A Terceira Margem – Parte CXXXVII

Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XIII

FOZ DO BREU/AC – Google maps

Seringueiros Brasileiros II 

Extração da Borracha 

Antigamente, para colher a goma, cingia-se a árvore com um cipó que envolvia o tronco obliquamente a um metro e setenta do solo até o chão onde era colocado um pote de argila. Eram, então, feitos diversos cortes na casca acima do cipó que aparava a seiva e a conduzia até o pote.

Este processo de sangria exagerada, conhecida como “arrocho”, acabava por matar a árvore e foi abandonado há muito tempo. Com o passar dos anos, o método tornou-se mais racional visando preservar a integridade da “árvore da vida”. João Barbosa Rodrigues fez o seguinte relato na sua obra “As Heveas ou Seringueiras”, editada em 1900:

Arrocho 

Consiste o processo do arrocho em circular o tronco da seringueira, a um metro [?] do solo, com um grosso cipó, dispondo-o em sentido oblíquo a unir as extremidades em ângulos a formar goteira. Feito este arrocho, golpeavam a casca da arvore, em toda sua circunferência, em diversas alturas. Assim corria abundantemente o leite que, reunido sobre o cipó, escorria pela goteira indo cair diretamente no vaso que o recolhia.

Desta forma a árvore dentro em pouco tempo, morria, faltando-lhe a livre circulação da seiva, pelos golpes que separavam os tecidos e esgotavam-na inteiramente. Quando eram simples golpes e não havia casca tirada, de um para outro ano, cicatrizavam e estabelecia-se a circulação; mas, ainda assim, pelas sangrias que anualmente faziam, dentro de pouco tempo morria.

Foi assim que se acabaram os grandes seringais das margens do Amazonas, do Tocantins, do Jari e das Ilhas, assim como os do Baixo-Madeira e Solimões.

Incisões 

Posteriormente, foi adotado o golpe do machadinho e proibido, expressamente, o sistema de arrocho que, em muitos seringais, alguns empregam, porque até a eles não chega a ação da justiça. O sistema de incisões também é prejudicial quando dele se abusa, obrigando a árvore a dar mais do que possui, fazendo-se numerosas incisões sem dar descanso e tempo para a completa cicatrização. Alguns, sem necessidade, dão dois e mais golpes para uma tigelinha, o que é prejudicial à vida do vegetal. (RODRIGUES, 1900)

Hoje, o seringueiro parte, de seu tapiri, a cada dois ou três dias, de madrugada, carregando todos os seus apetrechos pela “estrada”. Este intervalo, antigamente desrespeitado, permite à árvore se recuperar da última sangria. Ele para, em cada uma das seringueiras, e parte para a extração da seringa que é feita através de pequenas incisões de 25 a 30 centímetros descendentes e paralelas na casca da planta, que começam a uma altura de aproximadamente dois metros acima do solo.

Une depois, cada uma das extremidades inferiores dos cortes através de um talho vertical de maneira que o leite escorra dentro do traço para o fundo da cuia. A cuia é embutida na casca cortada para este fim e, eventualmente, pode ser usada uma argila para fixá-la no tronco. Os cortes são feitos, normalmente, até as onze horas, em todas as árvores da “estrada”, exceto nos meses de agosto e setembro, época da floração. Pelo meio-dia, ele começa a recolher as cumbucas, despejando o látex coagulado nas cuias em um balde, ou então em um saco encauchado ([1]).

À tarde, por volta das 14h00, volta para o rancho, almoça e inicia a defumação do material recolhido que leva umas duas horas para ficar pronto. O fogo é feito debaixo da terra para que a fumaça saia por um furo ao nível do chão. A melhor fumaça é a de coco de babaçu mas, no Rio Purus, usava-se para esta operação os frutos da palmeira urucuri; no Rio Autaz, os da palmeira iuauaçu e no Rio Jaú e onde estas palmeiras são mais raras, utilizavam-se madeiras como a carapanaúba e a paracuúba.

A bola de borracha ([2]) é rodada em volta de uma vara de aproximadamente um metro e meio de comprimento, chamada “cavador”. Para iniciar a bola, enrola-se na vara um “tarugo” de goma coagulada no qual o leite gruda facilmente. O homem vai despejando o leite com uma cuia ou uma grande colher de pau, ao mesmo tempo em que gira o “cavador”, a parte líquida se evapora imediatamente, e forma-se uma fina camada de goma elástica, e a bola vai engrossando, cada dia um pouco mais.

Uma “pela” pronta, depois de vários dias, pesa em média 50 quilos, é, então, exposta ao Sol, quando toma a coloração escura e assim permanece até ser comercializada.

A Árvore da Borracha e da Soberania  

A floresta imensa, de árvores augustas e seculares, chegava até a margem do Rio quando os primeiros colonizadores, fazendo ressoar o machado nos troncos enormes, ergueram aí a primeira barraca de seringueiro. E pouco a pouco, investindo contra a selva noturna e impenetrável, foi o homem avançando contra a muralha verde, até fixar naquelas brenhas o marco da primeira Cidade. Agora, não era mais o casebre isolado. Alinhadas à beira do Rio largo e profundo, as casas de negócios e de moradia, comprimidas entre a floresta e a água, eram como ovelhas escuras de um pequeno rebanho, trazidas a beber na torrente por uma legião de gigantes desgrenhados. (CAMPOS) 

Não há dúvida de que o povoamento da Amazônia, sob o estímulo da borracha, foi um processo ecológico mais agudo, em comparação ao expansionismo provocado pela colheita das drogas.

A borracha levou o homem a um grau de subordinação à floresta jamais ocorrido em época anterior, emprestando-lhe uma personalidade ou ethos ([3]) particular, exigindo-lhe adaptação biológica mais profunda.

Ao examinarem-se as condições em que, originalmente, se operou o povoamento dos seringais amazônicos, se é tentado a admitir aquele excesso de biologismo sociológico de alguns ecologistas.

Mas, só tentação, porque uma análise menos superficial levará a admitir-se a supremacia humana sobre seres e coisas inferiores, mesmo em se tratando do homem em uma região agreste, de características naturais muito peculiares, como é a Amazônia. Aí, o homem também reagiu e dominou o meio. Reagiu sem deixar de subordinar-se à mata e interrelacionar-se com plantas e animais, para conseguir o equilíbrio biológico. […]

Surgindo o Seringal, transformou-se quase inteiramente o processo econômico, o que veio a refletir no modo de vida, das populações, anteriormente engajadas em outros misteres. O regime oniprodutivo, latifundiário da borracha afastou o homem das culturas agrícolas, aristocratizou a figura do patrão, aviltou a do seringueiro e estimulou a expansão do latifúndio a feições antes desusadas, ou, ao menos amortecidas pela coleta móvel das drogas e emprego da terra em pequena agricultura. (TOCANTINS, 1982)

Diferente da exploração do caucho, a “hevea brasilienses” permitiu que o seringueiro se fixasse, pouco a pouco, à floresta. O nordestino “acreanizado” deu início à cultura agrícola.

Nos roçados brotava o feijão, o milho e a mandioca enquanto nas várzeas e na terra firme era incrementada a plantação do capim “colônia”, do “gordura”, do “jaraguá” e da “canarana”. O gado boliviano migrou e aquerenciou-se às novas e atraentes pastagens. O seringueiro depois de fixar-se à terra deu origem à uma nova raça – mais que um povo – uma civilização, a “civilização acreana”, que perambulava destemerosa pela dadivosa floresta, campos e roçados promissores.

O acreano não usava estradas para circular, elas não existiam, seus caminhos eram os cursos d’águas. Os jovens, desde cedo, navegavam pelos Igarapés, Furos e Lagos e aprendiam, com o autóctone, as manhas da caça e da pesca.

A acreana, de então, herdeira da rendeira nordestina aprendeu a trançar habilmente os seus bilros com as fibras do tucumã.

A psique e o organismo nordestino foram, passo a passo, sendo impregnados pelas melhores características do caboclo e essa salutar mesclagem racial foi proporcionando-lhe uma seleção natural que, por fim, alterou-lhe o DNA garantindo-lhe uma maior resistência às adversidades da selva hostil.

As férteis sementes das gônadas do filho do sertão estéril e do Sol inclemente brotaram vigorosas e aprimoradas permitindo aos seus descendentes enfrentar com sucesso o mundo das águas e da floresta.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.01.2021 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

CAMPOS, Humberto de. O Monstro e Outros Contos – O Furto (Conto Amazônico) – Brasil – Porto Alegre, RS – Simplíssimo Livros Ltdª, 2012. 

RODRIGUES, João Barbosa. As Heveas ou Seringueiras – Brasil – Rio de Janeiro, RJ –Imprensa Nacional, 1900. 

TOCANTINS, Leandro. Amazônia – Natureza, Homem e Tempo – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Biblioteca do Exército – Editora Civilização Brasileira, 1982.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Encauchado: impermeabilizado com látex.

[2]    Bola de borracha: pela.

[3]    Ethos: modo de ser.

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