A Terceira Margem – Parte DCLXXII

Travessia da Laguna dos Patos – Parte I

O Povo n° 1, 01.09.1838

Eu vi Corpos de tropas mais numerosas, batalhas mais disputadas, mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes que os da bela cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras aprendi a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações.

Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril e destemida gente, que sustentou, por mais de nove anos contra um poderoso império, a mais encarniçada e gloriosa luta!

(SANT’ANA)

O treinamento na represa da Granja do Valente produziu-me um efeito salutar tanto físico como moral. Eu estava, definitivamente, pronto para enfrentar, mais uma vez, a “inconstância tumultuária” da Laguna dos Patos.

Minha apreensão anterior em relação à prepara­ção física, prejudicada pelos rigores do inverno “pam­peano”, foi substituída pela fé e pela confiança.

A rigorosa travessia, realizada em plena “Sema­na Farroupilha”, era uma justa homenagem ao “herói de dois mundos” – Giuseppe Garibaldi. Vamos ressaltar aqui a travessia terrestre de Garibaldi que, guardadas as devidas proporções, procuramos homenagear reali­zando a transposição do Pontal de Tapes para encurtar, consideravelmente, o trajeto.

Herói de dois mundos

Era belo e forte como um atleta, e as melenas alouradas caindo-lhe até os ombros, davam-lhe a mais romântica das aparências ‒ uma estranha e buliçosa aparência de espadachim inquieto… (BRASIL GERSON)

O Herói Farroupilha Giuseppe Garibaldi é conhe­cido, na historiografia, como “herói de dois mundos” por ter participado de conflitos nos continentes europeu e americano. Prestando serviço à marinha republicana, Garibaldi foi aquinhoado com duas canhoneiras impe­riais, que tinham sido aprisionadas por Bento Manoel Ribeiro, além de receber a missão de construir dois lanchões, em um barracão improvisado às margens do Rio Camaquã, para combater a frota imperial que patrulhava a Laguna dos Patos, com o objetivo de evitar que o Porto de Rio Grande fosse tomado pelos Heróis Farroupilhas.

Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck, na sua obra “A Odisseia de Garibaldi no Capivari”, assim se referem às dificuldades encontradas por Garibaldi em transformar os “Centauros dos Pampas” e ex-escra­vos em carpinteiros, armadores e por fim marinheiros:

Possuía a República um pequeno estaleiro na Foz do Rio Camaquã, usado para a construção de barcos pa­ra futuros combates. De acordo com as sugestões de Domingos José de Almeida, resolveu-se que Garibaldi deveria organizar um corso ([1]) nas águas interiores.

Afinal, Garibaldi era um homem do Mar e deveriam aproveitar a sua experiência. Para lá dirige-se Gari­baldi. Tem de improvisar marinheiros e reúne italia­nos aventureiros de toda a laia, um norte-americano quaker da Virgínia chamado John Griggs, ex-escra­vos e gaúchos de bota e espora. Mas tem de impro­visar também armadores e carpinteiros. Como não tem barcos, vê-se obrigado a fabricá-los, com toda a precariedade de recursos que a República rio-gran­dense lhe oferece. É aqui, verdadeiramente, que co­meça a brilhar o seu gênio, que mais tarde assom­brará o mundo. Constrói e arma dois lanchões de guerra e faz prodígios operando nas águas rasas da Lagoa dos Patos, pondo em xeque a poderosa esqua­dra imperial brasileira, comandada por um experien­te Almirante inglês, chamado de John Pascoe Gren­fell, mercenário a serviço da Corte no Rio de Janeiro.

Conseguiu do Governo que Luigi Rossetti fosse a Montevidéu a fim de buscar a ajuda de Carniglia e outros profissionais indispensáveis. Após algumas semanas, tinha completa a equipagem de mestres e operários. Vieram alguns marinheiros de Montevidéu e outros foram recrutados pelas redondezas. Em 1° de setembro de 1838, Giuseppe Garibaldi é nomeado Capitão-Tenente, Comandante da Marinha Farrou­pilha. Aparece o 1° número do Jornal Oficial dos Farrapos ‒ O POVO, editado pelo jornalista italiano Luigi Rossetti, fiel companheiro de Garibaldi.

Em 26 de outubro, Eduardo Mutru, amigo de infância de Garibaldi, une-se a ele, conforme decreto oficial, publicado no jornal O POVO:

Expediente pela Repartição da Guerra e Marinha.

Ao Capitão-Tenente José Garibaldi, comunicando-lhe haver sido despachado Eduardo Mutru, 2° Tenente para a Marinha da República, o qual marcha nessa data a reunir-se-lhe. (SANT’ANA)

O escritor Paulo Markun, no seu livro “Anita Garibaldi, uma Heroína Brasileira” relata:

As duas lanchas foram batizadas com nomes que evocavam vitórias farroupilhas: a maior, “Rio Pardo”, era destinada a Garibaldi, enquanto o “Seival” ficaria com o norte-americano John Griggs. Cada uma delas tinha dois pequenos canhões de bronze. Em termos bélicos, isso significava que só a destreza dos marinheiros, a pequena profundidade das águas do Camaquã e uma dose extra de sorte impediriam um fracasso logo na primeira saída.

Setenta homens, sendo sete italianos, compunham a tripulação, assim descrita pelo chefe das Forças Navais da República (in Giuseppe Garibaldi):

Uma verdadeira chusma cosmopolita composta de tudo, tanto na cor quanto na nacionalidade. Americanos em sua maioria, e na maior parte constituídos de negros e mulatos libertos e, no geral, os melhores e mais fiéis. Entre os europeus, eu contava com italianos, dentre os quais o meu Luigi e Eduardo Mutro, meu companheiro de infância – ao todo, sete com quem podia contar. O resto compunha-se daquela classe de marujos aventu­reiros conhecidos nas ribas americanas do Atlântico e do Pacífico pelo nome de Irmãos da Costa, classe que certamente havia fornecido as equipagens dos flibus­teiros, dos bucaneiros e que ainda hoje fornece seu contingente ao tráfico de negros. (MARKUN)

Continuam Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck:

O Império, informado de tal estaleiro, mandou barcos vigiar a saída de barcos para a Lagoa. Porém, Garibaldi, como tinha previsto, saiu junto à costa da Lagoa, por entre aos juncos, não sendo notado pelos imperiais. Em suas “Memórias”, ele faz o seguinte relato: […]

Começaram então as nossas correrias pela Lagoa dos Patos. Passaram-se alguns dias sem fazermos mais do que presas insignificantes. Os imperiais tinham trinta navios de guerra e um barco a vapor. Porém, nós tínhamos a nosso favor os baixios das águas. A Lagoa não era navegável para os grandes barcos, senão numa espécie de canal que se seguia ao longo da sua mar­gem no Oriente. No lado oposto, sucedia o contrário, porque o solo era cortado em declive e nos víamos, às vezes, encalhados antes de tocar na margem. Os bancos de areia estendiam-se pela Lagoa à semelhança dos dentes de um pente e só havia de bom que estes dentes eram bastante afastados uns dos outros. Quan­do éramos forçados a encalhar, ou os canhões do navio de guerra ou do vapor nos incomodavam, dizia:

Avante, meus patos, saltemos à água!

E os meus patos caíam n’água e à força dos braços erguiam o lanchão, transportando-o para o outro lado do banco de areia.

A vida que passávamos era laboriosa e cercada de perigos, em razão da superioridade numérica do inimi­go, mas, ao mesmo tempo, essa vida era encantadora, pitoresca e muito em harmonia com o meu caráter. Não éramos unicamente marítimos, seríamos também cavaleiros no caso de necessidade. No momento do perigo, encontraríamos quantos cavalos quiséssemos e formaríamos um esquadrão, senão elegante, ao menos temível.

Nas margens da Lagoa, encontravam-se estâncias que, pela aproximação da guerra, tinham sido abandonadas pelos proprietários, onde achamos muita abundância de cavalos e o necessário para o seu sustento; por outro lado, nas herdades ([2]), existiam terrenos cultivados, onde colhíamos abundância de trigo, batatas doces e muitas vezes, excelentes laranjas, que são as melhores de toda a América do Sul. (SANT’ANA)

Prossegue o escritor Paulo Markun:

Na primeira quinzena de maio, os lanchões farrou­pilhas entraram na Lagoa dos Patos pela primeira vez. Circularam por ali durante nove dias, procuran­do uma presa. Finalmente surgiram duas, no rumo de Porto Alegre, sem escolta e com a bandeira do império hasteada. A “Rio Pardo” se aproximou, se­guida pelo “Seival”. Depois de dispararem um único tiro de canhão, abordaram a desguarnecida sumaca ([3]) Mineira, cujos tripulantes fugiram num batelão, para serem presos em terra, não longe dali, enquan­to outro veleiro, o patacho “Novo Acordo”, escapava, indo rumo ao Rio Grande, levando a notícia do ataque. Essa primeira captura virou uma festa: a sumaca acabou inutilizada, ao encalhar na margem, mas tudo o que havia dentro foi aproveitado. Cordas, velas e equipamentos seriam usados em outros lanchões. A maior parte da carga – quinhentas barri­cas de farinha – foi entregue ao Governo, que as distribuiu por várias cidades, incluindo a capital, Piratini. Os marinheiros receberam parte do butim ([4]), incluindo uniformes. Como resposta, o Almirante Grenfell mandou para a Lagoa quatro navios de guerra. Mas não era fácil apanhar barcos pequenos e de pouco calado, cujos tripulantes agiam como guer­rilheiros. Só atacavam quando o inimigo era mais fraco, conheciam todos os meandros daquelas águas e, vez por outra, desembarcavam com seus cavalos – havia sete a bordo – mostrando a mesma compe­tência exibida minutos antes nas escotas ([5]) e adri­ças ([6]), com rédeas e arreios.

Sempre que havia um baixio pela frente, os lan­chões, perseguidos pelos imperiais, corriam o risco de encalhar. Nesse momento, Garibaldi gritava:

– À água, patos.

Os marinheiros obedeciam com alegria. Seguravam o barco sobre os ombros – Garibaldi entre eles – e o carregavam para o outro lado da ponta, desnor­teando o inimigo. Muitas vezes, tiveram de ficar horas dentro da água fria da Lagoa e o bom humor desaparecia, mas bastava surgir nova situação de risco e lá iam os patos de Garibaldi para dentro da água. Mas essa brincadeira de esconde-esconde terminou quando a cúpula Farroupilha concluiu que era indispensável conquistar o Porto de Laguna – com a ajuda daquele arremedo de Força Naval. O projeto não era segredo, como mostra esta notícia publicada no Rio de Janeiro pelo Jornal do Com­mercio, de 8 de junho de 1839:

Os insurgentes têm o propósito de mandar, por estes dias, uma expedição a Santa Catarina, sob a direção do Coronel Onofre Pires, com o fim de sublevarem os pacíficos habitantes daquela Província e os obrigarem a separarem-se da comunhão brasileira. Esta notícia, que a muitos não merece peso, julgamos que deve merecer toda a atenção da parte do Governo; pois não há dúvida que se têm preparado os ânimos em Santa Catarina para a revolta; e que muitos dos nossos revolucionados se foram abrigar naquela Província; e por isso ali existem os elementos necessários e só falta quem lhe dê começo. Esse alguém foi Davi José Mar­tins, ou melhor, o General Davi Canabarro. No desastre de “Rincón de Las Gallinas”, em que as tropas imperiais foram derrotadas, ganhara o galardão de Tenente e a fama de bravo, ao enfrentar o inimigo de forma desesperada, para permitir que os outros recuassem. Nos tempos de paz, ao trabalhar com seu tio, Antônio Ferreira Canabarro, conquistara o sobrenome com que passaria à história.

Quando a Farroupilha começou, estava quieto no seu canto. Tempos depois, cingiu novamente a espada e apresentou-se como voluntário. Seis meses antes de a expedição Farroupilha virar manchete no “Jornal do Commercio”, o Governo republicano tinha mandado uma comissão de especialistas até a parte Norte da Lagoa dos Patos. Quem consulta um simples Atlas Geográfico Escolar vê uma linha escura demarcando a costa gaúcha desde Torres até São José do Norte. Nenhuma Barra de Rio, nenhuma baía, nada. Mas ali existe um acesso. Tão pequeno que foi ignorado pelos primeiros navegadores e cartógrafos. É a Barra do Rio Tramandaí. Segundo os entendidos, um aci­dente geográfico completamente inútil para fins de navegação. Garibaldi e o General Canabarro estive­ram no local e concluíram que era possível utilizá-la para alcançar o Atlântico. Mas como chegar do Rio Capivari até as Lagoas que levariam a essa Barra quase impossível? Garibaldi tinha um plano. Apre­sentou-o ao Governo e obteve o indispensável sinal verde, certamente com o aval de Canabarro.

Outros já haviam usado o mesmo expediente: Marco Antônio, o Imperador romano, Mohamed II, o Sultão, bem como os venezianos e, mais recentemente, não muito distante do Tramandaí, corsários a soldo da Confederação. Charles Fournier, um francês a serviço dos uruguaios, teve seu navio “Profeta Bandarra” apri­sionado pela escuna “Leal Paulistana”. Como vingança, atacou a base de Maldonado, transportando sobre carretas e com a força de juntas de bois um lanchão e dez baleeiras. (MARKUN)

Batalha del Rincón de las Gallinas

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 06.12.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia:  

BRASIL GERSON. Garibaldi e Anita, Guerrilheiros do Liberalismo – Brasil – São Paulo, SP – Editora José Bushatsky, 1971.

LOBO, António da Rosa Gama. Princípios de Direito Internacional – Volume I – Portugal – Lisboa – Imprensa Nacional, 1865.

MARKUN, Paulo. Anita Garibaldi, uma Heroína Brasileira – Brasil – São Paulo, SP – Editora SENAC, 2000.

SANT’ANA, Elma. O Seival: E a Odisseia de Garibaldi no Capivari – Brasil – São Leopoldo, RS – Benchimol Soluções Gráficas, 2021.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Corso (latim “cursus” – corrida): Todo corsário deverá munir-se de uma licença do chefe de Estado a quem servir: esta licença chama-se “carta ou patente de corso”. A “carta de corso” considerar-se-á documento necessário para autorizar um simples cidadão a tomar parte na guerra, e só poderá ser mandada passar pelo chefe do Estado. Todo o ato de hostilidade, praticado sem esta autorização, será punido com a maior severidade. (LOBO)

[2]    Herdades: grandes propriedades rurais. (Hiram Reis)

[3]    Sumaca: pequeno barco de 2 mastros. (Hiram Reis)

[4]    Do butim: da pilhagem. (Hiram Reis)

[5]    Escota: corda presa a um canto inferior de uma vela, para fixá-la e regular sua orientação. (Hiram Reis)

[6]    Adriça: cabo para içar vergas (peça de madeira, colocada no sentido horizontal sobre os mastros, onde se prendem as velas), velas e bandeiras. (Hiram Reis)

Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *