A Terceira Margem – Parte DCXXII

Jornada Pantaneira 

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Comissão de Engenheiros

Era então Ministro da Guerra o Visconde de Camamu, que pouco depois faleceu [creio que em 1866]. Nem de propósito. Estava o Imperador despachando uns papéis com o Camamu, quando meu pai apareceu. Aproveitando a vaza, contou a que ia ao imperial amigo e, depois de verificado com o habitual escrúpulo que tal ato não ia de encontro a lei nenhuma positiva, foi ali mesmo assentada a minha nomeação de ajudante da Comissão de Engenheiros junta às forças destinadas a Mato Grosso. Fiquei contentíssimo e saí a anunciar a boa nova a Catão, que foi apresentar-me ao Lago e em seguida ao nosso Chefe Tenente-Coronel José de Miranda da Silva Reis. (TAUNAY, 1948)

Membros da Comissão de Engenheiros

Seis eram os membros da Comissão de Engenheiros:

1  ‒  Antônio Florêncio Pereira do Lago, Capitão do Corpo de Estado-Maior da 1ª Classe. ([1])

2  ‒  Catão Augusto dos Santos Roxo, Primeiro-Tenente do Corpo de Engenheiros.

3  ‒  José Eduardo Barbosa, Primeiro-Tenente do Corpo de Engenheiros.

4  ‒  João da Rocha Fragoso, Segundo-Tenente do Corpo de Engenheiros.

5  ‒  Joaquim José Pinto Chichorro da Gama, Primeiro-Tenente do Corpo de Engenheiros.

6  ‒  Alfredo de Escragnolle Taunay, Segundo-Tenente de Artilharia.

CATÃO AUGUSTO DOS SANTOS ROXO

Filho do Rio Grande do Sul, moreno, de olhos apertados, nariz grosso, testa toda enrugada pelo hábito de franzi-la, muito simpático na feição e nos modos a que de contínuo procurava imprimir o cunho guasca, conforme denominava, mas com um “quid” ([2]) um tanto grotesco, sem ser, contudo, ridículo, antes engraçado naturalmente e malgrado seu, bambo das pernas e sempre a se queixar desta fraqueza.

Dei-lhe na escola o apelido de “gato gordo”, que pegou pela semelhança com algum roliço bichano.

Foi dos rapazes e companheiros a quem na minha vida consagrei mais viva e real afeição. Tudo quanto fazia e dizia o Catão tinha para mim irresistível gra­ça. Quando, depois de mais de dez anos de íntima e constante convivência, rompemos relações por causa do canalhíssimo Coronel A. [e deveras não valia a pena], experimentei um dos mais fortes e penosos sentimentos de toda a minha existência, espécie de espinho que pungiu muitos anos, até a nossa recon­ciliação em 1881.

Estava, porém, quebrado o encanto. Bom caráter, egoísta, mas capaz de rasgos de dedi­cação, sabe bem o que estudou e conhece adminis­tração, tendo sido ótimo e leal auxiliar de vários Ministros da Guerra; é, porém, pouco lido em literatura.

Padecendo de surdez, que se vai acentuando, gosta em extremo de música. Gênio bastante melan­cólico, concentrou-se cada vez mais no sistema de vida, da qual excluiu, desde o princípio da carreira, qualquer estímulo de ambição.

Já na subida da Serra do Cubatão, a braços com um reumatismo que o atacara violentamente, exclamava com uns “ais” e “uffs” que me faziam torcer de riso:

Vou me reformar! Não nasci para façanhas! Leve à breca a farda, a fama, a glória! Não sou disto; prefiro o meu cômodo a todas essas bobagens! Ai, meu reumatismo, ai!

Quanto me ri com Catão Roxo e por causa dele! Quanto! Uma vez atirei-me ao chão, na relva para poder rolar-me a gosto e desfazer-me em gargalha­das – quase estourei! Estávamos a caminho para a Vila das Dores do Rio Verde, vulgarmente chamada Abóboras, na Província de Goiás e levantamos pouso sem o Catão, que ficara a procurar uma bestinha de montaria chamada Rosilha, desaparecida de madru­gada. À tarde, nós, há muito acampados na barranca de grosso e límpido Córrego, quase Ribeirão, eis que apareceu o nosso retardatário, na estrada do lado de lá, na atitude ambos do maior cansaço e abatimento, o animal, sujo até às orelhas caídas, o cavaleiro todo derreado e com as abas do chapéu do Chile caídas e viradas. Enorme vaia os acolheu.

Parado algum tempo na borda oposta a procurar melhor descida, de repente fraqueou a Rosilha das mãos e o Catão, saindo pela cabeça do animal, rolou o barranco todo e foi cair sentado no meio do córrego com a figura mais extraordinária que dar-se pode, entre resignação e furor. Nós não podíamos mais de tanto rir, enquanto ele nos descompunha:

Miseráveis, canalhas, infames, zombarem da desgra­ça de um companheiro!

E todo pingando, a custo subiu a margem de cá com as botas cheias d’água e a espada, por cima, a se lhe meter pelas pernas, o que o ameaçava a cada tropicão de focinhar novamente. Desses episódios, um mundo. (TAUNAY, 1948)

JOSÉ EDUARDO BARBOSA

Louro, de olhos azuis, amigo de mistérios e retrai­mentos, primava pelo egoísmo, sem, contudo, ter qualidades que impedissem certa intimidade de relações. Tinha o cacoete de torcer a cabeça, ora para o lado direito ora esquerdo, sestro nervoso que lhe valem a engraçada alcunha de engole sardinhas. Às vezes, parecia que a tal imaginária presa recal­citrava ao entrar na garganta, de maneira que os esforços se amiudavam, até que voltava a sereni­dade. Então um de nós gritava: “Passou!”, o que era acolhido com grandes brados: “Passou, passou, mais uma!” E o Barbosa ria-se com os demais. (TAUNAY, 1948)

JOÃO DA ROCHA FRAGOSO

Muito alto, magro, dispéptico ([3]). Quase sempre ingênuo, às vezes arrogante, aturava, segundo a disposição do dia, com paciência, ou não, os nossos contínuos gracejos, em que o fazíamos figurar com uma ladainha de cognomes: João Prosa, João Macieza, João Beleza, João Bússola, conforme a ocasião e a gabolice que apregoara mais particular­mente. Os índios de Mato Grosso lhe aplicavam a alcunha muito característica de cabeça de nuvem por causa da cabeleira toda solta e arrepiada. Foi-lhe desastroso o fim, depois de grande dúvida com o Ministro Afonso Celso, em 1880, morrendo no Hospício de D. Pedro II.

Casara com uma artista de Ópera, a contralto Leopoldina Iweskowska, mãe dedicadíssima e exem­plar de três filhinhos órfãos, com quem ficou após a desgraça do marido. (TAUNAY, 1948)

JOAQUIM JOSÉ PINTO CHICHORRO DA GAMA

Era de todos nós o mais velho. Esguio, muito chupado, quase esquelético com barbas esquálidas, de um louro sujo, já passando para branco, testa larga que abria em funda calva, maneiras esquisitas de alquimista ou descuidado sábio, nos lhe chamávamos o vovô. Possuía instrução variada e sólida, sobretudo em matemática; conhecia botânica e geologia e vivia agarrado aos livros. Inspirava-nos, senão respeito, pelo menos tal ou qual acatamento, não só pela erudição sincera, modesta e nunca encarecida, como também por ter na vida certos lados misteriosos que não penetrávamos e que ele zelosamente encobria.

Era homem já afeito ao sofrimento e aos reveses. Um deles conhecíamos desde a Escola. Apaixonara-se loucamente por uma filha de um Coronel de Artilharia e vira-se preterido por um colega de ano, não só na pretensão à mão da disputada moça, como na candidatura a uma das cadeiras da Praia Vermelha. Parece que por tudo isto ficara algum tempo transtornado do juízo [valeria a pena?].

Em relação ao Chichorro falavam também em desa­venças e desgostos muito sérios com os pais na Bahia, berço de toda aquela família, conceituada pelos princípios intransigentes de honra e dignidade, de que o nosso colega era, decerto, digno e nobre tipo. De constituição muito débil, sempre adoentado, pilhou fortíssima bronquite ao chegar a São Paulo naqueles frigidíssimos dias de um abril excepcional­mente áspero.

Tão mal nos pareceu o seu estado, que o nosso Chefe, Miranda Reis, propôs-lhe a volta ao Rio, o que recusou com a máxima energia.

O primeiro dever do militar é saber morrer. Ou de bala ou de moléstia, a distinção pouco importa.

Entretanto, apesar da debilidade, eu o pirraçava quanto podia.

“Culpa não tem você”, exclamava furioso, “culpa tem o governo que nomeia para Comissões de Engenheiros beldroegas ([4]) [expressão que lhe era favorita] da sua idade, meninozinhos, Segundos-Tenentes de artilharia!”

E tais palavras mereciam os aplausos do Barbosa e do Fragoso, muito ciosos ambos das funções de Engenheiros Militares e da gola de veludo que lhes ornava a farda. Pobre Chichorro! Para diante muito me hei de referir a este bom e infeliz companheiro, cuja morte foi horrível. (TAUNAY, 1948)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 11.08.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Memórias do V. de Taunay ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Instituto Progresso Editorial, 1948.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1] Dedicamos, o capítulo anterior especialmente ao Capitão Pereira Lago reproduzindo um artigo de Taunay enaltecendo o mesmo. (Hiram Reis)

[2]    Quid: que. (Hiram Reis)

[3]    Dispéptico: que padece de indigestão. (Hiram Reis)

[4]    Beldroegas: pessoa insignificante, inútil. (Hiram Reis)

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