Um peixe no meio do deserto: fósseis na Venezuela iluminam a história da Amazônia

Fósseis de 1,5 milhão de anos coletados no deserto de Urumaco, Venezuela, incluem peixes e jacarés que hoje ocorrem apenas na Amazônia, centenas de quilômetros ao sul. Cientistas apontam que esse é mais um indício de que Amazônia se estendia mais ao norte, mas se retraiu, há milhões de anos.

Postada em: Museu Goeldi

Agência Museu Goeldi – Uma pesquisa desenvolvida por equipe internacional de cientistas analisou mais de 1700 fósseis de seres que viveram aproximadamente 1,5 milhão de anos atrás, em região próxima a cidade de Urumaco, noroeste da Venezuela. O lugar hoje tem clima desértico, mas os cientistas encontraram fósseis de animais como jacarés, peixes de água doce e roedores, que hoje em dia ocorrem apenas centenas de quilômetros ao sul dali, dentro do bioma amazônico.

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A análise dos fósseis de Urumaco indica que ambientes úmidos da Amazônia antigamente se estendiam até essa região da Venezuela, mas se retraíram a partir de 1,5 milhão de anos atrás. Indica também a extinção de algumas linhagens de seres vivos e que, em decorrência de mudanças naturais drásticas do período, paisagens compostas por florestas e áreas abertas permaneceram por algum tempo naquela região, mas isoladas, como fragmentos, antes de desaparecer totalmente e dar lugar ao atual deserto.

Postada em: Museu Goeldi

Um artigo com os resultados dessa pesquisa foi publicado no periódico Swiss Journal of Palaeontology. A pesquisa foi liderada pelos paleontólogos Jorge D. Carrillo-Briceño (Universidade de Zurique, Suíça) e Marcelo R. Sánchez Villagra, (Museu Paleontológico de Urumaco, Venezuela) com colaboração de outros 17 cientistas de universidades e centros de pesquisa de 12 países.

Dois pesquisadores brasileiros compõem essa equipe, o zoólogo José Birindelli, da Universidade Estadual de Londrina, e o paleontólogo Leonardo Kerber, atuante no Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Universidade Federal de Santa Maria e no Museu Paraense Emílio Goeldi.

A pesquisa só foi possível por meio da colaboração de vários pesquisadores e comparações com fósseis depositados em diversas coleções científicas pelo mundo, incluindo a Coleção de Paleontologia do Museu Goeldi, que guarda importante acervo com fósseis do período Mioceno na Amazônia, como os coletados na Formação Pirabas, no litoral do Pará, e na Formação Solimões, nos estados do Acre e Amazonas. O pesquisador Leonardo Kerber, um dos autores do estudo, destaca que “os fosseis de ambas as unidades fossilíferas ajudam a entender a evolução do ambiente e da biodiversidade em território onde se localiza a Amazônia legal. No caso dos fósseis da Formação Pirabas, a coleção paleontologia do MPEG possui o maior acervo de fósseis de peixes-boi (Sirenia) do Brasil”, por exemplo.

Postada em: Museu Goeldi

A pesquisa – O período geológico conhecido como Mioceno começou aproximadamente 24 milhões de anos atrás e se estendeu por mais ou menos 19 milhões de anos. Foi um período de grandes mudanças em ambientes da Terra. Nesse período, por exemplo, o continente africano, até então isolado, juntou-se à Ásia, permitindo uma série de migrações de animais.

Na América do Sul, o litoral do que hoje são Venezuela e Colômbia tinha um clima definido por um sistema complexo de rios, lagos e aquíferos que fluía do oeste da Amazônia em direção a onde hoje se encontra o Mar do Caribe. Isso fazia com que animais, plantas e outras formas de vida da região Amazônica mais ao sul se estendessem até essa área. Fósseis formados entre 10 e 8 milhões de anos atrás, e encontrados nos atuais estados do Acre e Amazonas, indicam que nesses estados havia áreas alagadiças gigantescas, como o atual Pantanal brasileiro.Acontece que entre 11 e 5 milhões de anos atrás, no final do Mioceno e início do período conhecido como Plioceno, mudanças drásticas ocorreram. Uma delas a elevação das montanhas que formam a parte norte da cordilheira dos Andes.

Ao longo de milhões de anos, esses fenômenos mudaram o regime hidrológico dessa parte do continente, fazendo com que o bioma amazônico se encolhesse gradualmente para o sul, criando assim “barreiras” naturais para muitas formas de vida que antes transitavam livremente do oeste da Amazônia até o extremo norte da América do Sul.

Para entender essa história, cientistas analisam indícios como os fósseis, que são remanescentes de organismos vivos, preservados naturalmente por milhões de anos. Nesta parte da América do Sul, um dos sítios mais importantes com numerosos fósseis do Mioceno está na formação de San Gregorio, próximo à cidade de Urumaco, na Venezuela. Na mesma região, vestígios do período geológico posterior, o Plioceno, também ocorriam, mas eram bem mais raros.

Para preencher essa lacuna, pesquisadores realizaram expedições entre 2007 e 2020 em busca de fósseis. Um dos objetivos era compreender como ficaram as formas de vida e condições ambientais depois das mudanças drásticas do Mioceno, já em períodos mais recentes do Plioceno e Pleistoceno (que se estenderam desde 5 milhões até 11 mil anos atrás).

Resultados – A partir dessas coletas, foram analisados mais de 1700 fósseis, incluindo peixes, anfíbios, crocodilianos, quelônios, lagartos, serpentes e mamíferos, representantes de 55 táxons do final Plioceno e início do Pleistoceno (aproximadamente 1,5 milhão de anos atrás). Como muitos dos fósseis são pequenos, incluindo até pólen de plantas, foram peneirados aproximadamente 200 kg de sedimentos para separá-los.

Entre os fósseis encontrados em Urumaco, estão diversos peixes de água doce e também serpentes, como a falsa coral Anilius e a sucuri Eunectes. Foram registrados também jacarés (Caiman) e mamíferos, incluindo representantes de linhagens tipicamente sul-americanas, como marsupiais (Didelphis) e preguiças-gigantes (cf. Proeremotherium).

Entre os mamíferos encontrados em Urumaco, estão os primeiros representantes de um dos maiores eventos biogeográficos que já aconteceram em nosso continente – o Grande Intercâmbio Biótico Americano (GIBA), como camelídeos, o procionídeo Chapalmalania, e roedores cricetídeos. O GIBA foi uma troca biótica entre a América do Sul e Américas do Norte e Central que ocorreu majoritariamente entre o final do Plioceno (2,7 milhões de anos) e o Pleistoceno (até cerca de 120 mil anos).

Antes do Plioceno, organismos terrestres não podiam passar livremente entre esses continentes pois o Istmo do Panamá, a faixa de terra que liga os continentes atualmente, ainda não havia sido formado. Por isso, a América do Sul estava praticamente isolada do hemisfério norte. Assim, após a formação dessa conexão terrestre, vários organismos migraram de uma região a outra.

O paleontólogo Leonardo Kerber explica que essa “troca” biótica alterou profundamente a composição faunística do continente, fazendo com que grande parte dos mamíferos que habitam nosso continente atualmente sejam de origem holártica, ou seja, de habitats ao norte do hemisfério norte: “a maior parte dos mamíferos predadores que habitam a Amazônia são felinos e canídeos, herbívoros de grande porte são cervídeos, taiassuídeos, tapirídeos, todos táxons de origem holártica”, exemplifica Leonardo.

Extinções – Outra informação importante registrada pelos pesquisadores é que entre os fósseis de San Gregorio estão presentes representantes de linhagens que, no mesmo período, já haviam sido extintas em regiões mais ao sul do continente, como os ungulados Interatheriidae e roedores Neoepiblemidae.

Isso reforça hipóteses de que regiões mais próximas à linha do equador acabam “guardando” por mais tempo, de modo isolado, populações de animais que antes se distribuíram de forma mais ampla, mas que acabaram por sumir completamente primeiro nas regiões mais ao sul, por serem mais suscetíveis a mudanças climáticas e ambientais. Os dados reunidos pelos pesquisadores, assim, ajudam a entender como surgiram e evoluíram ambientes da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo.

 Artigo: A Pliocene–Pleistocene continental biota from Venezuela (2021), publicado no Swiss Journal of Palaeontology

 Texto: Uriel Pinho, com informações dos autores.

PUBLICADO POR:    MUSEU GOELDI 

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