A Terceira Margem – Parte DCCXXXI

Circunavegação da Lagoa Mangueira – Parte I

– Ben Hur

Mar Português: Segunda Parte
(Fernando Pessoa)

II. HORIZONTE

[…] Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.

No dia 05.01.2016, às vésperas de meu natalício, recebi uma estranha mensagem de meu querido amigo e Ir  Coronel Leonardo Roberto Carvalho de Araújo, cumprimentando-me pelo aniversário e deixando transparecer uma profunda tristeza que o afligia. Achei o texto um tanto estranho, mas, ciente da fantástica aptidão literária e poética do caro camarada, deduzi que a sua amargura talvez tivesse origem apenas na angustiante constatação de que o tempo não perdoa e prossegue sua marcha inexorável de garantir-nos, a cada ano, mais um nefasto marco cravado pro­fundamente na nossa carcaça – rugas, cabelos brancos, símbolos insofismáveis do avanço cronológico.

No dia seguinte (06.01.2016), meu mano Tenente-Coronel João Batista Carneiro Borges, ao cumprimentar-me pelo aniversário, informou-me do falecimento do Sub-Tenente Élgio Benhur Ribas – só então percebi o real motivo da angústia do Ir  Araújo.

Fui convidado, nesse ínterim, pelo Comandante Norberto Weiberg e pelo Coronel PM Sérgio Pastl para realizarmos a Circunavegação da Lagoa Mangueira e concordei imediatamente, desde que adiássemos a partida de Porto Alegre para terça-feira (13.01.2016), tendo em vista que na segunda-feira (12.01.2016), seria celebrado um culto na Igreja Santa Terezinha em memória do saudoso amigo Benhur. Vou prestar minha humilde, mas, sincera, homenagem ao dileto amigo Benhur, realizando a Circunavegação da Lagoa Mangueira em apenas quatro dias.

Um esforço considerável tendo em vista de que, desde minha “Missão Pantaneira”, realizada de 30.06.2015 a 05.07.2015, eu me dediquei exclusiva­mente às pesquisas históricas e à execução da 2ª Fase Expedição Centenária Roosevelt-Rondon (MT e RO), realizada de 20.10.2015 a 15.11.2015. Meu treinamento físico, neste intervalo, não contemplou nenhuma atividade náutica, restringindo-se a uma média de 23 horas de marcha (129 km), de segunda a sábado, quase 03h50 por dia sem altos horários.

– Cmt Pastl e Cmt Norberto – Lagoa Mangueira, RS

Rumo à Lagoa Mangueira (12.01.2016) 

Os Cmt Norberto e Pastl passaram em minha residência, no Bairro Ipanema – Porto Alegre, RS, e fomos direto à Vila Itapoã buscar o veleiro “Corais”, o pequeno veleiro “Day Sailer”, de propriedade do Comandante Norberto. Em Itapoã, atrelamos o reboque ao Chevrolet Meriva e retornamos à minha morada para carregar meu caiaque “Argo II”, modelo Cabo Horn, da Opium FiberGlass, e minhas tralhas.

Partimos, finalmente, para a Lagoa Mangueira pela BR-116 e depois, nas proximidades de Pelotas, pela BR-471 até o Km 634, onde contatamos o Sr. Marcelo Souza, gerente da Granja Santa Helena, que nos indicou a rota até a Lagoa e se mostrou bastante cético quanto à possibilidade de conseguirmos realizar a circunavegação da Mangueira em apenas quatro dias.

Colocamos o Veleiro n’água e enquanto eu e o Comandante Norberto montávamos acampamento, no Ponto que eu denominara “Bomba 08” (33°19’14,3”S / 53°00’27,1”O) nos meus mapas, o Coronel Pastl foi deixar o automóvel, por questão de segurança, na casa do Sr. Paulo Renato Fabra, que ficava há 02 km de distância, conforme fora acordado com o Sr. Marcelo Souza. Dormimos cedo, a expectativa era grande, o vento Sul soprava a uns 14 km/h.

Bomba n° 08 – Rumo Norte (13.01.2016) 

Acordamos por volta das 05h30 (horário de verão), desmontei a barraca, embalei minhas tralhas e parti célere às 06h05, meia hora antes do Sol nascer, costeando a margem Ocidental, aproado para o Norte, embalado pelo “Carpinteiro da Costa” – vento SSE.

Ondas de quase um metro golpeavam suave­mente a alheta de Boreste do altaneiro “Argo II” sem, contudo, comprometer o seu deslocamento, mantive uma velocidade de 4 nós (7,2 km/h) e meu espírito vagava livre e solto deslizando nas cristalinas águas azul-esverdeadas da Mangueira sob um belo céu de um anil intenso e sem nuvens – eu me sentia em casa.

Fiz minha primeira parada, às 09h40, para esticar as pernas. Quando fui retirar a saia de neoprene, que uso para vedar o “cockpit” do caiaque, ela rasgou – minha velha companheira de tantas travessias estava ressecada e fragilizada pela exposição continuada ao Sol e às intempéries. O cadáver de uma enorme capivara estirado na margem chamou-me a atenção; embora a carcaça apresentasse avançado estado de decomposição, não se notava nela qualquer sinal de predadores.

Continuei minha viajem e, meia hora depois, (10h20) avistei, à retaguarda, a equipe de apoio a bordo do “Corais”. O vento mudara para SE, soprando a uns 16 km/h, dando continuidade à sua lenta rotação para o Norte (no sentido levogiro). A margem Ocidental é muito uniforme, extensos juncais, plantações de arroz e soja, bosques de pinus e eucaliptos além dos ciclópicos “levantes” – canais destinados à irrigação do arroz com água proveniente da Lagoa Mangueira.

Por volta das 11h30, os nautas sinalizaram para pararmos na “Bomba 14” (33°05’57,2”S/52°49’42,5”O) para almoçar. A origem do vento agora era ESE com uma velocidade em torno dos 18 km/h. A aproximação da margem foi difícil tive de surfar ondas de quase dois metros antes de aportar o “Argo II”.

O caiaque com seus 5,12 m de comprimento, longas e pronunciadas quilhas de proa e popa, é uma embarcação excelente para longas jornadas, mas não é uma boa opção para “pegar ondas”. Ao me aproximar da rebentação, coloquei o caiaque em um ângulo de 45° em relação à crista das ondas, e procurando evitar uma possível enterrada de proa, joguei o corpo para trás e inclinei o corpo no sentido das ondas, usando a pá esquerda do remo como estabilizador para tentar manter o equilíbrio frente àquela enorme massa d’água que me empurrava com violência de Boreste.

Repeti a operação mais quatro vezes até aportar, felizmente sem incidentes, à margem, onde fiz um reconhecimento da área encontrando um simpático patroleiro (operador de motoniveladora), que me informou que estava trabalhando em um empre­endimento do Complexo Eólico dos Campos Neutrais. Na parte alta da margem, logo ao Norte da “Bomba 14”, tinham sido construídos, pelo Complexo, confor­táveis apartamentos climatizados.

Antes de partir, acordei com a equipe de apoio que deveríamos acampar na “Bomba 20”, em um estreito canal relativamente protegido dos ventos e parti fustigado por um vento de Este de uns 20 km/h. A saia rasgada na direita permitia que, volta e meia, a água entrasse no “cockpit” do caiaque, comprometendo sua estabilidade. Tive de fazer uma parada interme­diaria para drenar a água do caiaque antes de aportar, por volta das 17h30, no local combinado, depois de remar 45 km. Recebemos a agradável visita dos senhores Delmar (rizicultor) e Gilson (pescador e “bombeiro” – encarregado de ligar a Bomba de Irrigação). Uma simpática cadelinha passou toda a tarde conosco, desfrutando dos pequenos petiscos que lhe atirávamos, e só foi embora depois que nos reco­lhemos.

Resolvi dormir no compacto compartimento de carga do veleiro para ganhar tempo na partida do dia seguinte: não foi, definitivamente, uma boa escolha. […]

Hiram Reis e Silva – O canoeiro

Por: Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 22.04.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com 

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