Hidrelétrica de Marabá ameaça peixes endêmicos da Amazônia

Pesquisa do Museu Goeldi assinala que espécies exclusivas dos rios Tocantins e Araguaia serão radicalmente afetadas pelo empreendimento que já está licenciado. 

A possível construção da Usina Hidrelétrica de Marabá, no rio Tocantins, no estado do Pará, será um tiro de misericórdia na fauna de peixes da região, avalia Alberto Akama, biólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi e coordenador do Programa Nacional de Pesquisas em Biodiversidade e Ecossistemas (PPBio Amazônia Oriental). O empreendimento já está licenciado e vai impactar toda a bacia hidrográfica Araguaia-Tocantins, detentora de pelo menos dois terços das espécies ameaçadas de extinção na Amazônia.

O estudo, intitulado Impacts of the hydroelectric power generation over the fish fauna of the Tocantins river, Brazil: Marabá dam, the final blowd, foi publicado na edição especial da revista Oecologia Australis (clique aqui e acesse a notícia da edição). Nele, o pesquisador faz uma revisão histórica dos efeitos sobre esses organismos aquáticos causados pelas sete hidrelétricas que operam ao longo do rio Tocantins. A partir dessa análise, o autor descreve as prováveis consequências da implantação da usina de Marabá.

De início, o autor desmistifica o discurso da inexistência de efeitos das usinas hidrelétricas acima da área de inundação. A primeira delas construída no rio Tocantins, a de Tucuruí, em 1986, é um bom exemplo: “A dourada e a piramutaba subiam no limite Norte até Palmas ou mais acima. Depois da usina, os peixes deixaram de existir ali, porque ela interrompeu o fluxo de migração de espécies que percorrem longas distâncias”. Isso significa que, estando a porção inferior do rio Araguaia intimamente ligada ao Tocantins, o cientista assinala que certamente ocorrerá impactos sobre a pesca nessa região, como sequela da construção da usina de Marabá.

O especialista ressalta que esta não é uma região qualquer. Uma das maiores corredeiras do rio Tocantins está localizada acima de Marabá, a Corredeira de São Sebastião, que por sua vez é um dos trechos mais viáveis à manutenção de cerca de 20 espécies de peixes que constam na chamada lista vermelha. “Se você constrói a hidrelétrica, você vai inundar a corredeira onde estão as espécies reofílicas (aquelas que migram durante o período de reprodução)”, alerta Alberto Akama.

Em seu artigo, um dado propicia a dimensão da importância do Tocantins para a manutenção da diversidade ictiológica no bioma: a mais recente lista de espécies ameaçadas de extinção no Brasil relaciona 73 espécies de peixes de água doce ameaçadas habitando a Amazônia e, dessas, 48 estão no rio Tocantins.

Outra característica exclusiva desse rio de 2500 quilômetros de extensão é a presença de lagoas marginais, locais de recrutamento de peixes jovens. “Na região acima de Marabá existem vários lagos naturais. Fizemos um arrasto de zooplâncton (animais aquáticos microscópicos) e coletamos 2 mil larvas em 15 minutos. Então esses lagos são extremamente importantes para a fauna de peixes migradores”. A construção da hidrelétrica de Marabá tende a pôr fim aos criadouros, obrigando essa fauna a se deslocar para o Araguaia.

Lacunas – O biólogo chama atenção para a lacuna de conhecimento sobre a fauna de peixes existente na calha do rio Tocantins, item que não é contemplado pelos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) exigidos para a liberação de empreendimentos como as hidrelétricas. “A fauna de peixes não sobrevive ao barramento e o Tocantins já está todo barrado. Se identificarmos que existe uma fauna específica no trecho de Marabá, é mais um motivo para sermos cautelosos com a nova hidrelétrica”, justifica Akama.

O cientista pontua uma restrição dos estudos de impacto ambiental realizados que precisa ser considerado: eles costumam analisar apenas o reflexo da obra com seu entorno imediato. Os impactos sinérgicos produzidos pela interação entre as usinas naquela bacia precisam ser levados em conta, conclui o biólogo do Museu Goeldi.

Hoje em dia a gente aumentou nossa capacidade computacional e podemos constatar que a interação entre as hidrelétricas diminui a diversidade de espécies em um rio e aumenta a retenção de sedimentos (dando início ao processo de erosão)”, descreve Akama. Um exemplo de impacto sinérgico aconteceu na barragem de Lajeado, também localizada no rio Tocantins. “Grandes grupos de peixes migratórios chegaram à barragem e houve uma mortalidade em massa nos anos 2012 e 2014, o que obrigou o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) a multar o consórcio construtor do empreendimento”, explica Alberto Akama.

Incoerência – Existem diferentes interesses em jogo quando o assunto é permitir ou impedir a construção da hidrelétrica de Marabá. O que está na balança é quem lucra e quem perde com o empreendimento. Segundo o autor, se forem descartados todos os impactos sociais, aos quais ele não se deteve, e os impactos ambientais, recorte de sua pesquisa, a obra é válida: gera muita energia e está estrategicamente no eixo de transmissão do Sistema Interligado Nacional (SIN).

Todavia, o pesquisador questiona a prioridade que se dá às vantagens financeiras de uma obra desse porte, em detrimento dos recursos naturais, irrecuperáveis, base de sustentação de muitas comunidades rurais e responsável pelo equilíbrio do ecossistema. “Minha preocupação é ambiental, é permitir que as espécies continuem a sobreviver”, define Akama. Ele acrescenta ainda que o empreendimento está em desacordo com os compromissos assumidos pelo Brasil ao assinar a Convenção sobre a Diversidade Biológica.

O biólogo espera que sua pesquisa sirva para municiar a população na defesa da conservação desses recursos naturais, o que deve ser feito em especial por meio de consultas públicas. “Quem constrói as hidrelétricas está ciente dos impactos? Está. Os órgãos ambientas estão cientes dos impactos? Estão. Quem não está ciente? A população. O gargalo pra mim (como pesquisador) é chegar nessas pessoas”, reconhece.

O estudo realizado por Akama não é definitivo, mas, indica os caminhos a percorrer. Em seu artigo, ele relata a necessidade de, pelo menos, dois passos a serem dados imediatamente: avaliar as atuais condições da fauna de peixes da bacia Araguaia-Tocantins como um todo – inclusive porque estão planejadas outras três hidrelétricas no Tocantins e mais seis no Araguaia; e então avaliar o risco de extinção de espécies a nível regional. Assim será possível ter clara a proporção dos efeitos da Usina Hidrelétrica de Marabá sobre a fauna de peixes na bacia antes que ela seja implantada.

Amazônia e Guianas – Alberto Akama se dedica ao estudo de peixes, especialmente os da região amazônica, desde o início da década de 1990. Doutor em Zoologia, ele integra o grupo de mais de 50 especialistas responsáveis pela elaboração do guia de campo “Field Guide to the Fishes of the Amazon, Orinoco, and Guianas”, publicado no final de 2017 pela Princeton University Press.

A escolha da região de estudo para a obra, localizada no nordeste da América do Sul, é explicada pela sua condição de morada da maior concentração de peixes de água doce do planeta. São mais de três mil espécies e quase 570 gêneros, entre eles as piranhas, as enguias elétricas e o pirarucu. Os autores sintetizam o estado atual dos conhecimentos sobre a taxonomia, a riqueza de espécies e a ecologia desses grupos de peixes e fornecem referências à literatura relevante para identificações de espécies. Folhear o livro é também se deparar com uma rica ilustração: desenhos detalhados, fotos coloridas e mapas de distribuição dos gêneros (para saber mais, clique aqui).

Texto: Erika Morhy – Agência Museu Goeldi   

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