A Disciplina e a Lealdade

Repercuto o artigo de meu caro Amigo, Irmão e Mestre Higino Veiga Macedo.

A Disciplina
(Higino Veiga Macedo)

[…] A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.

Camões – Canto X – Estrofe 153.

Há tempo tento aprender e entender sobre DISCIPLINA. Entendê-la, mas sem as definições não muito cuidadosas dos dicionários, hoje muito ideoló­gicos e até partidários. A Disciplina é parte da estrutura moral da atividade militar, junto com a Hierarquia, dizem muitos estudiosos.

É fácil entender HIERARQUIA porque ela é um estamento de responsabilidades e deveres e são, em qualquer circunstância, codificadas. São níveis de res­ponsabilidades numa sequência de subordinação. Reco­nhecê-la e entendê-la faz parte da DISCIPLINA.

A DISCIPLINA e a HIERARQUIA, como já dito, são fundamentos morais como dois apoios, colunas, da “atitude militar”. Eu criei mais um elemento moral – a Lealdade – não como coluna e nem só para quebrar a instabilidade que a díade permite, mas como blindagem impermeabilizante das duas colunas. Poderia até consi­derá-la uma terceira coluna, como fator de estabilidade que a tríade permite. Mas fugiria da tradição do Exér­cito e do Povo brasileiros.

Há tempo também escrevi sobre a leitura errada que algumas pessoas, incluídos alguns militares, fazem sobre Disciplina. Confundem-na com Obediência e até com Submissão.

      • Disciplina – é a subordinação consciente de coisas aprendidas;  
      • Obediência – é a submissão cega pela subser­viência, submissão, escravização:

Temos de ver o preto como branco, se a Igreja assim determinar. (Carta de Ignácio de Loyola aos Jesuítas portugueses).

A Submissão tem etimologia extensa. É um elevado grau de subjugação que torna o submisso instrumento do subjugador para qualquer ação: legal, ilegal, religiosa ou não religiosa; moral ou imoral. É uma domesticação psicológica e obsessiva, perversas:

A ti Adolf Hitler ([1]), Führer e chanceler do Reich, presto juramento de fidelidade e de coragem. Eu te juro, a ti e aos chefes por ti designados, obediência até a morte. Que Deus seja testemunha. (Juramento das SS, na etapa final de admissão, dia 20 Abril – aniversário de Hitler).

Em um livro de autoajuda li e colhi esta definição: “Disciplina é fazer o que não é natural” ([2]). Nesta definição, entendi que disciplina se aprende a fazer, a ter, a estar. Não é um instinto. Não nasce com o indivíduo. É cultural.

Há nos dicionários que Disciplina tem a mesma etimologia de Discípulo. E os discípulos são sempre eternos aprendizes e seguidores.

Há na obra de Michel Foucault ([3]) toda a Terceira Parte dedicada à Disciplina onde ele repassa diferentes conceitos vindos dos quartéis, dos monastérios e das escolas. Locais onde se não houver disciplina não haverá o alcance de objetivos e competências. A ele é: – a consciência de fazer bem feito o que deve ser feito.

Há o muito conhecido Canto X, de Camões, sobre a “disciplina militar prestante” a que talvez mais me convença como definição. Registra o poeta a repre­ensão dura, direta, mas honesta, de Aníbal a Formião. Aníbal um prático, como sói acontece ao combatente. Formião, um filósofo, que “diante dele, com larga voz tratava e lia” sobre o que não sabia. Um teórico. Con­testa-o Anibal:

[…]não se aprende, Senhor, na fantasia… […]

Aliás, opinar sobre o que não se sabe é tão comum nos dias de hoje, quando são chamados a opinar, sobre atividades militares, os ditos “especialistas”.

Ao longo da vida militar consegui entender a Disciplina. E meu entendimento passa muito próximo do que referenciei. A mim, a DISCIPLINA é a prática de qualquer missão, função, responsabilidade… com a dedicação vocacionada, sacerdotal, “mongeana”. É o professar a atividade.

Ao professar, se pratica a atividade como a uma religião não só fazendo, mas ensinando, aprendendo, corrigindo, informando como o PROFESSOR. A DISCI­PLINA é a ação professada. Portanto, ser feito sem o medo de imposições de fiscalizações, regras e leis. Não é cumprir o imposto por uma ordem de alguém.

Do que até agora procurei e encontrei, registro que disciplina não é a submissão domesticada: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Li que é uma aprendizagem e não algo instintivo. Li que é uma necessidade para atingir objetivos e competências.

Entendi que não é um método, uma atividade, apenas. Nem um assunto, um conhecimento – como a Matemática – cuja aprendizagem requer a disciplina.

Entendi que é A COMPREENSÃO DO MEU NÍVEL DE IMPORTÂNCIA NUM TODO. Para tê-la em nível de excelência, preciso: aprender, treinar, executar, dedi­car, criar, cooperar, orientar, corrigir, atualizar, de modo a me tornar útil e trazer benefício ao todo no qual estou inserido. O disciplinado, por si só introjeta sua importância em qualquer ofício.

Portanto, a um “disciplinado” não necessita um controlador. A um “disciplinado” não necessita de um contexto, pois solitariamente é capaz de agir. A um “disciplinado” não precisa de regras agudas, com penalizações, para sua eficiência e eficácia. A um “disciplinado” não precisa explicar sempre sua posição na hierarquia. Todo disciplinado é objetivo e consciente.

Não há disciplina consciente, com predito às vezes. Se não for consciente, não será disciplina e sim cumprimento de ordens.

Enfim, passei tantos anos procurando uma defi­nição e vim encontrá-la em Camões. Secularizou-a como excelência quando perpetuou a repreensão dada por Aníbal a Formião. Qualificou, a DISCIPLINA pratica­da, treinada, adestrada, ao superlativo. Coloco em for­ma de prosa o que facilita o entendimento:

De Formião, filósofo elegante,
Vereis como Aníbal escarnecia,
Quando das artes bélicas, diante
Dele, com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.

Aprendi TUDO com Camões o que é DISCIPLINA.

A Lealdade
(Higino Veiga Macedo)

É de domínio geral, que a instituição militar se apoia em dois fundamentos morais: a Disciplina e a Hierarquia. Popularmente, consideram-na duas colu­nas. Elas constam de tratados, leis e estudos o que lhe dá uma dimensão real, objetiva, quase palpável.

Penso que existe o terceiro, e, também, impor­tante fundamento moral: a Lealdade. Numa acepção pitagórica, é lícito considerar que seja uma terceira coluna, para quebrar a instabilidade, da díade e se ter a estabilidade da tríade.

Entretanto, a Lealdade é sentimento, vontade, talante e daí ser virtual, abstrata, intangível. Concebo-a com fluidez plástica. Esta plasticidade fluida a faz material ligante na estrutura das outras duas. E dá-lhes têmpera que necessitam.

É difícil individualizá-la uma vez que está entranhada, misturada, amalgamada nas outras duas. É sempre tratada no campo filosófico e psicológico, sem constar das leis, dos regulamentos e de estudos. De­pois de entendida, se vê que sem ela, as outras duas ficam corroídas, minadas, falsas, porosas, inconsis­tentes e quebradiças. É a resina catalisadora, da estru­tura, que impermeabiliza.

A Lealdade é latente no homem. Será manifesta nele, quando for conquistada a sua confiança através da honradez, da sinceridade e do senso de justiça.

A Lealdade é um vetor, pois tem direção, sentido e quantidade. As direções são três: para os superiores, para os subordinados e para os pares (semelhantes). O sentido é bilateral, isto é, tem ida e volta. A unilateralidade nega-lhe a existência. A quantidade (valor) é mais complicada de explicar. Recorre-se à filosofia. Esta quantidade será a diferença entre o maior e o menor, pois, um sistema de medidas é sempre um padrão arbitrado pelo homem.

E qual será a quantidade menor e a maior, de lealdade? Bem, acho que a lealdade menor é para com o inimigo e a maior, para com a Pátria.

A Lealdade é FORÇA de líderes que ao usá-la nas três direções – para superior, para subordinado e para os pares, usa tal força com o mesmo valor, com o mesmo quantum.

Então, pode-se afirmar que a Lealdade, nas três direções, é formada por três “S”: – Superior; Subordinado e Semelhante.

Assim, há que se considerar a LEALDADE como o terceiro fundamento moral de sustentação da Insti­tuição Militar como importante elemento na manuten­ção e coesão dos outros dois fundamentos basilares: sem Lealdade, a Hierarquia é anarquia; sem Lealdade a Disciplina é caótica.

Conclusão

Conclusão tem vários significados. O que desejo não é o fechamento de conhecimentos. Um resumo. O que desejo é que seja ensinamento, moral, lição… [Sinônimo de Conclusão – Sinônimos (sinonimos.com.br)]. Como dito, busquei reproduzir o que pratiquei. Por ser experiência própria, não me “apóio” (com acento) em descrições particularizadas e teóricas que sempre tem muito do “dever ser” por quem nunca praticou o “ser”.

Para mim ficou assim estabelecido, depois de trinta e cinco anos de serviço militar, dos quais 14 anos amazônicos onde deixei cento e cinquenta quilômetros de estrada pioneira e contribui com mais de duzentos em asfaltamento. Ainda amazônico, comandei um Batalhão de Construção que para comandá-lo tive que transferi-lo por seis mil km de rio e mais quinhentos km de rodovia. Na Amazônia a saga começou como Segundo Tenente em unidades de construção até Tenente-Coronel. Como Coronel tive o privilégio de servir em Manaus e conhecer todos os pelotões de fronteira. Isso me permitiu conhecer de Pacaraima a Humaitá; de Marajó a Tabatinga. Esta bagagem me permite definições tais como:

      • Líder fundamentado na coragem moral e no equilíbrio emocional;  
      • Líder militar está fundamentado no comandan­te de pelotão, para mim o “líder militar pri­mordial”, isto é: primitivo, inicial, primário, primevo, básico, basilar. ([4])  
      • Hierarquia fundamentada na Responsabili­dade;  
      • Disciplina pautada no domínio de seu ofício, pelo eterno aprendizado, praticado de forma professada;  
      • Lealdade como fundamento moral que amál­gama a hierarquia e a disciplina.

Por isso e muito por isso, nesta parte do planeta Terra, chamado Brasil, eu não só “vim, vi, venci”, mas como combatente “CHEGUEI, LUTEI, CONQUISTEI, FIXEI E PERMANECI”.

HIGINO VEIGA MACEDO
RIO, 02.SET.1990

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 02.05.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;    

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    A Ordem Negra – Heinz Höhne – Biblioteca do Exército e Laudes Editores – Vol 79; Pub 404 – 1970 – Pag. 106.

[2]    O Monge e o Executivo – James C Hunter – Editora Sextante – www.sextante.com.br.

[3]    Vigiar e Punir – Michel Foucault – Editora Vozes – 27ª Edição – Trad de Raquel Ramalhete.

[4]    https://www.sinonimos.com.br/primordial/   

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