A Terceira Margem – Parte DCXC

Lagoa Mirim – Homenagem

Dom Pedro II

A comitiva triunfante e heroica do Imperador D. Pedro II sobre as sanguinárias hordas paraguaias deixou Uruguaiana, às 10h00 de 04.10.1865, com destino à Corte, passando por diversas cidades gaúchas até chegar à Cidade de Jaguarão. A comitiva partiu, então, de Jaguarão adentrando na Lagoa Mirim e no Canal São Gonçalo, onde fizeram uma breve parada na Vila de Santa Isabel antes de desembarcar em Pelotas e mais tarde percorrer a Laguna dos Patos de ponta a ponta.

Conde D’Eu

Conta-nos Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans – o Conde D’Eu:

21.10.1865 ‒ Infelizmente decretara o Céu que esta última marcha fosse a mais penosa possível. Durante a noite, a chuva fina da véspera passara a temporal desfeito. Contudo, sem embargo de tão mau tempo, creio que ninguém se lembrou, desta vez, de sus­pender a marcha. Passar ainda 24 horas em carre­tilha, estando nós já a sete léguas de Jaguarão, tão desejado termo da nossa viagem, seria excessiva­mente cruel.

Partimos, pois, às 06h00, muito animados. Mas a chuva torrencial que caíra durante as últimas oito ou dez horas bastara para fazer transbordar todos os afluentes do Jaguarão e para formar entre eles vastos banhados. Em suma, íamos constantemente por terreno inundado, muitas vezes chegava a água ao peito dos cavalos. Mais de uma vez meu carrinho foi inundado, mas consegui não molhar-me. Enfim, pelo meio-dia, entramos em Jaguarão e tivemos a felicidade de nos abrigar em casa do Sr. Gonçalves, se bem que privados da esperança de poder mudar de fato, porque, das carretilhas ([1]), já se sabe não havia o menor indício; tinham certamente ficado paradas ao pé do primeiro Arroio.

O Imperador fez a costumada visita à igreja. Constou-me que nesta cidade as crianças que o receberam, em vez das fitas das cores nacionais, se apresentaram de uma maneira considerada talvez mais patriótica, porém, sem dúvida, muito original. Traziam cintas de penas [à moda dos indígenas] e vinham com a pele pintada de vermelho, dos pés até a cabeça! Pareceu-me Jaguarão uma cidade relati­vamente insignificante. Está situada na margem esquerda do Rio do mesmo nome, que, como se sabe, aqui forma a fronteira com o Estado Oriental ([2]). À roda da cidade veem-se, irregularmente disseminados, princípios de fortificações guarnecidas de algumas peças de artilharia. Quer fosse em virtude destes imperfeitos meios de defesa, quer em consequência da enérgica atitude que tomou a Guarda Nacional, Jaguarão escapou, a 27.01.1865, de ser saqueada pelos “Blancos”.

Um bando deles chegou a passar o Rio e devastou diferentes estâncias vizinhas. Pode-se dizer que deram a volta à roda da cidade, depois julgaram mais prudente tornar a passar a fronteira. Em frente de Jaguarão, na margem direita do Rio, ergue-se a pequena cidade Oriental de San Servando ([3]).

Está ligada a Montevidéu por um serviço regular de diligências que chegam um dia sim, um dia não, e fazem a viagem em quatro dias. Jaguarão é o ponto mais Austral que em nossa viagem atingimos. Fica situado cerca de 1° mais ao Sul do que o Rio Grande, e mais 5° do que Porto Alegre ou Uruguaiana. Não é, todavia, o ponto mais Austral do Brasil, o qual ainda se estende mais 1° para o Sul. O Rio Jaguarão forma fronteira até a sua Foz na Lagoa Mirim.

Esta Lagoa forma um mesmo sistema com a Lagoa dos Patos, tendo como esta a sua maior dimensão aproximadamente paralela ao Oceano, de que fica separada por uma faixa de terreno de umas 5 ou 6 léguas de largura. A Lagoa Mirim tem largura um pouco menor do que a Lagoa dos Patos; o seu com­primento é de 150 km, metade do comprimento daquela. Foi por oposição à Lagoa dos Patos que recebeu o nome de Mirim, que, na língua indígena, quer dizer “pequeno”. A partir da Foz do Jaguarão, é a fronteira formada pela margem Ocidental da Lagoa Mirim. Tempo houve em que a fronteira passava mais ao Ocidente [sendo, portanto, a Lagoa exclusi­vamente brasileira] e ia terminar num cabo chamado “Punta de los Castillos”, mas, ao celebrarem-se os Tratados mais recentes, entendeu-se que havia conveniência em renunciar àquela faixa de terreno.

Como esta era, porém, uma concessão gratuita, estipulou-se que as águas da Lagoa ficariam sendo todas propriedades do Brasil. Da extremidade Sul da Lagoa vai a fronteira encontrar o Chuí, pequeno Rio que corre para Sueste. A sua Foz no Oceano, situada cerca de 34° de Latitude, é o ponto mais Austral do Brasil ([4]).

Para terminar as considerações geográficas, direi que a distância de Uruguaiana a Jaguarão, por Santana do Livramento a Bagé, é de 105 léguas: mas, por causa do desvio que fizemos para tornar a passar por Alegrete, andamos mais 15 léguas, ou seja, ao todo, 720 km; e que, de Cachoeira a Uruguaiana, por São Gabriel e Alegrete, são 90 léguas, mas, para passar por Caçapava, andamos mais 10, ou seja, ao todo, 600 quilômetros.

22.10.1865 ‒ Tendo cessado o temporal, aparece­ram as carretilhas pelas 3 horas, e, com elas, o po­bre Gen Beaurepaire, que já não sai nunca da sua e que, por conseguinte, passara estas 24 horas no meio dos banhados “muito mal”, como ele diz em tom dolente, e sem outro alimento senão os bolos e pães de ló de que sempre anda cuidadosamente provido. Como as minhas dores de cabeça continua­vam, impôs-me o Imperador um médico que, não sei como, descobrira em Jaguarão. Era um francês chamado Leboiteux ([5]); dizia ele que tinha percorrido todo o Brasil de um extremo ao outro, e também o Paraguai; porém estas viagens não o adiantaram muito em ciência: pareceu-me que a sua era da mesma força que a do Dr. Sangrado.

Logo me preceituou ([6]) que me conservasse de cama 48 horas com dieta absoluta e aplicasse 22 sangues­sugas. Submeti-me; mas, depois do tal tratamento, eu mal podia por um pé adiante do outro.

24.10.1865 ‒ Contudo, às 04h00 estava eu vestido, e pude ir no meu carrinho para a praia, onde nos esperava o “Apa” ([7]), às ordens do excelente Parker.

Escoltados pelo “Rio-grandense”, em que vai o Ministro, descemos, durante três horas, o sinuoso curso do Jaguarão, que vai serpenteando por entre margens planas, mas verdes, e a espaços arboriza­das. Depois, entramos na Lagoa ([8]) e viramos para o Norte. Passadas algumas horas entrávamos no Rio ([9]) São Gonçalo, largo curso de água que faz comu­nicar as duas lagoas. De tarde estivemos algumas horas parados, e o Imperador foi à terra visitar a nascente Vila de Santa Isabel. Enfim, às 20h00, por uma noite escura, abordávamos ao cais de Pelotas e subíamos para carruagens esplêndidas que em poucos minutos nos transportavam à casa, ou, para mais exatamente dizer, ao suntuoso palácio do Sr. Ribas, duplamente cunhado do Barão de Piratini.

25.10.1865 ‒ Depois de se ter percorrido duas vezes em toda a sua largura a Província do Rio Grande do Sul; depois de se ter estado em suas pretensas cidades e vilas, Pelotas aparece aos olhos encantados do viajante como uma bela e próspera cidade. As suas ruas largas e bem alinhadas, as carruagens que as percorrem [fenômeno único na Província], sobretudo os seus edifícios, quase todos de mais de um andar, com as suas elegantes fachadas, dão ideia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a cidade predileta do que eu chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que se pode empregar a palavra aristocracia falando-se de um país do novo continente.

Aqui é que o estancieiro, o gaúcho cansado de criar cavalos e matar bois no interior da campanha, vem gozar as onças e os patacões ([10]) que ajuntou em tal mister. É também em Pelotas que, ao pé dos ricaços que estão a descansar, florescem em todo o seu esplendor as indústrias que alimentam o verdadeiro luxo rio-grandense ‒ o dos arreios. Estas indústrias, como se sabe, são duas: a dos couros lavrados, cinzelados, coloridos, bordados de mil maneiras, e a das peças de prata, não menos artisticamente trabalhadas.

As diferentes classes da população estão, porém, bem separadas: em certas ruas as residências ricas: noutras as lojas. Especialmente na Rua do Comércio e na Rua de S. Miguel, vê-se uma fila contínua des­sas lojas, onde estão expostos estribos, esporas enormes, peitorais e freios; tudo de prata, ostentan­do esplendor deslumbrante, que iguala, não digo já o da Rua do Ouro, de Lisboa, mas até o da “Strada degli Orefici”, de Gênova. O rápido desenvolvimento de Pelotas é um fato notável, que não encontra análogo na Província e que pressagia a esta cidade um futuro considerável.

Foi em 1815 que, por ordem do Marques de Alegrete, que era Capitão-General da Província, se traçaram as suas primeiras ruas, sem casas, já se vê; e hoje, ao fim de 50 anos, conta a Cidade 10.000 habitantes, igualando, por consequên­cia, Porte Alegre, capital da Província, e deixando muito abaixo o Rio Grande, cidade que tem quase mais de um século de existência.

Acrescentemos que os 10 anos da guerra civil, 1853-1845, foram especialmente para Pelotas um período de misérias e de estacionamento. Houve mesmo tempo em que as tropas imperiais já não possuíam na Província senão três pontos: Porto Alegre, Rio Grande e São José do Norte; mas estes dois últimos asseguravam-lhe a comunicação com o Mar e com o Rio de Janeiro, e foi esta circunstância que as salvou.

Pelotas deve, certamente, a excepcional prosperida­de de que goza, à sua situação numa vasta e fértil planície, à beira de um lindo Rio, a quatro horas de navegação do Oceano e, ao mesmo tempo, na proximidade das partes da Província, que produzem mais gado, e da fronteira Oriental. Por todas essas vantagens, que esta cidade possui sobre Porto Alegre, se me afigura ser para lamentar que não seja ela a capital da Província. Foi isso, sobretudo, para lamentar por ocasião dos movimentos de tropas, a que se tornou preciso proceder nas circunstâncias, felizmente já passadas, que se deram este ano. E, em primeiro lugar, para falar do que mais pessoal­mente me toca, creio que, se aqui estivesse a capital da Província, as nossas cartas, em vez de gastarem trinta e cinco dias para nos chegarem do Rio de Janeiro a Uruguaiana, nos teriam podido chegar à mão em 20. De fato, para ir do Rio Grande a Porto Alegre, gastam-se, em circunstâncias particular­mente favoráveis, 24 horas.

Porém, tais circunstâncias são raríssimas: no inverno por causa dos temporais, no verão, em virtude da baixa das águas da Lagoa, o que deve ser bem grave embaraço, visto que a 7 de agosto achamos meio de encalhar. Não é este, porém, o principal inconve­niente da situação de Porto Alegre. Uma vez que ali se chegue, para atingir o Uruguai, ou se leve por objetivo Uruguaiana ou São Borja, torna-se preciso atravessar, na parte inferior do seu curso, a série dos afluentes do Jacuí, do Vacacaí e do Ibicuí.

E bem se sabe que as chuvas torrenciais deste clima os fazem frequentemente transbordar e os tornam invadeáveis durante dias consecutivos. Que demoras não resultam desta circunstância para o serviço dos correios, e que perda de tempo e que sofrimentos para as tropas! É o que sobejamente se tem visto nos últimos meses.

Pelo contrário, indo de Pelotas [aonde como eu disse, facilmente se vai do Rio Grande em três horas], pode-se chegar ao Uruguai sem encontrar, em linha reta, um único curso de água digno de menção. Já não falo do caso de ser a guerra toda do lado da fronteira Oriental: nesse caso a concentração das tropas em Porto Alegre seria absurda. A objeção de que Pelotas, pela sua mesma proximidade da fron­teira Oriental, é, em caso de guerra, ponto, muito exposto, parece-me ter pouco fundamento, porque, se se fortificarem Bagé e Jaguarão a ponto de se porem estas duas praças no abrigo de um assalto, bastarão elas para proteger Pelotas. O Ministério precedente, reconhecendo tudo isto, tinha deter­minado que o Presidente da Província se conservasse em Pelotas enquanto durasse a guerra; porém caiu, e qual é o Ministério que tem a abnegação de realizar as ideias do seu predecessor? A transferência defi­nitiva da capital só pode ser resolvida pela Assem­bleia Provincial, e que pouco permite esperar que ela venha a verificar-se. O teatro de Pelotas é o único que na Província se acha aberto, apesar da guerra. O Imperador e Augusto lá foram à noite; mas parece que o espetáculo não fazia honra ao bom gosto do público pelotense.

27.10.1865 ‒ No dia 27, o Imperador e Augusto partiram para Porto Alegre a bordo do “São Miguel”, escoltados pelo “Apa”. Por ainda estar convalescendo não tomei parte neste passeio de ida e volta de um extremo ao outro da Lagoa dos Patos. […] (D’EU)

Considero muito mais significativa que a efême­ra passagem do Imperador D. Pedro II pelos Mares de Dentro a oportunidade de conhecermos um pouco desta figura humana invulgar que foi, sem dúvida, o mais competente e culto mandatário que a “Terra Brasilis” já conheceu.

Carta Náutica ‒ Lagoas Mirim e Mangueira

D. Pedro II colocou o Brasil no cenário inter­nacional, enfrentou e venceu três conflitos internacio­nais, estimulou a cultura e as ciências, agindo, não raras vezes, como legítimo mecenas ao patrocinar pes­soalmente artistas, pesquisadores, escritores e poetas.

Extremamente erudito, falava e escrevia, além da língua pátria, o espanhol, o italiano, o latim, o fran­cês, o alemão, o inglês, o grego, o árabe, o hebraico, o sânscrito, o chinês, o provençal e o tupi. Em sua home­nagem, vamos reproduzir parte da obra de autoria do Segundo Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios ‒ Gervásio José da Cruz, escrita em 1865, sob o título “Uma Página Memorável da História do Reinado do Senhor Dom Pedro II – Defensor Perpétuo do Brasil”, que trata da libertação “incruenta” de Uruguaiana graças à sábia intervenção do ínclito monarca.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 17.01.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul (agosto a novembro de 1865) ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Companhia Editora Nacional, 1936.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO); 
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);    
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Carretilhas: carretas. (Hiram Reis)

[2]   Estado Oriental: Uruguai. (Hiram Reis)

[3]   San Servando: nos idos de 1792, Joaquin Gundín fundou na região três posições fortificadas com o intuito de impedir o avanço português. Apenas uma delas vingou, a Guarda Arredondo, situada à margem esquerda do Rio Jaguarão. Em 1801, a Guarda mudou-se para a margem direita do Jaguarão. Em 1831, Servando Gómez fundou a Vila de San Servando e em 1853, San Servando foi renomeada para Villa Artigas. (Hiram Reis)

[4]   Ponto mais Austral do Brasil: ponto extremo litorâneo, já que o terrestre é a Curva da Baleia do mesmo Arroio. (Hiram Reis)

[5]   Leboiteux: Miguel Luiz Le-Boiteux. (Hiram Reis)

[6]   Preceituou: prescreveu. (Hiram Reis)

[7]   Apa: vapor Rio Apa. (Hiram Reis)

[8]   Lagoa: Mirim. (Hiram Reis)

[9]   Rio: Canal. (Hiram Reis)

[10]  Patacões: o pataco era uma moeda de prata de 960 réis que pesava 27,07 gramas. (Hiram Reis)

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