Antropologia é ferramenta estratégica à justiça social com povos tradicionais do Brasil

Artigo do pesquisador Cristhian Teófilo indica a necessidade de atenção da sociedade para a atuação real de antropólogos no processo de demarcação de terras indígenas e de outros povos e comunidades no país, diante de discursos que procuram deslegitimizá-las, como verificado no caso da CPI sobre demarcação desses territórios, realizada em 2015-2017

Conteúdo: Como se situa a antropologia no contexto das discussões acerca da demarcação de territórios indígenas, de quilombolas e de outras comunidades tradicionais do Brasil, da preservação de áreas verdes, do funcionamento da cadeia produtiva do agronegócio e, também, diretamente, das mudanças climáticas na Terra? Sobre esse assunto, o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, volume 18, número 2, (maio – agosto de 2023), publicou o artigo científico “Um emaranhado confuso: antropologia pública, terras indígenas e mitos ruralistas no Brasil atual’, de autoria do pesquisador Cristhian Teófilo da Silva, da Universidade de Brasília. O artigo pode ser conferido aquiemaranhado(silva).pdf (museu-goeldi.br)

Esse estudo lança luzes sobre o papel desempenhado por essa disciplina, em particular, pela antropologia pública, no processo histórico de demarcação dessas áreas, em que, não poucas vezes, a atuação desses profissionais foi questionada e até combatida por setores da sociedade, de forma a deslegitimá-la ou por falta de aprofundamento dos princípios e critérios adotados pelos profissionais ou por pura má-fé, a partir de interesses próprios de setores relacionados à questão.

Para isso, são construídos discursos contrários à defesa dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, a partir do senso comum, este fundamentado em conceitos que deturpam o entendimento do processo histórico, social e cultural de indígenas e quilombolas no país. Exemplo disso é o argumento de que os povos indígenas devem ser incluídos na sociedade brasileira por não apresentarem mais características e comportamentos originais, o que serve de pano de fundo para tomada de decisão contrária aos direitos dessas comunidades.

De pronto, existem duas razões para conferir o trabalho do antropólogo Cristhian Teófilo: o Brasil sediará em 2025 a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP (COP30) e também está em andamento uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a atuação de organizações não-governamentais (ONGs) no país. Esses dois assuntos acabam por suscitar o debate acerca da importância ambiental, histórica e cultural das comunidades tradicionais no país e o conhecimento obtido a respeito delas mediante a atuação de antropólogos.

No estudo, são apresentados aspectos da discussão sobre a contribuição da antropologia “no âmbito da biopolítica estatal para assegurar justiça social e ambiental para povos indígenas no Brasil, a fim de contextualizar a crítica relativa à antropologia e a seus praticantes por grupos e setores econômicos da sociedade, que se fizeram representar em uma comissão parlamentar de inquérito, a qual expressou o nível de incompreensão sobre o papel desempenhado pela disciplina nas referidas políticas”.

Discursos

Nesse caso, o pesquisador analisou o discurso do Relatório Final da Segunda Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (CPI Funai/Incra), instalada em 2015, acerca da demarcação de terras de povos indígenas, como um texto formado a partir do senso comum sobre os indígenas, os antropólogos e a disciplina. Daí a abordagem no artigo sobre “em que medida esse mesmo senso comum se ancora em concepções essencialistas de identidade existentes dentro da antropologia e aponta para a necessidade de revisão crítica do próprio discurso teórico da disciplina”.

CPI

Cristhian Teófilo da Silva acompanhou a CPI Funai/Incra, que investigou a atuação da Funai e do Incra na demarcação de terras indígenas e de quilombos. O pesquisador relata a atuação da chamada “bancada ruralista” na defesa do interesse de empresas que atuam no campo, durante os trabalhos em questão, por meio da produção discursiva de “verdades” na Comissão Parlamentar de Inquérito, a fim de gerar efeitos divergentes sobre a proteção a direitos territoriais e culturais de povos e populações tradicionais.

“As sessões da CPI Funai/Incra constituíram arenas públicas de colisão de valores e interesses contrastantes, dando, assim, lugar a eventos de manifestação espontânea de um senso comum arraigado de brasilidade, nos quais se tornou possível identificar os argumentos de autoridade que são invocados por parlamentares ruralistas a partir de uma alegada ‘experiência mundana’ com o Brasil, sua história, sua cultura, seu território e seu povo; em suma, com seus mitos nacionais”, ressalta Cristhian.

Parlamentares adotaram um discurso com ênfase na Funai, nos “índios”, “silvícolas” e “mestiços (as) em detrimento da expressão “povos indígenas”, reconhecida pela Convenção que aparece apenas 44 vezes no relatório final da CPI. Por outro lado, como frisa Cristhian, a incidência de termos ou expressões como: ‘camponês’, ‘trabalhador rural’, ‘sertanejo’, ‘sem-terra’ e correlatos é ínfima, para não dizer virtualmente inexistente no discurso parlamentar ruralista.

De acordo com esta hierarquização, os ruralistas da CPI não admitem que povos indígenas sejam representados em sua diversidade étnica e cultural, que a identidade quilombola seja juridicamente atualizada ou que camponeses sejam protagonistas conscientes da luta pela reforma agrária. “Quando falam, de acordo com os parlamentares ruralistas, sua voz teria sido previamente pautada por outros. Desde esta perspectiva, os parlamentares ruralistas presumem, com base no senso comum, que os antropólogos, na qualidade de agentes cooptados por ONGs (ou seja, os antropólogos também seriam apenas caixa de ressonância de outras agências), seriam aqueles que estariam falando pelos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. Trata-se de uma deturpação evidente da natureza do trabalho antropológico, ao mesmo tempo que representa uma prática dos próprios parlamentares ruralistas, os quais no âmbito do relatório, acabam por performar autoritariamente o papel que criticam”, enfatiza o pesquisador.

O senso comum mostra-se como uma afirmação do poder, ou seja, configura-se como um pensamento autoritário, como explicitado pelo autor do estudo. No estudo, Cristhian Teófilo analisa de que forma conceitos como “autoctonia” e “indianidade”, adotados pela antropologia, são decisivos em sua complexidade para classificação e administração da diversidade étnica e cultural em contraponto ou em choque com ideologias universalistas e liberais. Questões essas presentes no discurso parlamentar ruralista, como assinala o pesquisador.

Questões levantadas por esses dois conceitos são utilizadas pelo discurso parlamentar ruralista para atacar a prática antropológica e também para os direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais. Alega-se que essas populações não seriam mais portadoras de identidades e culturas “autênticas”, “verdadeiras” ou “legítimas”, mas, sim, necessitadas de políticas de inclusão social, antes de serem reconhecidas como coletividades culturalmente diferenciadas e detentoras de direitos coletivos. Por outro lado, antropólogos têm atuado junto a estas coletividades a partir de políticas públicas amparadas por direitos constitucionalmente estabelecidos e por normas infraconstitucionais.

“Tornou-se inevitável considerar que os indígenas e demais povos e comunidades tradicionais assim autodeterminados estão conseguindo afirmar sentidos êmicos de autoctonia (aqui referida como indianidade) dentro das e entre as situações coloniais/modernas para subverter as identificações étnicas subordinadoras e arbitrárias colocadas sobre eles por outros agentes colonizadores”, salienta Cristhian Teófilo, enfatizando a necessidade de atuação de antropólogos no processo de demarcação de terras.

A partir do fato de que a antropologia pode ser compreendida como uma ciência social dedicada à interpretação da diversidade cultural, e os antropólogos como indivíduos comprometidos com a justiça social, que trabalham para o reconhecimento e a valorização das diferenças culturais, o artigo identifica as relações de poder que permeiam a atuação desses profissionais, de vez que a disciplina também funciona como uma forma institucionalizada de entendimento das diferenças culturais e ainda de classificação, gestão e controle de coletividades diferenciadas dentro das sociedades nacionais, sempre que necessário.

“Pensar a antropologia em contextos e termos biopolíticos não é algo novo. Mas a consideração crítica dos efeitos de poder da prática antropológica enraizada nas potências coloniais e imperiais, governos nacionais, empresas multinacionais, agências financeiras ou, como de costume, em universidades e organizações não governamentais (ONGs), sobre as sociedades, comunidades, grupos ou coletividades que acolhem a prática etnográfica, é eticamente inevitável e, por isso, obriga a um exercício de interpretação permanente sobre seus contextos de atuação”, salienta Cristhian Teófilo. Ele chama atenção para a amplitude desse debate: “Faz-se necessário pensar os efeitos da política de representação antropológica em cenários mais amplos e, via de regra, adversários da implementação dos direitos de coletividades tidas, geralmente, como minoritárias”.

Eduardo Rocha, jornalista, Belém-PA, Brasil

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Jimena Felipe Beltrão
Editora Científica
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FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor

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