônjuges, pa­rentes e amantes abastecendo-os com alimentos, bebi­das e realizando serviços lavanderia e costura.

Desde as priscas eras havia uma forte necessi­dade de apoio logístico para unidades militares acima e além do que os exércitos podiam aprovisionar.

Na maior parte das vezes esses auxiliares eram formados pelas esposas e filhos dos soldados, mas infiltravam-se, na coluna de marcha, prostitutas e uma comitiva bastante diversificada que Alto Comando precisava identificar e livrar-se dos indesejáveis. Nos idos de 1780, a maioria dos exércitos europeus proibiu a presença feminina nos campos de batalha.

A monarquia francesa, por sua vez, tentou re­gular a sua presença no Teatro de Operações e oficiali­zar sua categoria, mas estas reformas foram interrom­pidas, em 1789, com a eclosão da Revolução Francesa.

A partir de 1792, o Governo Revolucionário Francês envolveu-se em guerra com outros países europeus e, em consequência, o efetivo do seu exército aumentou drasticamente, assim como a necessidade destes auxiliares nos acampamento.

Muitas mulheres e crianças seguiam os exércitos franceses comprometendo as operações militares. O governo francês, em abril de 1792, aprovou um decreto limitando o número de mulheres nos exércitos a duas “vivandières” (fornecedoras de alimentos) ou “cantiniè­res” (fornecedoras de bebidas), por regimento, que venderiam alimentos, bebidas e prestariam serviços de costura e lavanderia às tropas.

A lei considerava as “vivandières” essenciais pa­ra as operações militares e o Alto Comando do Exército Francês considerava-as fundamentais para manter a operacionalidade da Força. As “vivandières” e “canti­nières” prestavam serviços que o Exército não podia oferecer e ajudavam a evitar a deserção, fornecendo bebidas, tabaco, refeições caseiras e companhia no campo de batalha.

A determinação de que toda “vivandière” tivesse de ser casada com um soldado do regimento em que ela servia ajudou a prevenir a prostituição e a disse­minação de doenças venéreas nas tropas. Os filhos do casal que nasciam e cresciam durante a Campanha se tornavam, normalmente, soldados ou “vivandières” quando atingiam a idade adulta.

Em 1799, quando Napoleão Bonaparte tomou o poder na França, o exército voltou a se expandir e o número de “vivandières” cresceu. A partir de então os filhos das “vivandières” e “cantinières” tornaram-se “enfants de troupe” ([5]). Os meninos recebiam uniforme, salário e rações dos dois até os dezesseis anos de idade, quando se alistavam como soldados. Esse siste­ma vigorou, até 1885, fornecendo uma importante fonte de mão de obra já qualificada.

Durante o combate, muitas “vivandières” se deslocavam até as linhas de frente distribuindo conha­que aos soldados empenhados no duro combate, forne­cendo-lhes um importante aditivo para tomar coragem de enfrentar o fogo inimigo e, por isso, milhares delas tombaram derramando seu sangue pela Pátria.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 12.06.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia    

MARCOY, Paul. Viagem pelo Rio Amazonas ‒ Brasil ‒ Manaus, AM ‒ Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2006.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Viragos: mulheres varonis. (Hiram Reis)

[2]    Marimachos: mulheres com modos de homem. (Hiram Reis)

[3]    Invectivas: insultos. (Hiram Reis)

[4]    Vivandeiras: mulheres que se encarregavam dos mantimentos das tropas em marcha. (Hiram Reis)

[5]    “Enfants de Troupe”: Filhos do Regimento. (Hiram Reis) 

Nota – A equipe do EcoAmazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias