A Terceira Margem – Parte DXCV

Jornada Pantaneira

Decisiva Batalha – Parte II

No dia consagrado, atualmente, à Arma de Engenharia do Exército Brasileiro o jornal “O Globo” publicou o artigo do Dr. Pinheiro Guimarães:

O Globo n° 97
Rio de Janeiro, RJ – Sábado, 10.04.1875
Seção Histórica
Guerra do Paraguai

Aniversário do Ataque da Ilha do Cabrita ou Da Redenção

O Globo n° 97, 10.04.1875

Corria o mês de abril de 1866. Havia pouco mais de um ano que o Chefe Supremo do Paraguai, fazendo-se o mantenedor do equilíbrio sul-americano, que só ele pretendia romper, arrojara sobre os povos vizinhos desarmados e desprevenidos suas hostes semibárbaras e fanatizadas.

Ao norte, na província de Mato Grosso, província remota, despovoada e limítrofe do Paraguai, o pavilhão tricolor do povo guarani maculava ainda com a sua sombra sangrenta o solo sagrado do Brasil; mas ao sul, revezes sobre revezes tinham sucedido aos seus primeiros triunfos, filhos da surpresa e da felonia.

O exército aliado, composto em grande parte de homens que na véspera haviam abandonado a enxada ou a lima, a pena ou o pincel, as lides do comércio ou os trabalhos do gabinete, e que, reunidos às pressas em batalhões, sem disciplina nem instrução, marcharam sobre o inimigo de que estavam separados por centenas de léguas, havia esmagado 3.000 paraguaios em Jataí, aprisionado 5.000 em Uruguaiana e enxotado da Confederação Argentina as numerosas falanges de Resquin, enquanto a esquadra brasileira escrevia nos fastos heroicos da humanidade essa página esplendente, que se chama a Batalha Naval de Riachuelo.

Deixando mais tarde os acampamentos da Lagoa Brava e de Tala-Corá, onde demasiadamente se demorara, viera ele afinal fincar as suas, tendas na margem esquerda do rio Paraná, em frente ao Passo da Pátria, Quartel General de López, e ao alcance da artilharia do Itapiru, fortim erguido na ribanceira oposta pelo pai do Ditador.

Saindo apressadamente do território argentino, o exército paraguaio abandonara a ofensiva audaciosa com que começara a luta, e que lhe dera tão amargos frutos, para colocar-se francamente na defensiva.

Desde então começam as retiradas, retiradas seguidas de longas paradas em pontos protegidos, por obstáculos naturais, fortificados pela arte, e entremeadas de ataques bruscos, de sortidas e surpresas mais, ou menos felizes, porém sempre vigorosas e valentemente executadas. Terrível sistema, capaz de eternizar a guerra por maiores que sejam os recursos, o valor e a superioridade numérica dos adversários, quando for energicamente dirigido e posto em prática com abnegação e coragem.

E López deu provas de uma energia inquebrantável, seu exército tinha o valor e a disciplina que levam o soldado à morte certa sem cuidados, sem murmúrios, sem hesitação; seu povo possuía bastante abnegação para, em obediência a uma simples ordem, abandonar tranquilamente o lar, destruir as searas, afrontar a fome e fugir do contato de um inimigo que lhe oferecia liberdade e proteção, deixando-lhe somente campos talados ([1]), árvores cuidadosamente despidas de frutos, e a água de seus brejos, onde saciando-se a sede, muitas vezes se bebia a morte. Além disto, o país, cortado de rios, coberto de -pântanos e de tremedais ([2]) sem fundo sobretudo na região por onde podia ser mais facilmente atacado, eriçado de matas tropicais, quase sem estradas e de séculos vedado ao estrangeiro, estava talhado para tais operações. López compreendeu tudo isto, tarde para triunfar, se triunfar podia, mas ainda em tempo de paralisar durante anos os esforços de três povos contra ele coligados. Tendo o exército de Resquin transposto o Paraná, o ditador reuniu-o às suas outras Forças, e postou-o na margem direita desse rio colossal, interpondo assim um fosso enorme entre os seus canhões e as baionetas da aliança. Fora executada a primeira retirada, ia ter lugar a primeira parada.

Primeira retirada, primeira parada, que deviam ser seguidas de outras muitas, durante quatro anos, através de todo o território paraguaio, desde o Passo da Pátria até o Aquidaban, e que constituem outras tantas peripécias da epopeia da defesa, epopeia brilhante, se o seu principal protagonista não aliasse a uma indomável tenacidade a fereza, do tigre; se os outros personagens, grandes ou pequenos, não deixassem transparecer, mesmo nos seus feitos mais notáveis, antes a obediência passiva do escravo que morre porque o senhor lhe ordena, do que o entusiasmo viril do cidadão que por impulso próprio à Pátria se sacrifica. Fazendo alto na margem direita do Paraná, o Exército Paraguaio esperava o inimigo protegido por um tremendo obstáculo que o aliados deviam transpor, se as nações que representavam não se contentassem, como não se contentavam, em repelir a invasão que tão brutalmente lhes fora levada. A expulsão de López das livres terras da América, era para elas não só questão de ponto de honra; mas garantia de um futuro tranquilo e desassombrado.

Derrocar de uma vez o fatal sistema implantado por Francia no Paraguai, e que fazia do povo dessa república um grande exército, feroz e disciplinado até o automatismo, afiada espada sempre apontada aos peitos dos vizinhos, tornara-se para elas uma necessidade indeclinável, se queriam afazer ([3]) os braços de seus filhos antes ao serviço do arado ou aos trabalhos da indústria, do que manejo da lança e aos exercícios da artilharia, se ambicionavam vê-los a labutar nas oficinas e herdades; e não aglomerados nas fronteiras, de espingarda ao ombro e de patrona ([4]) à cinta.

Atravessar, porém, um grande rio, guardado por um exército numeroso e valente, tendo-se de penetrar em regiões desconhecidas e misteriosas, é sempre uma operação arriscadíssima. Era, entretanto, preciso executá-la, o quanto antes. O tempo necessário para prepará-la já parecia por demais longo às nações aliadas, que, ardendo na febre da vingança, pediam em altos brados pronta e completa desforra dos insultos recebidos.

Haviam entregue aos seus generais o mais puro de seu sangue, posto a sua disposição todos os seus tesouros, nem hesitavam em comprometer o futuro, nem as assombrava a miséria e o luto.

‒  Vingai-nos, diziam, e vingai-nos já!

Mas a responsabilidade dos generais era imensa, as febres populares dissipam-se, a reflexão vem depressa quando a despertam o pranto das mães, os gemidos dos órfãos e a áspera voz do fisco a reclamar a maior parte do produto de afanoso labor.

Era preciso atravessar o Paraná, perseguir a fera no seu antro, mas os que estavam à testa do exército deviam assegurar, tanto quanto possível, um êxito feliz à essa perigosa operação para que mais tarde não se lhes pedisse severa conta do sangue inutilmente derramado, dos recursos esbanjados por falta de tino e de prudência.

Entretanto, a impaciência que lavrava no ânimo dos povos aliados, trabalhava também o espírito de seus exércitos; cumpria fazer-se alguma coisa, tirá-los da inação em que haviam caído, do contrário se criaria, talvez, o desânimo, ou, pelo menos, se adormeceria o nobre afã, a sede de combates de que estavam animados.

Foi, cremos, principalmente sob a pressão dessas considerações que o General em Chefe dos Exércitos Aliados acedeu ao plano apresentado em conselho pelo então Major Dr. José Carlos de Carvalho, Chefe da Comissão de Engenheiros do Exército Brasileiro. Esse distinto oficial, que mais tarde veio a sucumbir no serviço do País, propunha, que fosse ocupada a ilha, ou antes o banco de areia, que na vazante o Paraná deixa à descoberto em frente ao Itapiru.

Essa ideia fora muito impugnada. Fizera-se notar que a ocupação da ilha não traria vantagens e sujeitaria as forças que nela teriam de permanecer ao fogo do inimigo e a penosos sacrifícios. De posse dela, sem dúvida, de mais perto se poderia bombardear o Itapiru, porém, este fortim mais facilmente seria destruído pelos pesados canhões dos encouraçados do que pela pequena artilharia do exército.

Ocupada a ilha facilitava-se a passagem do Paraná? Diretamente, de certo que não. Indiretamente, talvez que sim, servindo essa ocupação para iludir os paraguaios, se acaso estes supusessem tão loucos os aliados que fossem justamente desembarcar em frente à ilha, do ponto mais guardado da margem paraguaia, e sob o fogo dos canhões das suas fortificações.

Quer, porém, interviessem decisivamente, como cre­mos, as considerações de ordem moral acima apon­tadas, quer não, o que fato é que o plano de ocupar-se a ilha, foi abraçado pelo General em Chefe. Na noite do dia 5 de abril algumas canoas guarnecidas por praças do exército, e conduzindo parte do 3° Batalhão de Infantaria Brasileira, acompanhavam um vaporzinho em que iam o chefe e outros membros da comissão de Engenheiros dirigindo-se da margem correntina para a ilha, onde sem novidade chegaram.

Chefe e membros da Comissão de Engenheiros, oficiais e praças do 3° de Infantaria em pouco tempo a percorreram. Estava deserta, e seu solo completa­mente arenoso prestava-se a que em poucas horas nela se erguessem fortificações passageiras. Feito o reconhecimento, regressou a expedição. No dia seguinte, 6 de abril, reinava notável animação nos arraiais do Exército Brasileiro. Sabia-se já que se ia ocupar a ilha naquele mesmo dia, e esse ato de franca ofensiva exaltava os espíritos. (O Globo n° 97) (Continua…)

Passo da Pátria (Imperial I. Artístico)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.06.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia    

O GLOBO N° 97. Aniversário do Ataque da Ilha do Cabrita ou Da Redenção – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – O Globo n° 97, 10.04.1875.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Talados: arrasados. (Hiram Reis)

[2]    Tremedais: atoleiros. (Hiram Reis)

[3]    Afazer: habituar. (Hiram Reis)

[4]    Patrona: cartucheira. (Hiram Reis)

Nota – A equipe do EcoAmazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias