A Terceira Margem – Parte DCXXI

Jornada Pantaneira

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Pereira do Lago ‒ Um Herói Anônimo Parte IV

IV

Adido ao Arquivo Militar, mal desfrutara um ano de mais sossego, viu-se, por ordem do Ministério da Guerra, a 24.05.1879, compelido a voltar à vida dos sertões e aturar-lhe as duras peripécias, encarregado de ir fundar a Colônia do Alto Uruguai, nas Missões brasileiras, empenho particular, longos anos bafe­jado, do Marquês do Herval, o lendário Osório, então na pasta da Guerra.

Sem alegar o cansaço que já sentia em si, partiu a 27.06.1879 daquele ano; nem lhe era possível objetar coisa alguma, pois levava, como sinal da pleníssima confiança do governo ins­truções que davam margem para em tudo agir como melhor lhe parecesse e decidir conforme entendesse útil e conveniente.

Passaram-se os anos de 1880 e 1881 nessa Comissão que teve o mais cabal desempenho depois de zeloso e particular estudo de larga região, para escolha definitiva do local que reunisse, pelas suas condições topográficas, proximidade do grande Rio, fecundidade das terras, e mais circunstâncias favorá­veis, todos os elementos de natural prosperidade e rápido incremento, uma vez fecundados e estimula­dos pela presença do homem. E, com efeito, esse centro Colonial, em boa hora criado, mostrou logo grande progresso, que se vai mantendo cada vez mais acentuado.

Tantas canseiras, porém, haviam, por força de ter repercussão no organismo valentís­simo é certo, do Major Pereira do Lago, mas já pesado não tanto pelos anos, como pelo abuso de forças a que se vira sempre sujeito e por esse desenrolar incessante de trabalhos pesados e em plena natureza bruta.

Na Colônia do Alto Uruguai caiu perigosamente doente, agravando-se a bronquite asmática, de que sofria desde a campanha do Uruguai, com violenta inflamação do fígado. Esteve muitos e muitos dias entre a vida e a morte, e assim mesmo em tão precária situação, do seu leito de quase agonia dava ordens e dirigia os serviços da nascente povoação.

Momentos houve ‒ dizia depois ‒, em que me supus chegado aos últimos momentos; mas a ninguém dei sinal da crença firme em que estava. A todos respondia que me sentia muito melhor quase bom!

Se a moléstia foi grave, tornou-se a convalescença melindrosíssima, durando mais de três meses. E para ajudá-la, era obrigado a mandar vir de S. Gabriel, e ainda além, garrafas de água de Vichy, que lhe cus­tavam 10$000, cada uma! Dando, afinal, por finda a sua incumbência, a 04.10.1882, apresentou-se de volta do Rio Grande do Sul, ao Quartel-General, indo novamente servir no Arquivo Militar.

Teve, porém, que regressar aquela Província, nomeado, a 24.12.1883, para inspecionar a invernada de Saicã e outras, propondo as reformas de que careciam e oferecendo à consideração do governo o plano de um estabelecimento modelo.

Quase um ano depois, a 10.12.1884, entregou circunstanciado relatório das inspeções a que pro­cedera, apontando todas as providências que deviam ser tomadas a bem da regular organização de uma Coudelaria ([1]) de Estado e indicando com a maior franqueza e decisão todas as causas, culposas ou não, que concorriam para que o estabelecimento do Saicã fosse fonte de mero e escandaloso desperdí­cio dos dinheiros do Tesouro e do descrédito da administração pública. Meses depois de ultimada aquela Comissão, outra lhe coube bem mais séria e difícil, encarregado como foi, a 31.10.1885, do Comando Geral do Corpo Militar de Polícia da Corte, cargo em cujo exercício entrou a 05.11.1885, data da sua promoção a Tenente-Coronel por mereci­mento.

As circunstâncias delicadas da política, quan­do a questão abolicionista havia atingido o ponto crítico, com toda a sua exaltação e as irregularidades inerentes a mais ardente propaganda, a identificação absoluta, por efeito de intangível lealdade e espírito de intransigente disciplina, com o Chefe de Polícia de então, acentuadamente reacionário, o choque de longos hábitos militares com inúmeras condescen­dências da época e ao sabor dos que buscavam tirar daquela vasta e perigosa agitação todos os proven­tos possíveis e outras contingências da ocasião fizeram com que o Tenente-Coronel Pereira do Lago não pudesse, como das mais vezes, desempenhar-se das suas funções rodeado do aplauso e das simpatias a que estava, desde tanto tempo e com tanta justiça, acostumado.

Hábil e acremente hostilizado por uma parte da imprensa do Rio de Janeiro, cujos intuitos iam além da abolição, não teve a exigida malea­bilidade e continuou a cumprir à risca as ordens recebidas e a fazer frente a todos os temporais, crescendo as dificuldades com que tinha de arcar nos fins de 1886 e começos de 1887. O triste incidente Leite Lobo ([2]), tão explorado pelo jornalismo interessado em avivar ódios e que trouxe graves conflitos entre a marinhagem dos navios de guerra e agentes da polícia, provocou, em breve, a queda do Ministério Cotegipe e sua substituição, a 11.03.1888, pelo gabinete João Alfredo.

Embora do mesmo credo político, sempre seguido desde os primeiros tempos da Academia, julgou o Tenente-Coronel Lago de restrito dever retirar-se logo e logo da Comissão que exercia, o que fez a 19.03.1888, apresentando-se ao Quartel-General, onde ficou adido. Era tempo de descansar, já pela idade, já pelo muito que trabalhara, já pelos males mais e mais acentuados; disso, porém não curava o infatigável servidor do Estado.

Enquanto tiver um bocadinho de forças, dizia com firmeza, declaro-me pronto para todo o serviço.

E, com efeito, consultado se aceitaria o lugar de Diretor do Arsenal de Guerra de Pernambuco, nem pensou em recusar a incumbência que o obrigava a novas viagens e deslocamentos sempre duros a um Chefe de família, cujas economias, a custo ajunta­das, eram bem modestas, bem reduzidas, ainda que tivessem sido com certa largueza, retribuídas às Comissões alheias à pasta da Guerra e, pelas suas mãos de Chefe, houvessem passado centenas e centenas de contos de réis.

Nomeado a 11.07.1888, partiu para o Norte a 10.08.1888 e tomou posse do cargo a 17 do mesmo mês.

A 16.03.1889, após tranquilos meses de dire­ção do estabelecimento confiado aos seus cuidados passou em virtude de telegrama do Ministério da Guerra, a exercer o elevado posto de Comandante das Armas interino da Província de Pernambuco, cargo que ocupou até 20.06.1889, quando foi no mesmo caráter, mas aí com efetividade, transferido para o longínquo Amazonas.

Havia se dado, a 6 de junho, no Rio de Janeiro a inversão da política geral, caindo o Partido Conser­vador e sendo chamado ao poder o Liberal, na pes­soa do Visconde de Ouro Preto, Presidente do Conse­lho de Ministros.Pereira do Lago vacilou em aceitar a nomeação que tão espontaneamente fora feita pelo governo, quando eram bem conhecidas as suas opi­niões políticas, professadas sem exagero, mas com a firmeza que punha em todos os seus atos. Além disto, não tinha mais confiança na sua saúde que considerava perdida e fundamente atacada. Salteado pelo terrível beribéri, mal chegara ao Norte, sentia as pernas trôpegas, frouxas, exacerbando se as sufocações produzidas pela bronquite asmática, ou talvez já pela asma cardíaca.

Muito embora todas as dúvidas, a 21.07.1889, um mês depois de nomeado, assumia o cargo que devia preencher, em Manaus, onde contra a grande expectativa de todos melhorou singularmente dos seus incômodos. Foi aí que o encontrou o inesperado e inacreditável sucesso de 15.11.1889, que derribou as belas instituições monárquicas do Brasil, trans­formando-o em República de Estados Confederados.

Na agitação política que se produziu na Capital do Amazonas, organizando-se uma junta governamental de três membros, foi o Tenente-Coronel Pereira do Lago aclamado Presidente e em boa hora, pois todos os seus esforços tenderam em garantir a ordem, reprimir vinganças e ódios pequenos e salvar os cofres provinciais de vertiginosa dilapidação. Aliás, por bem pouco tempo, durou a sua benéfica ação; pois, a contragosto na posição que o ocupava, com prazer obedeceu ao chamado do Governo Central e, em começos de 1890, se achava já no Rio de Janeiro.

A 03.02.1890 viu-se compulsoriamente reformado no posto de Coronel. Estava finda a sua carreira, em que nunca poupara sacrifícios, por maiores que fossem, para bem servir à pátria.

Passou o ano de 1891 sempre doente e buscando impedir os progressos do beribéri, complicado com assustadoras perturbações cardíacas, ano, portanto, triste e melancólico, no qual, contudo teve a supre­ma alegria de casar a muito amada filha com um homem digno e que lhe merecia toda a confiança. Caiu, afinal, no leito de morte e, na segunda hora do dia 01.01.1892, cerrou os olhos à luz terrena e exa­lou o último suspiro. Tinha 66 anos, 7 meses e 21 dias.

Era o Coronel Antônio Florêncio Pereira do Lago de estatura elevada, bem proporcionado de membros, ainda que com disposição à gordura, sobretudo no período dos 40 aos 50 anos. Cabeça pequena e re­donda com cabelos cortados à escovinha, tinha o rosto cheio, tez morena olhos pequenos e vivos, na­riz regular, barba rente em forma de coleira, feições que denunciavam energia e força de vontade e maneiras francas e despretensiosas que provocavam imediatas simpatias. Legitimamente ufano da sua competência e prática nos trabalhos de engenharia, não ocultava as dificuldades que, no seguimento da sua carreira, haviam provindo da falta de sólida edu­cação secundária e da posse imperfeita das matérias que constituem o curso de humanidades.

Nas belíssimas qualidades morais que o distinguiram não há que insistir, porquanto bem se salientaram em todas as fases da vida que acaba de ser narrada; mas não deixaremos, por dever de gratidão pessoal em esquecimento o culto que dedicava à amizade.

Impossíveis mais afetuosidade, maiores extremos, delicadeza e constância nas doces e comovedoras relações com aqueles poucos a quem considerava amigos.

A sua força capital, no penoso afã de abrir um lugar para si na sociedade, a sua alavanca, foi a pertinácia.

Acostumando-se a nunca fazer grandes e fascinado­res cálculos e planos e visar longe demais, uma vez alcançado o objetivo que a princípio visara, olhava sempre para diante, além, mais além, não parando nunca em suas aspirações de nobilitante conquista, em que punha todo o esforço de que era capaz, sempre a seguir linha reta, inflexível, sem atalhos, nem tergiversações.

Era da raça desses valentes caráteres, de que tão belamente disse o poeta Lucano:

Nil actum reputans si quid superesset agendum” ([3]).

Também, no seu tumulo de belíssimo e destemido Soldado, na sua lápide funerária de intemerato e incansável servidor do Brasil, bem condiz, como epitáfio, estas singelas palavras, resumo de toda a sua agitada existência:

Por si só conseguiu o que foi, sem jamais se desviar da honra e do dever.

Petrópolis, 20 de Outubro de 1892.

Visconde de Taunay

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 07.08.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

Bibliografia 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. Coronel Antônio Florêncio Pereira do Lago – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda – Companhia Tipografia do Brasil, 1893.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Coudelaria: estabelecimento que visa o melhoramento genético dos equinos. (Hiram Reis)

[2]    A figura central desse incidente foi um oficial de Marinha, o Capitão-Tenente Leite Lobo, que começara a apresentar sintomas de alienação mental e cuja conduta, por isso mesmo, se tornara um tanto ou quanto inconveniente. Preso por um Alferes do Corpo Militar da Polícia, foi Leite Lobo levado para a delegacia do 1° Distrito, onde cruelmente o espancaram, em razão dos protestos que opunha à prisão. Tal a barbaridade do espancamento que o caso suscitou protestos veementes da imprensa e o Clube Naval se reuniu, para examinar o assunto. O resultado dessa reunião não podia deixar de ser uma severa condenação das autoridades policiais e dos seus criminosos métodos de ação. O Clube Militar não deixou passar a oportunidade de manifestar-se, hipotecando sua solidariedade à Marinha de Guerra e fazendo carga contra o governo. O príncipe D. Augusto, sobrinho da Regente, não pôde, como oficial de Marinha, que era, manter-se alheio à questão. Ficou também solidário com os colegas de farda e se incumbiu, ele próprio, de expor à Princesa Isabel a gravidade da situação. O Barão de Cotegipe foi chamado ao Paço e asseverou que o incidente não tinha a expressão que lhe queriam emprestar seus adversários, pois abusos de tal natureza podiam ser praticados por autoridades arbitrárias mesmo sob o mais tolerante dos governos. A Princesa Isabel não concorda com suas explicações. Acha que as autoridades têm abusado e que o Chefe de Polícia Coelho Bastos, o “Rapa-Côco” deve ser demitido. Cotegipe não concorda. Seria um desprestígio para o Gabinete, ceder à pressão dos militares e da imprensa, demitindo um homem de sua inteira confiança.
‒   A polícia só merece censura pela sua conduta violenta e arbitrária, – responde a princesa. – A presença desse homem na administração só pode representar uma perda de força moral, por parte do Gabinete. Insisto em sua demissão, senhor Barão…
‒   Nesse caso, – responde Cotegipe, ‒ Vossa Alteza tem as mãos livres para agir como melhor lhe pareça. Dê Vossa Alteza desde logo a demissão do Ministério. Estou velho e cansado. Servi até o extremo limite de minhas forças. Até onde tem sido possível transigir, transigi. Mas, de agora em diante, não transigirei mais…
‒   Não me resta outra alternativa senão a de agradecer os seus serviços e constituir outro Ministério… (JÚNIOR)

[3]    Marco Aneu Lucano (Marcus Annaeus Lucanus): poeta romano autor do poema “Bellum Civile”, conhecido como Farsália, um épico da guerra civil entre os Generais romanos Caio Júlio César e Pompeu o Grande. Lucano atribuiu a Júlio César, no livro 2, verso 658, de sua obra, o lema: “Nil actum reputans si quid superesset agendum” ‒ Considerar que nada foi feito se algo resta a fazer. (Hiram Reis)

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