A Terceira Margem – Parte DLXIX

Jornada Pantaneira

A Retirada da Laguna –Parte VII

VII

Passagem do Apa. Primeiro Embate. Ocupação da Machorra. 

Haviam as nossas carretas retardatárias chegado ao acampamento a 17.04.1867. No dia 18.04.1867, pelas 09h00, fez-se a rendição das guardas avançadas.

Reinava em nossas linhas a maior tranquilidade quando, de repente, pelas 11h00, ouviu-se o grito de alarma:

‒  Cavalaria inimiga!

Armam-se os Batalhões; expede o Comandante os engenheiros aos postos avançados; o Ajudante-General à retaguarda; o Assistente do Quartel-General aos diversos corpos para lhes examinar as condições e remediar ao que possa faltar. Para a vanguarda marcha ele próprio, acompanhado pelo Batalhão de Voluntários, com as bocas de fogo do Major Cantuária ([1]) e do Tenente Marques da Cruz ([2]), o mesmo que havia de morrer combatendo nas Linhas de Humaitá. Por nós passou, com a espada nua, não querendo, dizia, tornar a embainhá-la senão depois que hou­vesse travado conhecimento com os paraguaios.

Estavam os inimigos, então, a pequena distância de nós, perto da mata que beirava um Ribeirão. Avan­çavam sensivelmente estendendo-se em linha de atiradores, correndo de um lado para outro, sob as ordens de um oficial, que entre eles se destacava; e súbito mandou se retirassem: perdemo-los de vista.

Após tão prolongada espera ordenou o Comandante que volvêssemos às nossas posições. Pela manhã de 19.04.1867 deixamos o acampamento.

O Coronel destacou o 21° Batalhão para a vanguarda com a recomendação de nunca perder de vista o grosso do Corpo do Exército, durante a marcha, embora sempre a ganhar terreno. Seguia o resto em destacamentos, próximos uns dos outros, mas, como a animação dos soldados e a dos oficiais corressem parelhas, avançaram os Corpos sem prestar grande atenção às ordens dadas, achando-se por vezes separados por distâncias maiores do que a prudência aconselhava.

À passagem do Taquaruçu, cuja ponte acabavam os paraguaios de destruir, deu-lhes a vanguarda uma descarga, embora quase estivessem fora de alcance.

Viu-se um de seus cavaleiros cair ferido. Tomou-o um dos camaradas à garupa, enquanto o terceiro lhe laçava a montaria que fugia, sentindo-se solta.

Ao presenciar esta primeira cena de guerra, queriam os nossos soldados deitar-se à água para perseguir o inimigo, quando um toque de clarim do Quartel General os fez estacar. Toda a coluna achou-se logo agrupada atrás deles. Nesse meio tempo os engenheiros restabeleciam a ponte; bastou-lhes uma hora.

Efetuou-se a passagem e a marcha recomeçou à outra margem. Mais uma razão para que logo e logo os atacássemos, mas o Comandante manteve-nos imóveis. Só mais tarde soubemos por quê: provinha de íntimo motivo: estávamos em Sexta-Feira Santa e a iniciativa de uma ação de guerra, no próprio dia da morte do Salvador, repugnava a um coração religio­so como o do nosso Chefe, escravo de todos os nobres sentimentos, a ponto de exagerá-los até a contradição, inquieto e como perturbado pelo pres­sentimento do fim próximo.

Durou-lhe a hesitação bastante para que o Desta­camento paraguaio não mais receando ser atacado e, cheio de desprezo, talvez, pela nossa pequena força de atiradores, sem cavalaria alguma, em vastas planícies encharcadas, onde todo o homem a pé é assunto de escárnio, se lembrasse pela atitude, de nos dar insolentes mostras de desdém que lhe inspirava a inferioridade de nossos recursos militares e, por meio de demonstrações ruidosas, nos fazer ver quanto considerava inúteis quaisquer precauções contra nós.

Desmontaram todos os homens, assentando-se uns à sombra das macaúbas ([3]), ao passo que outros faziam tranquilamente pastar os cavalos. Fazia-nos ferver o sangue aquele afetado descuido. Felizmente, afinal, até ao nosso Chefe atingiu esta indignação.

Decidiu-se a agir. Só havia um meio de rápido emprego e deste lançamos mão. Fez Marques da Cruz avançar a sua peça e uma granada silvou ao meio das aclamações dos nossos soldados.

Atingiu a base de alta palmeira, que abrigava bom número de cavaleiros e depois de ricochetear explodiu no ar. Foi, pelo menos, para nós, um prazer vermos o efeito produzido, a surpresa, o alarma, a confusão. Correram uns após os animais que a detonação dispersara; cavalgaram outros, precipitadamente; e sem mais demora dispararam pelo campo, a todo o galope. Passados poucos minutos desaparecera o Destacamento inteiro. Lançou-se-lhe segundo projétil, e logo em seguida terceiro, que alcançou mais de meia légua e deu a conhecer ao inimigo o poder de nossa artilharia. Toda esta tropa fugidia só haveria de reaparecer diante da Fazenda da Machorra ([4]), na fronteira.

Chegados esta tarde, à margem de um Ribeirão, que os espanhóis chamam Sombrero, fomos acampar no triângulo que ele ali forma, confluindo com o Apa. Admiramos este belo Rio, fronteira dos dois países e cujo aspecto, com sua mata cerrada, tanto nos im­pressionara quando de longe o avistáramos. Grande futuro lhe está reservado após a guerra.

Desce o Apa por três galhos, logo confluentes, da serra dos Dourados, um pouco abaixo da Colônia Militar deste nome, a doze léguas, Este-Sudeste da de Miranda. Corre a princípio para Oeste, 10°N até o forte de Bela Vista, que se acha no paralelo 22°, e daí, descambando para Oeste 10°S, vai com um curso levemente sinuoso banhar Santa Margarida, Rinconada e outros pontos fortificados até o Para­guai, em cujo leito se despeja.

Ao chegar pediu o Coronel que lhe dessem água do Apa, e, ou porque lhe viessem à mente vagas remi­niscências históricas, a propósito de caudais céle­bres, ou porque, após tanto abalo de espírito, experi­mentasse como que uma agitação febril, disse sorrindo:

–  Notemos a que hora provamos a água deste Rio.

Puxou o relógio, bebeu e acrescentou a gracejar:

–  Desejo que este incidente seja consignado na his­tória desta Expedição, se algum dia a escreverem.

Pareceu empenhado que se lhe fizesse uma promes­sa em tal sentido. Foi o autor desta narrativa quem, em nome de todos, a tanto se comprometeu, e hoje o cumpre com religioso zelo porque a morte, de que estava o nosso Chefe tão próximo, sabe, pela própria natureza enigmática, tudo enobrecer, tudo absolver e consagrar.

É neste ponto o Apa correntoso; mas as grandes lajes que lhe calçam o leito como que convidam a entrar em suas belas águas. Foi o que fizeram mui­tos soldados; passaram vários para a outra margem a dizer que iam conquistar o Paraguai. À noite chegaram dois oficiais que à hora do perigo vinham procurar-nos para conosco dele compar­tirem. A marchas forçadas acudiam de Camapuã.

Adiantando-se à escolta haviam atravessado, não sem correr o risco de algum acidente, as nossas linhas de vanguarda. Só no dia seguinte apareceram os seus soldados ao acampamento, com um viajante por nome Joaquim Augusto, homem corajoso, mas que ao nosso contato só incitava o interesse pessoal. No dia 20.04.1867, às 09h00, pôs-se a em movi­mento e, atravessando o Sombrero, avançou sobre a margem direita do Apa, tendo à vanguarda o Batalhão de Voluntários.

Muito tempo nos custou vencer uma légua, apenas. Sucedia a cada momento algum acidente às carretas das munições. Delas não nos podíamos afastar, próximos como nos achávamos do inimigo. Atingíra­mos quase, segundo a opinião dos refugiados, a pri­meira guarda paraguaia, a saber, o Forte e Fazenda da Machorra, situada em território brasileiro, a uma légua e quarto para cá do Forte de Bela Vista, que está construído na margem paraguaia.

Esperávamos, a cada passo, encontrar resistência. No entanto marchava sempre o nosso Batalhão da Vanguarda sem perceber ou sem medir a distância que as paradas contínuas dos demais Corpos pu­nham entre ele e as outras unidades. Em vão soa­vam os clarins; já se afastara demais para que os pudesse ouvir. Deixá-lo assim isolado não era pru­dente; tornava-se indispensável mandar um mensa­geiro chamá-lo.

Ofereceu-se o Ten Cel Juvêncio e partiu logo com seus dois Ajudantes-de-Campo e Gabriel Francisco, o genro do Guia, que conosco quis ir. Felizmente, tínhamos bons cavalos, dos que haviam resistido à epizootia; safaram-se de perigoso atoleiro, que pela ânsia de chegar não quiséramos contornar. Perde­mos logo de vista o Corpo de Exército, mas não percebíamos, ainda, nossa tropa já empenhada em combate, ao que supúnhamos, pelas descargas e dis­paros isolados dos atiradores.

Víamos perfeitamente, por vezes, tremular a bandei­ra nacional, a que depois encobriam elevadas moi­tas. Parecia-nos, aliás, que não avançava. Em pou­cos instantes a rapidez da carreira dela nos aproxi­mou e, como eletrizados pela sua vizinhança, atira­mos os cavalos às águas do volumoso ribeirão, que nos barrava o passo, o José Carlos, e afinal nos achamos reunidos aos nossos que, em lugar fechado, combatiam à entrada da Machorra.

Uma linha de paraguaios, assaz extensa, fazia frente ao ataque, ao passo que grande número dos seus se encarniçava, com uma espécie de furor, em destruir a fazenda, incendiando quanto parecia poder arder. Ocupava-se o nosso Comandante da vanguarda em examinar uma ponte que cumpria atravessássemos para envolver o inimigo. Foi então que o Ten Cel Juvêncio lhe comunicou a ordem de estacar.

Não permitiam as circunstâncias, porém, que a ela atendêssemos. Concordaram os oficiais na imprescindível necessidade de se ocupar a posição, custasse o que custasse. Imediatamente a nossa linha de atiradores atirou-se a correr para a frente oposta, e pela própria ponte, porfiando todos em ardor.

Recuaram os paraguaios, mas em boa ordem. Tinham ordens, certamente, para não empenhar combate, mas somente reunir e tanger à retaguarda cavalos e bois que não queriam deixar-nos; e deviam ser numerosos, tanto quanto nos permitia avaliar a poeira que sua marcha ocasionava.

Foi o recinto ocupado. O Ten Cel Enéias Galvão ([5]), ali, deu imediatamente nova formatura ao seu Batalhão e o manteve numa série de posições que lhe valeu, posteriormente, não só a aprovação do Coronel como gerais parabéns. Foram os nossos os primeiros recebidos.

Todos aplaudiram o espírito de disciplina dos seus subordinados e o afã com que, logo à primeira voz, começaram a desentulhar o terreiro de objetos que o atravancavam, sem coisa alguma subtrair, assim como de quanto estava no interior das casas.

Neste ínterim apareceu o próprio Comandante. Não vendo voltar nenhum daqueles que à vanguarda mandara, às pressas partira para constatar o que havia. O entusiástico acolhimento que neste momen­to lhe fizeram, e as aclamações dos soldados lhe causaram uma satisfação cuja expressão, malgrado a reserva habitual, a todos se patenteou.

Os auxiliares índios, Guaicurus e Terenas, não foram os últimos a se apresentar para o saque. Tão peque­na disposição para o combate haviam mostrado que, na nossa carreira, ao lhe tomarmos a frente, lhes bradáramos: Vamos! Avante! Valentes camaradas! Agora se lhes transmutara a indolência num ardor sem limites para o saque. Já se haviam disseminado pelas roças de mandioca e de cana, de lá trazendo, imediatamente, cargas sob as quais vergavam, sem, contudo, encurtar o passo.

Vislumbrava-se um resto de crepúsculo, ainda quan­do o grosso da coluna chegou. Foi este o momento do atropelo e da balbúrdia: tantos objetos se avista­vam sem dono, misturados e fadados à destruição. Cada qual tomou o seu quinhão, sendo exatamente os menos beneficiados aqueles que à presa tinham mais direito, pois o haviam conquistado sob o fogo inimigo e guardado, como propriedade pública, até o momento da depredação geral.

Era este saque, aliás, legitimo, e não se teria podido, sem manifesta injustiça, recusar tal prazer aos soldados, que o haviam comprado e adiantado por uma série de meses de privações e fome. Das oito ou dez casas da Machorra, duas estavam reduzidas a cinzas pelo fogo que os próprios paraguaios lhes haviam posto. Foram as outras preservadas pelos nossos soldados. Alguns pedaços do madeiramento, alguns mourões abrasados serviam para cozinhar as batatas, a mandioca e as aves do inimigo.

A Machorra, denominada Fazenda do Marechal López, não passava realmente de terra usurpada, cultivada por ordem sua, além da fronteira. O trabalho dos invasores, frutuoso como fora, vinha acrescer ao banquete a satisfação de um sentimento de reivindicação nacional. Autorizou-o o Coronel com um ar prazenteiro que jamais até então lhe perce­bêramos. (TAUNAY, 1874) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.04.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    João Tomás de Cantuária: viera acompanhado de mais dois oficiais destinados a reforçarem a Comissão de Engenheiros; os Ten de Artilha­ria João Tomas de Cantuária, bom companheiro, embora de gênio sombrio, um tanto fantástico, sobretudo desigual […] (TAUNAY, 1948)

[2]    João Batista Marques da Cruz: Quando Marques da Cruz chegou de Mato Grosso e, prestes a partir para a guerra, no Paraguai, levei-lhe o manuscrito da Retirada da Laguna, leu-o com muita atenção e observou: “Como é, Taunay, que você se lembrou tão exatamente de tanta coisa, de tão numerosos incidentes?” Perguntei-lhe se havia achado exageração no que contara, receoso como me sentira de ser hiperbólico na narração dos nossos sofrimentos. ‒ Não há tal ‒ replicou-me com vivacidade ‒, em muitos pontos pareceu-me até que você diluiu demais as cores. E acrescentou: “Enfim, não foi debalde que tanto padecemos; aí fica o que está escrito para atestá-lo, talvez para sempre!” (TAUNAY, 1948)

[3]    Macaúba (Acrocomia aculeata): palmeira mais conhecida como bocai­uva, atinge até 25 m de altura e na região dos nós de seu caule apresenta uma fileira de espinhos longos e pontiagudos. (Hiram Reis)

[4]    Fazenda da Machorra: pequena aldeia fronteiriça paraguaia, com uma dezena de casas. As mulheres que não podiam gerar filhos eram, antigamente, chamadas de Machorras. (Hiram Reis)

[5]    Mal Antônio Eneias Gustavo Galvão (Barão de Rio Apa): na Retirada da Laguna comandou o 17° Batalhão de Voluntários da Pátria. Foi Ministro da Guerra e Ministro do Superior Tribunal Militar. (Hiram Reis)  

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