A Terceira Margem – Parte DCCXVII

A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte VII

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Relatos Pretéritos – Naufrágio do “Rio Apa”

Múcio Scervola Lopes Teixeira (1888)
TRAGÉDIA NO OCEANO 

Não há notícia de sinistro mais horroroso, em mares brasileiros, do que a monstruosa hecatombe dos passageiros do paquete Rio Apa. O “Paiz”, encarando friamente os fatos que se relacionam com esse naufrágio nas costas do Rio-Grande do Sul, diz no seu n° de 29 de Julho do corrente ano (1887):

Os telegramas que hoje publicamos ainda concer­nentes ao naufrágio do Rio Apa, vem aumentar a consternação causada por esse terrível desastre e pôr em relevo a negligência das autoridades e da companhia a qual pertencia o vapor.

Pelo exame dos cadáveres, que chegam às praias do Norte e do Sul da Barra do Rio Grande, se verifica:

1° que todos estão revestidos de coletes ou cintas salva-vidas.

2° que as vítimas do naufrágio rolaram com vida, durante alguns dias, na solidão do Oceano.

3° que, pela conservação da existência, posta em risco, ou pela concorrência aos meios da salvação, ou talvez pela fome, houve luta sinistra e desesperada, apresentando alguns cadáveres ferimentos de punhaladas.

4° que, à vista da conservação dos corpos, após tantos dias depois do naufrágio, e pelo exame dos mesmos é evidente que muitos pereceram por inanição.

Todas estas circunstâncias, profundamente lamentá­veis, eram previstas ou supostas, muito antes que nos chegassem, como agora chegam, os horrorosos pormenores dessa imensa catástrofe. O próprio fato de não aparecer um só cadáver, logo após o naufrágio quando já davam à costa alguns destroços do navio, malas e volumes de merca­dorias, era indício suficiente para se presumir que nem todos haviam perecido instantaneamente e que, portanto, vagavam sobre as ondas, na esperança, infelizmente malograda, de encontrar algum socorro.

Pelo que se sabe, os rebocadores que saíram a Barra limitaram-se a percorrer a costa, poucas milhas ao Sul e ao Norte da mesma Barra. Não se mandou, porém, um só vapor fazer a exploração do oceano, quando, entretanto, era sabido e patente que o “Rio Apa” não tivera tempo e nem tinha força para amarar-se muito, visto que a sua velocidade era apenas de 10 milhas por hora.

Os caracteres que apresentam os cadáveres que agora são encontrados, denunciam eloquentemente a grandeza do sinistro e a incúria, a negligência, a desumanidade com que o governo e a companhia proprietária do Rio Apa se houveram nessa desgraçada emergência. (LOPES TEIXEIRA)

Arthur de Azevedo (1903)
PAULINO E ROBERTO 

O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação. Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver.

O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, – possuir um escrínio de magníficas joias, – deslumbrar a Rua do Ouvidor, – frequentar bailes e espetáculos, – tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho. O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava.

Fazendo um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de “Frou-frou” sem dote.

Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:

–  Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava–a para o pasto!

–  Oh! Vespasiano! não digas isso!

–  Digo, sim! Senhor! digo e redigo… – Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhu­ma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!

–  Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.

–  Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?

–  Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?

–  Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres presidente da República!

–  Exageras.

–  Pode ser; mas afianço–te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.

Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.

X-X-X

Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem sucedida. Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do “Rio Apa”; tendo, porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro. Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o “Rio Apa” naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera. Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufrágio.

X-X-X

Ao ver o seu nome impresso nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.

–  Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes…

Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passagei­ros do “Rio Apa”. Escusado é dizer que mudou de nome. Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da Província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o “encabulasse”, arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum pecúlio ([1]).

X-X-X

Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, ti­vesse notícias de Adelaide. Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois dei­xara crescer a barba, engordara extraordinariamen­te, e tinha um tipo muito diverso do de outrora. O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.

Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua, náufrago do “Rio Apa”; ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era realmente um defunto. Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe:

–  Olha! sou eu! não morri! venha de lá um abraço! – mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro. 

–  Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu único amigo.

 X-X-X

Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano, acom­panhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem por.

Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição. Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasia­no, e disse-lhe:

–  Eu logo vi que você me dizia que não!

Paulino reconheceu a voz da sua viúva.

–  Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda! 

Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem: 

–  Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro! 

–  Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim! 

Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano. (AZEVEDO)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 20.03.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

AZEVEDO, Arthur de. Paulino e Roberto – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Correio da Manhã, 05.04.1903.

LOPES TEIXEIRA, Múcio Scervola. Poesias e Poemas de Mucio Teixeira (1886-1887) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Nacional, 1888.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com

[1]   Pecúlio: pé-de-meia. 

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