A Terceira Margem – Parte DCXVIII

Jornada Pantaneira

Pereira do Lago ‒ Um Herói Anônimo Parte I

A têmpera dos heróis anônimos da Retirada da Laguna forjada na caserna e aperfeiçoada nos desafios impostos pela carreira das armas aproxima estes seres dos deuses das guerras e povoa o imaginário dos pueris mortais. Os heróis são homens de coragem, homens capazes de se imolar por uma causa; não são homens comuns. Vamos reproduzir, a seguir, a biografia de um deles publicada na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda, editada em 1893, de autoria do Visconde de Taunay.

Cel Antônio Florêncio Pereira do Lago

Apontamentos Biográficos

I

Filho legítimo de Gonçalo Garcia dos Reis nasceu Antônio Florêncio Pereira do Lago no dia 10.05.1825. Dá a sua fé de ofício o ano de 1827, sem indicar o mês; mas a outra data é a autêntica, por teste­munho próprio muitas vezes confirmado.

Foi-lhe berço a então Província do Rio Grande do Norte, em lugarejo ou sítio próximo, salvo engano, à cidade de Mossoró. Após grandes dificuldades de vida na sua meninice e adolescência, chegado à idade de 18 anos, tomou por si a resolução de jurar bandeiras no exército e assentar praça de Soldado, o que realizou a 21.08.1843 e, incluído no depósito de recrutas, foi logo promovido a Cabo de Esquadra, sem dúvida por saber ler e escrever, mais ou menos corretamente.

Transferido para o Rio de Janeiro e classificado no 1° Batalhão de Fuzileiros, mereceu sucessivos acessos, na classe dos oficiais inferiores, aos postos de Furriel a 22.06.1846 e, menos de dois meses depois, a 08.08.1846, de 2° Sargento pelo comportamento exemplar, pelos hábitos de cuidadosa disciplina e ótimo desempenho de todas as suas obrigações. Sempre igual e digno, mas sem arrogância, retraído, fugindo por instinto das más rodas, com tendências à melancolia despida de agruras e displicência, amigo do silêncio, trazendo os seus papéis e mapas diários em muita ordem, correto e justiceiro na sua esfera de mando, não tardou a granjear a estima e o respeito dos Soldados e a confiança dos Superiores, em cujo contato mais imediatamente se achava. Conta-se, que nesse tempo de penosa iniciação militar, consigo mesmo estudava rudimentos de francês e aritmética, quando fazia o serviço de ordenança, levando constantemente na cartucheira um livro, em que concentrava todos os esforços, mal tinha qualquer momento de lazer e folga. Que admirável exemplo e que proveitosa força de vontade! Habilitando-se assim, a pouco e pouco, nos preparatórios [e quanta energia para isso não se fazia precisa!] após quase seis anos de trabalho à formiga, assíduo, sem descanso e cada vez mais duro e complicado, conseguiu afinal o seu ardente objetivo, tendo, por Aviso do Ministério da Guerra de 08.01.1849, licença para estudar na Escola Militar o curso da arma a que pertencia e matriculando-se no primeiro ano, a 13.03.1849. Estava vencida a parte mais árdua e dolorosamente severa da sua existência, a tentar afanosamente libertar-se das sombras da ignorância e sair do círculo de inferioridade social, em que tanto se debatera e contra o qual desde o princípio se rebelara o seu espírito nobremente ambicioso. Não lhe foram, contudo, imediatamente proveitosos esse grande favor e primeiro sorriso da sorte.

Dispensado do serviço militar a fim de cursar as aulas, mas não podendo manter-se sobre si com os mais que escassos recursos pecuniários de que dispunha, teve que engajar-se por mais seis anos, muito embora a posição de simples Soldado Raso lhe trouxesse como aluno não poucos atritos desagradáveis e até pungentes com os companheiros de estudos, no geral Cadetes e Praças de posse de privilégios e regalias, que não lhe era dado gozar.

Voltou, pois, à vida dos quartéis e, transferido para o 13° de Infantaria, embarcou com destino ao Rio Grande do Sul, de onde seguiu a tomar parte na rápida e gloriosa campanha do Uruguai terminada a 04.06.1852, uma vez derrubado do poder na Batalha de Monte Caseros, a 03 de fevereiro desse ano, o ditador D. Juan Manuel de Rosas.

Apesar dos hábitos de absoluta e susceptível reserva que sempre mantinha acerca dos primeiros e dificílimos períodos da sua carreira, de vez em quando se referia ainda com angústia aos muitos sofrimentos suportados naquela campanha, obrigado como fora a marchar dia e noite, de pés no chão, por sóis ardentes com pesada arma ao ombro e enorme mochila às costas.

Entrou no combate, ou antes, na escaramuça de Canelones e mereceu elogios pela firmeza com que levou a sua Companhia ao fogo. Em 1853, vemo-lo de novo na Escola Militar, pedindo fossem averbadas as notas de habilitação em Aritmética, Geografia, Gramática e Francês e apresentando, afinal, a 24 de dezembro, atestado de haver sido aprovado plenamente no 1° ano do curso. Matriculado no 2°, seguiu, em janeiro de 1855, para a capital do Império e, tendo ali prestado com êxito os respectivos exames, foi, por decreto de 14 de abril, promovido ao posto de Alferes de infantaria.

Pequena e bem modesta era sem dúvida a posição alcançada aos 30 anos de idade, quando muitos outros mais felizes vão palmilhando brilhante estrada no mundo ou até já atingiram as culminações sociais, coroados dos louros de fácil triunfo; mas, assim mesmo, quanto caminho vencido, quanto obstáculo superado por aquele pobre filho de pequena e longínqua Província, desprotegido de todos e que só podia e devia contar consigo mesmo!

Em contraposição, porém àqueles afortunados do destino, quantos, nas condições de Pereira do Lago não teriam e não terão desanimado de vez nos primeiros degraus da desanimadora escada a galgar, afundando-se irremediavelmente nas trevas, de que haviam querido um dia emergir?

E a sua promoção a deveu ele ao ilustre Duque de Caxias então Ministro da Guerra, a cujos olhares, atenção e sagacidade de ilustre Chefe e perspicaz Capitão não escaparam a pertinácia e o nobilitante e esforçado empenho da simples praça de pret. ([1])

Tenho toda a certeza, disse o glorioso militar ao novo Alferes no dia da apresentação, que essas suas divisas serão sempre honradas! O seu passado, de que me informei com o maior interesse e que conheço todo, por isto me responde.

No ano seguinte teve ainda mais pronunciada recompensa da já menos obscura, mas sempre valente luta, vendo-se transferido, a 28.05.1856, para o Corpo do Estado Maior de 1ª Classe, livre afinal e para todo o futuro das canseiras e do ônus das armas arregimentadas. Enorme fora o passo para o recruta de 1843!

Rematriculando-se, em 1857, na Escola Militar do Rio de Janeiro, localizada já então na Praia Vermelha, ali concluiu o curso da sua especialidade, sendo promovido, a 14.03.1858, Tenente com antiguidade de 2 de dezembro do ano anterior, e ainda mais, dispensado do serviço para poder continuar em seus estudos e seguir as aulas de Engenharia Militar.

Aprovado a 14.12.1858 plenamente no 4° ano e em geologia, pediu e com facilidade obteve licença para completar, na Escola Central, a sua educação de Engenheiro Civil e, a 10.12.1859, recebeu o grau de Bacharel em Matemáticas e Ciências Físicas.

Uma vez formado e de posse de tão honroso diploma, casou, a 12.05.1860, com D. Matilde Medina Coelho de Almeida, ano também em que foi nomeado engenheiro das obras públicas na Província do Rio de Janeiro.

Nesse cargo se manteve até começos de 1866 e nele prestou os melhores serviços, deixando bem assinaladas a sua atividade e competência no traçado e execução de importantes vias de comunicação, nos planos e construção de próprios provinciais e, sobretudo, nos trabalhos de canalização das águas do Rio Vicência para abastecer de água a cidade de Niterói.

Em muitos pontos do Rio de Janeiro ainda hoje se conserva bem viva a lembrança da laboriosidade e proficiência técnica do Engenheiro Lago, a par da escrupulosíssima honestidade, franqueza de gênio e lealdade de caráter, que por toda a parte lhe anga­riavam simpatias e amizades. (Taunay, 1893) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 28.07.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. Coronel Antônio Florêncio Pereira do Lago – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda – Companhia Tipografia do Brasil, 1893.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Praça de Pret (ou de Praça de Pré): os Praças eram contratados e pagos, às vezes antecipadamente, pelos dias trabalhados (o adianta­mento de soldos era chamado, na época, de “pret” ou “pré”) e os Oficiais, por sua vez, eram contratados por três anos. (Hiram Reis)

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