A Terceira Margem – Parte DLXXXIII

Jornada Pantaneira

A Retirada da Laguna (VETILLO)

A Retirada da Laguna –Parte XXI

XXI

Nioaque. Decepção; Encontramos a Vila Saqueada, Incendiada e Quase Destruída Pelos Paraguaios. Infernal Ardil de Guerra. Desaparece o Inimigo, Definitivamente. Regresso Pacífico do Corpo de Exército. Ordem do Dia Sobre Esta Campanha de Trinta e Cinco Dias.

O oficial encarregado da defesa de Nioaque, durante a nossa incursão em território paraguaio, ausentara-se da Vila, a 01.06.1867, sem que ali se tivesse notí­cia da aproximação do inimigo, procedendo assim contra as ordens terminantes de 22.05.1867 que lhe impunham a defesa, a todo o transe, de um ponto que era a nossa base de operações.

Não é que os víveres lhe faltassem, longe disto, dei­xara-lhos abundantes o Chefe da Intendência. Dar-se-ia o caso que os seus comandados, seduzidos pela vizinhança do Rio, e suas matas, houvessem deser­tado, um após outro, até o largarem inteiramente só? Mas aí estavam todos os oficiais do nosso corpo de Exército concordes em atestar o espírito de sub­missão de nossos soldados aos chefes.

Acaso se houvesse dado um “salve-se quem puder” geral não teria podido aquele Comandante manter-se em observação pela vizinhança, onde tantos aciden­tes de um terreno florestado lhe podiam servir de abrigo, à espera de nossa chegada?

Afastaria, assim, de si, a responsabilidade, não so­mente da enorme perda de material como do novo sacrifício de vítimas humanas fruto de tão funesto abandono. Faltou-lhe o ânimo; desapareceu deixan­do ligado ao nome a reminiscência de uma deserção em frente ao inimigo… Tanto mais sensível e mais notada esta infidelidade quanto às demais providên­cias do Cel Camisão, no mesmo ofício, haviam com cuidado sido observadas.

As provisões de guerra e de boca, o arquivo, o dinheiro da pagadoria, esperavam-nos nos morros, para onde os transportara o Coronel Lima e Silva; enquanto ele próprio, de acordo com as instruções, estacado à margem do Aquidauana, providenciava no sentido de encaminhar em primeiro lugar tudo o que poderia preceder-nos, enfermos, mulheres, cri­anças, soldados desgarrados ou inválidos. Cuidado­samente ordenara, aliás, aos condutores das carre­tas, que serviam para estes diversos transportes, voltassem sem demora, apenas desocupados, re­tendo ao mesmo tempo, ao seu lado, a maioria das viaturas carregadas de víveres, de que fizera um depósito volante, tendo em vista a nossa próxima chegada.

Assim abandonada passara Nioaque a ser a presa dos paraguaios. Tudo haviam saqueado e queimado, salvo a igreja, poupada não por espírito religioso, mas, pelo contrário, com o fito de a utilizarem num ardil infernal. Retirara-se a sua infantaria ante a nossa aproximação, entrincheirando-se no cemitério. Seguira, então, pela mata em direção a um vau do Orumbeva que a cavalaria reconhecera. Sem preo­cupações quanto ao inimigo, fomos a toda a pressa ver o que haveria ainda a salvar. Esta bonita povoa­ção, abandonada, ocupada e pela segunda vez, des­de o início da guerra, devastada, convertera-se num montão de destroços fumegantes.

O grande galpão que, outrora, nos servira de armazém de mantimentos e ainda o achamos de pé, sobre os esteios incendiados, mostrava renques de sacos que nossa gente, sem dúvida, não tivera tem­po de carregar e já serviam de pasto ao incêndio. O arroz e a farinha carbonizados, exteriormente; o sal, gênero este tão escasso e precioso no interior do país, negrejara e fundia sob as nossas vistas.

Não pouparam esforços os nossos soldados em salvar o que puderam. Aqui e acolá jaziam muitos cadáveres, todos de brasileiros. Constatamos que muitos dentre estes infelizes mortos haviam servido em nossas fileiras.

Desertando por ocasião do exacerbamento de nossas misérias, e morrendo de fome pelas matas, haviam se apressado, embora correndo o perigo de serem reconhecidos, em tomar parte no saque. Fora um deles, de pés e mãos amarrados, sangrando como um porco. Jazia outro, crivado de feridas, e uma velha, estirada a seu lado, de goela aberta e seios decepados, nadava no próprio sangue.

Foi quase toda a coluna acampar por esta noite atrás da igreja, sobre o grande terrapleno que descreve­mos e onde, escalonados com os canhões nos ângu­los, para maior segurança contra o inimigo, nos apoiávamos à mata do Rio. Ali gozamos, enfim, um pouco de verdadeiro descanso. Dupla e tripla ração se distribuiu; permitiam-no as circunstâncias; sentia-se o Comandante feliz por contentar os soldados, quanto possível. Pela primeira vez, e desde muito, podíamos contar com o dia de amanhã.

Restavam-nos, apenas, para nos pôr fora de qual­quer perigo eventual, fazer quinze léguas, a cami­nhar por excelente estrada, de Nioaque ao Aqui­dauana, onde éramos esperados. E para tal marcha tínhamos víveres sobejos.

Foi a noite calma, como tudo prenunciava dever suceder. Apenas amanheceu fizeram os soldados uma visita às ruínas da aldeia. Acabaram tomando tudo o que aos paraguaios escapara. Graças a esta sucessão de roubos desaparecera, em alguns meses, destas terras novas o pouco que o incipiente comér­cio ali introduzira, como mecanismos e ferramenta, tudo, enfim, o que o trabalho conseguira juntar de frutos e poupança.

Durante a última estada em Nioaque depositáramos na igreja muitos e diversos objetos, o instrumental das bandas de música, munições de guerra etc.

Consta que os paraguaios encontraram ainda muita coisa deste apetrechamento, não lhes havendo chegado o tempo para tudo carregar. Existia ali grande reserva de cartuchos e foi, talvez, o que lhes sugeriu a primeira ideia da horrível maquinação que tanto lhes condizia à feição cruel.

Depois de carregarem o que mais poderiam aprovei­tar, deixaram o resto por destruir, para nos engodar e nos reter o maior lapso de tempo possível em torno de um amontoado de objetos, sob o qual colo­caram um barril de pólvora com rastilhos.

Não podíamos ter a menor suspeita de semelhante cilada; e, à vista dos cartuchos que devíamos trans­portar, tomamos as precauções costumeiras contra as eventualidades de uma explosão. Enquanto na igreja trabalhava o nosso pessoal sentinelas vigia­vam, a fim de que nenhum fogo se acendesse pela vizinhança.

Ocorreu, contudo, que um infeliz soldado encontras­se pelo chão um isqueiro, dentro do edifício, e lhe viesse a estapafúrdia ideia de utilizá-lo. Saltou logo uma faísca sobre alguns grãos de pólvora dos que coalhavam a nave.

Sem a umidade do solo, então muito grande ou aca­so fossem os rastilhos contínuos, instantânea ocor­reria a explosão. Para melhor nos enganarem haviam os paraguaios espalhado a pólvora sóbria e desi­gualmente com o minucioso cuidado, e os cálculos ardilosos do selvagem que preparara os seus malefí­cios. Só se viu, a princípio brilharem pequenas chamas e aqui e acolá se levantarem sucessivamente ligeiras espirais de fumaça.

Já os soldados se precipitavam para conter o fogo, no momento em que ele tomava corpo, quando os oficiais presentes, compreendendo melhor o perigo, ordenaram que imediatamente fosse a igreja eva­cuada. A esta voz correram todos, em massa, para as portas; como o atropelo perturbasse a saída, deu-se a explosão antes que toda a gente se achasse do lado de fora. Pouco faltou para que todo o edifício voasse aos ares; foram as paredes sacudidas, mas o conjunto resistiu; assim não sucedera e teriam todos os nossos, que ali se achavam, infalivelmente pere­cido esmagados sob os escombros.

Terríveis de se ouvir, até no ponto distante em que nos achávamos com o Comandante, foram o estam­pido e o abalo. Grande grito acompanhou a ex­plosão seguida de silêncio, depois novo e horrível clamor e ainda pausa. Soaram os clarins; julgando todos que era o inimigo, os corpos entraram em forma.

Já nos precipitáramos para a igreja; dela saíam, dentre turbilhões de fumo, irreconhecíveis formas, fantasmas enegrecidos e avermelhados pelo fogo. Ardiam uns com as roupas em chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em franga­lhos, soltavam urros; alguns ainda rodopiando como alucinados já se debatiam nas angústias da agonia. Perdera um soldado negro toda a epiderme do rosto, arrancada como uma máscara.

Era­lhe o corpo sangrenta chaga. Um sargento, cujas carnes se achavam inteiramente desnudadas, implo­rava, por misericórdia, que o acabassem com uma bala ou um pontaço.

Morreram ali mesmo, no local, uns quinze desven­turados. Todos aqueles a quem podia a arte valer, ou para lhes diminuir o sofrimento ou para salvá-los, passaram a ser o objeto do desvelo dos médicos e das nossas preocupações. À nossa compaixão para com eles acrescia a indignação contra os autores deste cruel atentado; não houve depois dentre as vítimas arrebatadas à morte nenhuma cuja cura não saudássemos como verdadeira felicidade geral.

Foi o adeus dos paraguaios, a última demonstração de seu ódio contra nós. Sem nos abandonar de todo, porfiavam, contudo, em só se deixar entrever fora de alcance.

A 05.06.1867, entretanto, ao raiar do dia, saímos da infeliz e bela Nioaque, afinal, aniquilada com a sua igreja. Seguía­mos a estrada do Aquidauana e mar­chávamos penalizados sob a impressão do funesto sucesso da véspera. A todas as vicissitudes atraves­sadas viera ajuntar-se a angústia da véspera. Já era muito, porém, era legítimo triunfo estarmos de pé e ter dominado um inimigo tão perfidamente encarni­çado em nos arruinar.

Foi o Orumbeva facilmente transposto. À margem di­reita se nos deparavam destroços de carretas que os paraguaios acabavam de queimar, muitos víveres e objetos de apretrechamento espalhados e todos su­jos de terra como já na barranca do Canindé encon­tráramos; cadernos dilacerados, folhas soltas ao ven­to, notas, entre as quais o autor desta narrativa reconheceu a própria letra, e agora truncadas e inúteis.

A alguma distância deste caudal aguardava-nos, tal a primeira impressão, nova cilada, cujos efeitos foram, contudo, muito diversos de um desfecho trágico. Duas pipas, daquelas em que se conserva a aguar­dente de cana, ocupavam o meio da estrada. Lembrando-se da explosão da igreja e temendo algum novo estratagema, da parte de um inimigo que nenhum escrúpulo parecia poder conter, apres­sou-se o Capitão Pedro José Rufino e precipitando-se sobre os tonéis arrombou-os com os copos da espada.

À vista do líquido, que a jorros corria, alguns solda­dos não podendo conter-se, ajoelharam-se ou deita­ram-se de bruços, para alcançar o seu quinhão, espetáculo acolhido pelas gargalhadas, que se gene­ralizaram em toda a linha.

Não teve o incidente outras consequências: pacifica­mente continuamos a marcha até o Ribeirão da Formiga, perto do qual acampamos, ainda contem­plados nesta nova fase de abundância pelo encontro de bom número de bois, em ótimas condições.

A 06.06.1867, rumamos para Nordeste, seguindo grande caminho a que numerosas moitas de taquaruçus dão o nome e aberto através da mata cerrada, que tanto se presta a surpresas. Nada, porém, ali, nos sobressaltou a marcha.

À medida que percorríamos estes terrenos a nós familiares e aos paraguaios menos conhecidos, cada vez mais frouxa e inofensiva se tornava a perseguição, embora não houvesse inteiramente cessado. Fizemos neste dia ponto, junto a um lindo Ribeirão chamado das Areias.

No dia seguinte, 07.06.1867, quase vencemos as quatro léguas que medeiam deste ponto ao Rio Taquaruçu.

Atingimo-lo a 08.06.1867 e, como a altura das águas não nos permitisse vadeá-lo, acampamos à sua mar­gem. Noite para nós memorável, esta! Foi aí que os paraguaios, avistados a alguma distância, se decidi­ram, enfim, a desaparecer. Deles próprios partiu o aviso da retirada, com uma fanfarra prolongada de clarins que tal sinal deu, mais lisonjeiro a nós outros de que a eles. Não se fizeram nossas cornetas roga­das, aliás, em associar-se àqueles toques com um estrépito a cujos ecos estremeceram longamente aquelas solidões. Soubemos, alguns dias mais tarde, que se haviam dirigido para Nioaque, e, depois de recolhidas todas as suas patrulhas, pelo Apa regres­sado ao território de sua República.

Quanto a nós, cada vez mais bem providos de víve­res, graças a um rebanho enviado das margens do Aquidauana, depois de um ofício do nosso Chefe, ao Cel Lima e Silva, transpusemos, a 09.06.1867, o Taquaruçu e, a 10.06.1867, duas léguas adiante, um Rio chamado Dois Córregos.

A 11.06.1867, chegamos ao porto do Canuto à mar­gem esquerda do Aquidauana. Tal o último trecho de nossa penosa retirada. Ali findou o doloroso itinerário que, como expiação de nossas temeridades, nos fizera curtir tantas misérias quantas pode o homem suportar sem sucumbir.

No Canuto nos despojamos dos miseráveis andrajos que nos cobriam, libertando-nos, afinal, da mais hor­rível sevandija ([1]) e dos parasitos do campo, que, perfurando a pele, nela produzem dolorosas úlceras.

Oferecia-nos o magnífico ensejo para as nossas ablu­ções. Todas estas paragens podem ser chamadas: a terra das águas belas.

A 12.06.1867 baixou uma ordem do dia do nosso valente Chefe José Tomás Gonçalves, em poucas palavras resumindo os acontecimentos desta terrível campanha de trinta e cinco dias:

A retirada, soldados, que acabais de efetuar, fez-se em boa ordem, ainda que no meio das circunstâncias as mais difíceis. Sem cavalaria contra o inimigo audaz que a possuía formidável, em campos onde o incêndio da macega, continuamente aceso, amea­çava devorar-vos e vos disputava o ar respirável, extenuados pela fome, dizimados pela cólera que vos roubou em dois dias o vosso Comandante, o seu substituto e ambos os vossos Guias, todos estes males, todos estes desastres vós os suportastes numa inversão de estações sem exemplo, debaixo de chuvas torrenciais, no meio de tormentas de imensas inundações, em tal desorganização da natureza que parecia contra vós conspirar. Soldados! Honra à vossa constância, que conservou ao Império os nossos canhões e as nossas bandeiras! (TAUNAY, 1874)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.05.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;     

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Sevandija: insetos parasitas ou vermes imundos. (Hiram Reis)

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