A Terceira Margem – Parte DLXXVI

Jornada Pantaneira

A Retirada da Laguna –Parte XIV

XIV

Continua a Marcha. Temos o Inimigo à Frente Novo Sacrifício de Bagagens. Faltam os Víveres. Incêndios e Temporais. Escaramuças Incessantes.

A 12.05.1867, ao romper d’aurora, levantamos acampamento e, como de véspera, recomeçou a marcha por entre a macega alta. Longas voltas tivemos de dar para transpor o José Carlos, evitando alguns dos brejos profundos de onde lhe nascem as águas. Avançamos para o Norte. Prome­tia-nos Lopes que, naquela mesma tarde, podería­mos acampar numa garganta funda, onde nada te­ríamos a temer dos paraguaios. Ao longe os víamos também a procurar passagem, mas como quem não mostrava conhecer, tanto quanto nós, o terreno por onde nos seguiam. Alentou-nos o dia todo a esperança de bom acampamento; demonstrava o nosso Guia plena segurança, apontando-nos os fogos que os paraguaios haviam acendido em vários pontos e procurando demonstrar-nos que ainda desta vez não conseguiriam barrar-nos o caminho. Graças a ele conservávamos a dianteira embora estivéssemos a ponto de perdê-la. No momento em que o Sol, já declinando, tornara-nos a marcha menos penosa, mandou o Comandante da artilharia prevenir ao Coronel que os animais atrelados aos canhões estavam exaustos, havendo-se mesmo deitado alguns.

Nem eles nem o pequeno resto de rebanho, que ainda conservávamos, nada tinham podido comer ou beber desde a noite de 12.05.1867. Tornou-se, pois, forçoso estacarmos. Paramos; nada mais havia a fazer. Estabeleceu-se a coluna sobre pequena eleva­ção, em parte coberto de mato à extremidade do qual havia uma fonte.

Apenas ali nos instaláramos, começaram as lufadas de vento Sul, que soprava rijo, a trazer-nos de longe o calor do fogo que ao nosso encalço progredia no campo. Já Lopes, porém, pusera em movimento todo o pessoal, de que podia dispor, ordenando que a to­da a pressa se cortasse a macega, em torno de nós, e fosse carregada o mais longe possível.

Ele próprio, a tudo atendendo, providenciou para que os soldados vigorosamente a cobrissem de terra e a calcassem bem, o que se não pôde execu­tar sem muito sofrimento e grandes esforços dos trabalhadores. Era para nós questão de vida e morte e as ordens do Guia não representavam senão a expressão da mais rigorosa necessidade.

Lopes, a grande personalidade para nós outros, nesta cena do incêndio da macega, dando ordens por toda a parte, multiplicando-se, projetando-se sobre a cortina de chamas, ou desaparecendo, em suas solu­ções de continuidade, não era uma figura de mera teatralidade. Sem ele nos perderíamos!

A não serem tantas precauções, a fumaça nos asfixiaria; depois, quando o fogo nos chegou, quando folhas e galhos, amontoados em torno de nosso refúgio, acabaram, apesar de todas as precauções, por inflamar-se, a seu turno, dali saíram imensas línguas de fogo que como nos lambiam, ora alçando-se ao céu, ora deprimidas pelas correntes de ar variáveis e rápidas, que as impeliam, silvando furiosamente por cima de nossas cabeças.

Vários homens sofreram queimaduras profundas e um até caiu morto, asfixiado. Afinal este inimigo, esgotado pela própria violência e não achando mais alimento perto de nós, começou a afastar-se, conti­nuando o caminho para o Norte. Quando nossa gen­te, extenuada e morrendo de sede, após esta luta acrescida à fadiga da marcha, correu à fonte vizinha do acampamento, ali achou os paraguaios embosca­dos. Nada menos de duas Companhias foram pre­cisas para desalojá-los.

Aos últimos clarões do dia vimos este destacamento que se formara a certa distância, juntar-se ao grosso dos esquadrões inimigos, que em boa ordem desfi­lavam, bandeiras desfraldadas, ao toque dos clarins, evidentemente para nos provocar e, apressando-se, ao que nos pareceu, em ocupar o local exatamente onde a princípio quisera Lopes acampar.

Algumas balas que lhes despejamos vieram disten­der a animosidade dos nossos, exasperados pela sua cruel e covarde tentativa de queimar-nos vivos. Foi com verdadeira satisfação que verificamos quanto os nossos projéteis aceleravam a marcha destes adver­sários odiosos. Todavia a provação por que acabá­ramos de passar, naquele campo convertido em for­nalha, era das que sobre o homem exercem irresis­tível ação física.

A enorme elevação de temperatura, subitamente ocorrida, bastava para explicar o acabrunhamento em que caímos e o desfalecimento moral que se lhe seguiu. Não sabíamos, aliás, como seria possível avançar.

Estavam os animais de tiro de nossos canhões esfalfados, sobretudo os bois mais ainda que as mulas; e incapazes de dar um passo. No entanto era mais que urgente não perdermos um instante em recomeçar a marcha.

Entre uma infinidade de razões não devíamos deixar tempo ao inimigo, que agora nos precedia para fortificar algum ponto à nossa frente, impedindo-nos a passagem. Sabe-se quanto os paraguaios são ap­tos em movimentos de terra, cavar fossos e levantar redutos. Vem-lhes a tradição dos seus mestres, os Padres da Companhia de Jesus, que cultivavam todas as artes, sobretudo a arquitetura e a Engenharia Militar.

Este imenso perigo de nossa situação inspirou ao Comandante a ideia imediata de ainda diminuir a bagagem para reforçar as juntas e parelhas das peças e carros manchegos ([1]). Entendeu-se com os oficiais, a quem competia tal providência, e estes na­da lhe objetaram. Ficando reduzidos ao que sobre o corpo traziam, queimaram algumas últimas e míse­ras superfluidades, uma outra mala e barraca.

Desde o combate de 08.05.1867 nada mais tinham os soldados que carregar ou que perder; haviam atirado fora até os capotes que os embaraçavam, quando perseguiam os inimigos. As bestas, libertas da carga foram destinadas ao transporte do cartu­chame.

Para maior desgraça nossa tivemos, essa noite, uma chuva torrencial, verdadeiro dilúvio, que nos pôs atônitos, embora já houvéssemos experimentado outra, e terrível, e, pela manhã, lhe víssemos os prenúncios, o acúmulo de imensas nuvens bronzea­das, constantemente sulcadas pelos relâmpagos, por entre contínuo trovejar.

Durante toda a noite mantiveram-se de pé os nossos soldados encostados às espingardas que haviam fincado no solo pela baioneta.

Esta vigília assinala-se em nossas reminiscências não menos penosamente do que a de 05.05.1867, entre tantos outros pousos desastrosos. É preciso haver alguém assistido, com a alma tomada de tristeza, a estas tremendas crises da natureza, para poder ava­liar exatamente a extensão de sua influência sobre o organismo humano. Recursos não os tínhamos.

Não havia em todo o acampamento uma só gota de álcool capaz de entreter o calor interno que nos fugia. O fogo, última esperança, não podíamos acendê-lo sob tamanho temporal.

Foi neste estado de universal desfalecimento que ainda nos veio acabrunhar a confirmação de quanto declarara o ferido paraguaio. Curupaití e Humaitá resistiam sempre e a guerra estava longe do seu término. Soubemo-lo por um número de “El Sema­nário de Assunção”, que acabava de ser encontrado sobre um inimigo morto numa escaramuça. Espa­lhou-se o boato, com a rapidez de propagação das más notícias, extinguindo as últimas centelhas da confiança e da coragem: foi-nos impossível marchar a 13.05.1867.

No dia seguinte [14.05.1867], caía a chuva, ainda ao alvorecer, mas já um tanto mitigada, quando deixa­mos este inóspito acampamento para entrar em cer­rada mata que o nosso Guia, com grande sagaci­dade, julgara propício escolher.

Ali caminhamos durante mais de duas horas e não sem muitas dificuldades. Assim evitávamos, porém, o desfiladeiro que os paraguaios ocupavam e onde, sem dúvida, supunham aniquilar-nos. Com razão mostrou-se Lopes desvanecido do êxito desta mano­bra. Havendo alguém indagado que rumo seguira, gostosamente pôs-se a rir:

‒  O de minha cabeça.

Se via consultar a bússola, declarava que a agulha grande só servia para se fazerem bonitos desenhos destinados a divertir passeantes. Convenceram-no, contudo, que deixara o rumo Norte e assim se atrasara:

‒  Sim, momentaneamente, respondeu, nos desvia­mos para os campos da Pedra de Cal, que desco­bri e em 1864 o meu amigo, o General Leverger, viria visitar comigo, se não arrebentasse a guerra.

Ao meio-dia estávamos em frente a um cerrado de taquaris, através do qual precisamos abrir caminho, a foice e a machadinha, o que muito tempo nos tomou, dada a dureza e a elasticidade desta espécie de bambu e também a má qualidade do aço de nossa ferramenta. Às 14h00, ainda estávamos às voltas com este serviço. Nosso Guia, sobretudo, mal podia sopitar a impaciência.

De tempos a tempos ele próprio tentava varar o matagal, deitado sobre o pescoço da montaria, procurando entrever alguma passagem para o campo. Como não conseguisse, porém, víamo-lo voltar descontente, agitado, e com as roupas rasgadas.

Afinal dali saímos às 15h00; às 17h00, transposta a resistente barreira, continuou toda a coluna a cami­nhada, já ao cair do dia, para uma elevação situada a um bom quarto de légua, e à base da qual belo arvoredo indicava a vizinhança de uma fonte. Já lá se achava instalada avultada tropa paraguaia, dis­posta a acampar. Tinham os cavaleiros desmontado, embora ainda em forma. Bastaram duas granadas de nossas peças da vanguarda para que se apressassem em nos ceder o lugar. Ali nos estabelecemos tranqui­lamente. Os nossos animais encontraram pasto regular e toda a água de que careciam.

Carneamos à tarde os bois mais cansados das carretas. Dada a insuficiência e a má qualidade dos víveres, foi uma distribuição quase irrisória.

A 15.05.1867, ao romper da aurora, estávamos numa planície coberta de macega, onde um incêndio, em outro momento do dia seria de se recear. Obje­tou Lopes que a erva, embebida do orvalho noturno, só poderia arder depois de exposta, por algum tempo, aos raios solares. A partir deste dia adotamos a norma de, desde muito cedo, pôr a tropa em movimento, ativando, quanto possível, a primeira marcha. Em vasta extensão oferecia o terreno a atravessar­mos uma série de montículos intervala­dos, com certa regularidade, por extensos pântanos de onde saem vários afluentes do Apa.

A passagem destes pântanos tornava-se difícil, com a chuva torrencial de 13.05.1867, e ora a artilharia, ora algumas carretas, se atolavam. Estávamos a vencer um destes difíceis passos, no momento de transpor uma destas sangas estreitas, quando patru­lhas inimigas, em número considerável, vieram dar-nos, não uma carga, mas realizar como que um reco­nhecimento bastante prolongado, a fim de nos fazer crer, talvez, que desejavam algum embate sério.

Logo, entretanto, formaram-se em colunas e retira­ram-se, o que tanto mais nos surpreendeu, quanto, por trás deles, divisáramos um enxame de atiradores que, dispostos em pequenos grupos, pareciam mirar a rarefação de nossas fileiras para facilitar a tarefa da cavalaria, de que diversos destacamentos apareciam, prestes a entrar em fogo.

Nestas circunstâncias não podíamos atacar a infan­taria e tivemos de lhe suportar o fogo. Felizmente era-lhe a pontaria má, afoita, incerta, como sempre notáramos entre os paraguaios. Empregavam cartu­chos volumosos, produzindo grande recuo.

Dir-se-ia que desejavam, sobretudo, fazer ruído com as armas e não obter um efeito útil. Certo é que lhes faltava suficiente aprendizagem e exercício.

Ainda desta vez pouco mal nos fizeram. Passaram suas balas por cima de nossas cabeças e só tivemos dois homens fora de combate. Apontávamos muito melhor; e várias vezes lhes perturbamos a forma­tura. Vimo-los, então, usar de manobra nova: deita­vam-se ao abrigo dos acidentes do terreno, ao seu alcance; e destes esconderijos nos faziam fogo.

Surgiam uma ou duas cabeças nas cristas das pe­quenas elevações e, imediatamente, se escondiam, após alguns tiros disparados a esmo. Quase não respondemos a este fogo. Um pouco mais ao longe havia, no entanto, sobre um planalto bastante extenso, um grupo de cavaleiros, que faziam empinar os cavalos, soltando vivas ao Paraguai e ao Marechal López. Como se adiantasse ao alcance de nossa artilharia, atirou esta, retrocedendo o grupo lentamente.

Um deles, porém, deixado de observação, imóvel so­bre o cavalo, parecia afrontar-nos. Atirou-lhe o Major Cantuária tão certeira granada que, caindo às patas do cavalo, cobriu-o e ao cavaleiro, de terra e depois, ricocheteando, até um bosque próximo, onde havia gente, explodiu com bastante efeito para que pudés­semos notar o rebuliço. A custo conteve a sentinela a cavalgadura, mas não arredou do lugar e assim per­demos o gosto de sobre ela atirar.

Julgando o Coronel que esta demonstração só podia atrasar-nos, ordenou que o 20° Batalhão atraves­sasse o brejo, e depois o resto da coluna, mas desde que recomeçamos a marchar surgiram de todos os pontos da campina chamas que, conglobando-se, tomaram aterradoras proporções.

Lopes que, durante toda a longa escaramuça, não conseguira disfarçar uma inquietação, que jamais lhe notáramos, reconquistou, então, toda a energia da decisão. Mandou imediatamente encostar a coluna a dois capões de mato que, momentaneamente, nos preservaram das labaredas laterais e depois fez com que se cortasse a macega, numa área ainda maior do que na primeira vez, e onde tivemos que sofrer menos a aproximação do fogo, mas onde foi a fuma­ça muito mais terrível, devido à imensa extensão do campo.

Tem este gênero de incêndio feição toda especial e de que nem uma cidade inteiramente devorada pelo fogo poderia dar ideia. Aumenta conforme a distância de onde vêm as chamas tangidas pelo vento, que as domina, e mais formarão elas, em todos os obstácu­los encontrados, contra correntes espalhadas em todas as direções, animadas como de inextinguível furor.

Do combate, que no ar travam, saltam clarões ofus­cantes, ardentias e deslumbramentos que cegam e abrasam a pele do rosto. Um dos capões a que nos encostáramos compunha-se em grande parte desta espécie de bambus chamada taboca, cuja haste nos internódios é oca.

Nelas produzia o fogo detonações semelhantes às do canhão: começamos a crer que a artilharia paraguaia tornara a entrar em linha. Pôs-se o velho Lopes a zombar:

‒  Bem se vê que os senhores são novatos nesta terra.

Pouco depois, como o vento amainasse e a atmos­fera refrescasse um pouco, quisemos prosseguir a marcha; mas o Sol, reverberado pelo terreno escal­dante e calcinado, tornou-a, durante o breve tempo em que a suportamos, uma provação que aos mais robustos arrancava involuntários gemidos.

Não podiam os olhos conservarem-se abertos no abrasado ambiente que atravessávamos. (TAUNAY, 1874) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 21.04.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Manchegos: com munição de artilharia. (Hiram Reis)

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