A Terceira Margem – Parte DXCIX

Jornada Pantaneira

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Mulheres Guerreiras – Parte II

Valquírias Americanas

[…] Uma nuvem vermelha escurece o céu, o firmamento está manchado com o sangue de homens, Enquanto as Valquírias cantam sua canção. (Passagem das Lanças ‒ 10ª estrofe, Njál’s Saga 157).

Sempre retorno encantado depois de perlustrar os fantásticos cenários dos amazônicos caudais. Mas a imagem mais bela, mais forte e que me arrebatou por inteiro foi a das corajosas mulheres daquela bela, mas inóspita região. Encantadoras e generosas na sua hos­pitalidade, fortes e destemidas ao enfrentar, muitas ve­zes sozinhas, os desafios da mata hostil, são elas verdadeiras amazonas a arrostar o cotidiano agreste sem esmorecer. Estas verdadeiras valquírias brasileiras merecem, com certeza, nosso mais grato reconheci­mento e homenageando-as quero fazer aqui um tributo às guerreiras de toda nação brasileira. Reporto três passagens interessantes destas arrojadas mulheres que no não tão longínquo pretérito deram mostras de seu valor e cujas ações ficaram gravadas indelevelmente no inconsciente coletivo do planeta.

Isabela de Godin

Jean Godin des Odonais era primo de Louis Godin, célebre astrônomo e membro da Academia de Ciên­cias de Paris. Em 1735, Jean, graças ao primo astrônomo, fez parte da expedição geodésica [che­fiada por Charles Marie de La Condamine] enviada ao Peru para medir o arco do meridiano terrestre. […]

Em Riobamba Jean conheceu Isabel de Casa Mayor. Dom Pedro de Casa Mayor, pai de Isabel, era Vice-rei da província de Otavalo e viúvo de uma rica peruana. Bela e culta, Isabel encantou Jean, que a desposou em 27 de dezembro de 1741. A equipe de La Condamine permaneceu na área por oito anos. La Condamine voltou para a França, mas Jean Godin permaneceu com a esposa Isabel dilapidando a fortuna da mulher. Em março de 1749, partiu só, para Caiena (Guiana Francesa), na oportunidade Isabel estava grávida e impossibilitada de acompanhá-lo na jornada. Ficaram separados pelo destino durante 21 anos. […]

Isabel depois de esperar muito tempo pela volta do marido resolveu ir ao seu encontro e considerando que cruzar o Darien ou contornar o continente pelo cabo Horn seria muito arriscado resolveu, então, ir por terra, enfrentando os três mil quilômetros de distância entre o Peru e Caiena. […]

Pouco antes de partir, a equipe foi reforçada com um médico francês e dois de seus empregados. A partir de Canelos, arrasada pela varíola, a pequena expedição mergulhou no horror. Os carregadores e guias, tomados de pânico por causa da doença, fugiram. Alguns indígenas lhes serviram provisoria­mente como guias, os abandonaram da mesma forma. O médico francês acompanhado de Joaquim, fiel servo de Isabel, foi procurar socorro em uma missão próxima e jamais voltou. […]

Isabel e seus companheiros, depois de aguardar três semanas, resolveram continuar o caminho atraves­sando a floresta. Todos, exceto Isabel, morreram de fome, de sede e de cansaço.

A corajosa amazona prosseguiu sozinha sua aventura, sem conhecer a direção a seguir, alimentando-se unicamente de frutos e de ovos.

Depois de oito dias, ela chegou ao rio Bobonaza, onde indígenas a acolheram e leva­ram-na à missão espanhola de Loreto. O missionário Franciscano recusou-se, inicialmente, a recebê-la, tal o seu aspecto e seus andrajos. Pensou que se tratava de uma índia fugitiva, e só abriu a porta da Missão depois que ela cobriu o corpo com um tecido de palha.

Madame Godin contou sua história e como estivesse muito fraca foi colocada em uma canoa que a transportou para o Leste. Depois, um bergantim português transportou-a ao Oiapoque, onde, a 22 de julho de 1770 conseguiu chegar e dali partiu para a Guiana. Em Caiena nem o próprio marido a reconheceu. (BRASIL)

Angelina a Heroína dos Seringais

Quando do primeiro combate da Volta da empresa, em que Plácido de Castro foi emboscado pelas tropas do Coronel Rojas, um fato inusitado, marcou com sangue aquela pugna de bravos, pelo arroubo de uma heroína acreana. Próximo à beira do Rio vivia num rancho tosco de madeira, um seringueiro com sua mulher Angelina Gonçalves de Souza.

Naquele dia encontrava-se atacado de beribéri que o reduzira a pele e ossos, atirado numa rede. Ali estava “febrilento”, prostrado, amargurado, irritado, por não poder participar com os companheiros na Revolução. Nisso chegou um soldado boliviano e ven­do-o enfermo, quase um cadáver, aproveitou para atirar-lhe uma provocação de deboche vitorioso:

‒  ¡Mira! ¿Y tú? ¿Te faltan las gambias? ¿Porque não te escapaste también?

Mesmo em extrema fraqueza, o pobre seringueiro, ferido na sua dignidade íntima, reagiu, e num derra­deiro esforço soltou na cara do atrevido, algumas palavras de revolta e ódio. Foi o que bastou para que um grupo de soldados de Rojas, saltasse sobre a carcaça cadavérica do infeliz seringueiro, e o agar­rando à unha, arrastaram-no porta a fora, às cuspa­radas, pontapés e por fim crivaram-no de balas a queima-roupa. Nesse momento, Angelina que estava lá dentro do rancho, ouvindo aquela barulhada toda, passou a mão na espingarda do marido e quando o viu morto numa poça de sangue, investiu furiosa para cima dos soldados assassinos, como desvaira­da, enlouquecida, num furor de raiva e vingança, conseguiu disparar um tiro. Assim como uma “tigra” defendendo o seu covil, partiu para o ataque contra os executores do seu marido. […]

Por fim subjugaram a fera humana, e a levaram de arrasto para o Comandante. Logo ali, estavam dois médicos bolivianos atendendo o Coronel Rojas, ferido de raspão pelo tiro disparado pela seringueira… A soldadesca se enfureceu. Clamou por vingança. Queria a punição imediata… Mas quem decidia era o Comandante. E este num gesto de grandeza humana, falou com energia, determinando que a libertassem imediatamente:

‒  Mujeres así no se mata. (FIGUEIREDO)

Uma Valquíria Brasileira

Curioso episódio também foi observado em relação a mulher de um dos soldados regionais do destaca­mento que acompanhou Roosevelt, desde Tapirapoan [rio Sepotuba] às margens do rio da Dúvida.

Grávida já de nove meses, essa mulher acompanhou a pé todas as marchas da expedição, por terra, o que era motivo para admiração geral. Aconselhada em Tapirapoan a alojar-se ali para seguir depois de dar à luz, recusou-se peremptoriamente e declarou que estava acostumada a andar no sertão nesse estado de gravidez, sem se cansar.

A convicção de suas afirmativas, levou o comandante do destacamento à tolerância de a deixar seguir, embora contra o voto do médico. Pois bem, essa mulher extraordinária, não só marchou diariamente 4 a 5 léguas a pé, como também só interrompeu a marcha um dia [24 horas] para dar à luz. Ao dia se­guinte do parto prosseguia a marcha a pé carre­gando o filho ao colo”. (MAGALHÃES)

Guerra do Paraguai

As enfermidades e os desastres nos iam levando camaradas e abrindo claros nas fileiras. Em compensação surgia, às vezes, um novo habitante para aumentar a população das “Aldeias”. Não era muito raro ouvir à noite depois do toque de silêncio um vagido de criança, que nascia. Na manhã seguinte, fazia sua primeira marcha amarrada às costas de alguma “China” caridosa ou da própria mãe, que, com a cabeça envolvida num lenço vermelho, cavalgava magro “Matungo”, cuja sela era uma barraca dobrada, presa ao lombo por uma “Guasca”.

Esses “Filhos do Regimento” criavam-se fortes e, livremente, cresciam nos acampamentos, espertinhos e vestidos de soldadinhos, com um gorro velho na cabeça e comendo a magra “Boia” que com eles e as mães, repartiam os pais, brutais às vezes, mas quase sempre amorosos e bons. (CERQUEIRA, 1980)

Embora a imprensa nacional, diferente da para­guaia, tenha realizado uma cobertura por demais inci­piente da participação feminina no conflito, vale a pena reportar algumas de suas breves notas não só pelo seu intrínseco valor histórico mas, sobretudo, porque elas nos permitem “engarupar na anca da história” e acompanhar, como o fizeram os leitores de outrora, ainda que por breves momentos, a saga daquelas heroínas de outrora.

Alguns historiadores hodiernos estimam que a presença da mulher na Guerra do Paraguai foi quantita­tivamente mais efetiva dentre todas as guerras desen­cadeadas na América Latina.

Quantas patriotas viram seus familiares partirem para defender a Pátria afrontada?

Muitas foram as “vivandières” brasileiras que escoltaram seus maridos até o Teatro de Operações apoiando-o tanto no combate como na retaguarda e outras tantas alistaram-se como enfermeiras, costurei­ras, ou foram escravizadas pelo inimigo…

D. Ignez Augusta Corrêa de Almeida

O Major Antonio José de Moura, em dezembro de 1869, resgatou, em Tibicuari, a prisioneira de guerra D. Ignez Augusta Corrêa de Almeida, esposa do nego­ciante Ricardo da Costa Leite, que fora presa, junta­mente com o marido e dois filhos, em 1865, em Corumbá, e levada para Assunção. Todos os seus fami­liares sucumbiram às crueldades promovidas pelos militares paraguaios. D. Ignez partiu, depois de receber auxílio pecuniário do Exército Brasileiro, para Cuiabá onde chegou em fevereiro de 1870.

Faleceu nos idos de 1887, depois de permanecer totalmente reclusa, durante 17 anos, sem ter conseguido se recuperar das sevícias e privações da Guerra.

Forte de Curuzú

Maria Francisca da Conceição

Narra-nos o General J. S. Pimentel de Azevedo:

LIX

Maria Curupaití

O Brasil teve uma heroína na maior extensão do vocábulo. Chamava-se Maria Francisca da Conceição. Casada com um Cabo-de-esquadra do Corpo de Pontoneiros do Exército, seu marido teve de embarcar com as Forças ao mando do Tenente-General Conde de Porto Alegre com destino ao assalto glorioso do Forte de Curuzu.

O chefe proibiu terminantemente que as casadas acompanhassem seus maridos naquela expedição, devendo todas ficar sob a proteção do grande Exército de Tuiuti.

Maria não desanimou. Tinha treze anos e amava soberanamente o consorte. Dotada de ânimo varonil, de resoluções prontas, decidiu-se a acompanhá-lo a todo o transe.

O embarque seria na madrugada do dia 1° de setem­bro de 1866. Recorreu a um cabeleireiro do acampa­mento, voltando com suas madeixas destruídas. Es­tava com o cabelo reduzido à escova!

Despiu os ornatos femininos, deu pregas em uma calça do marido, a blusa dos uniformes e arranjou um boné. Insinua-se no meio das fileiras na ocasião do embarque.

Era um soldadinho imberbe, de pequenina estatura. Ninguém deu pelo disfarce. Entra com o Batalhão em fogo. Do primeiro ferido que cai, toma as armas – carabina, cinturão, cartucheira etc. Avançam as tropas. Troa a artilharia, confundindo seus trovões com o crepitar das armas portáteis.

O chão cobre-se de mortos e nada detém a fúria a dos brasileiros atacantes que tomam de assalto o Forte com seus treze canhões, em renhido combate. Na refrega, uma bala dá em cheio na fronte do marido, que cai morto.

Maria engole as lágrimas, jurando, sobre o peito quente do consorte, vingá-lo. Trava-se dentro do recinto da Fortaleza horrível intervelo ([1]), medonha luta de arma branca. Ela embebe raivosa a sua baioneta no peito amplo do paraguaio que lhe ficara mais próximo: abate-o. E outro, e outro. Terminada a refrega, vem chorar, então, e dar sepultura ao corpo do seu amado. Aí, entre soluços, repete a jura.

Toma lugar nas primeiras filas dos assaltantes; bate-se nelas, penetrando no formidável baluarte junta­mente com os poucos que ali podem entrar.

É repelida com eles e, na faina de matar, adianta-se. Um paraguaio de cavalaria, reparando no esforço do rapazito, de estatura abaixo da mediana, investe-o de espada em punho.

A pobre rapariga cruza a arma contra o cavaleiro inimigo: defende-se mal então. A ponta da espada deste atinge-lhe a graciosa cabeça de moça. Ela resvala ensanguentada e vai cair fora da trincheira!

Os companheiros acodem-na, e ela é salva da fúria do agressor que não podendo ultrapas­sar a trincheira, para junto à banqueta do parapeito.

Só no hospital conhecem-lhe o sexo. Espanto geral de todos. Cada qual refere às suas proezas na luta, acrescidas com as vivas cores da simpatia, da admi­ração e do pasmo. Chamaram-na Maria Curupaití. Tornou-se venerada. Era moça e era bonita.

Na batalha de 03.11.1867, em Tuiuti, irrompe Conceição nas fileiras do 42° Corpo de Voluntários da Pátria seus patrícios: ‒ e aí trava-se combate contra as numerosas forças do adversário. O seu exemplo arrebata os homens, aos quais não cessam de dizer, com o sorriso das heroínas nos lábios:

‒  Aqui está Maria Curupaití! Avante!

O epílogo desta aventura vivido por uma bela e valente pernambucana, não poderia ser outro: com o fim da guerra, deslocou-se para o Rio de Janeiro, onde vivia, ao tempo da escritura deste relato, al­quebrada e sem recursos. (PIMENTEL, 1897)

Forte de Curupaití

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 14.06.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia    

CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Biblioteca do Exército Editora, 1980.

FIGUEIREDO, Osório Santana. Plácido de Castro, o Colosso do Acre – Brasil – Santa Maria, RS – Gráfica Editora Pallotti, 2007.

MAGALHÃES, Amílcar Armando Botelho de. Impressões da Comissão Rondon (1942) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1942.

PIMENTEL, Joaquim Silvério de Azevedo. Episódios Militares – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Editor Tipografia a Vapor A. dos Santos, 1887.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Intervelo: nos dicionários portugueses não existe ainda este vocábulo, que nasceu para a nossa língua no tempo da Guerra do Paraguai.

     Vem do termo hispano-americano “entrevero”, que quer dizer – choque de duas forças de cavalaria.

     Tomando-o de nossos aliados, afeiçoamo-lo à índole de nosso idioma. Aceito o termo e geralmente empregado no Exército, demos-lhe acepção mais lata e vigorosa.

     Intervelo significa nessa Campanha a briga ou a luta promíscua de muitos indivíduos, a desordem no combate, a mistura de inimigos encarniçados e cegos pelo ódio, quer fossem de cavalaria ou de infantaria. Chamava-se à isso luta “intervalada”.

     O Dr. Taunay empregou “entreverados”, servindo-se da expressão genuína espanhola, talvez sem se lembrar que o vocábulo já tinha foros de cidade entre nós, e estava ajeitado à língua portuguesa. (PIMENTEL)

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