A Terceira Margem – Parte DLXXIII

Jornada Pantaneira

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

A Retirada da Laguna –Parte XI

XI

Rebate Falso. Últimas Ilusões.
O Tenente Vitor Batista. Passagem do Apa.
Volta ao Território Brasileiro.

Algumas horas mais tarde, cerca de meia-noite, ouvimos horrível fragor a que dominava um grito único: Cavalaria paraguaia! Abriram fogo as sentinelas avançadas. Tornara-se o acampamento teatro de geral balbúrdia: tiros rasgavam a treva, deixando entrever formas fantásticas, ora de homens a empunhar o revólver ou o sabre, ora de animais, estes ainda mais perigosos, procurando por toda a parte como escapar, e numa excitação furiosa, ao passo que os seus guardas, não sabendo como os conter, enchiam os ares de imprecações.

Alucinante terror se apoderara do gado no sítio em que estava preso. Averiguada a causa de tal pânico pusemo-nos todos a rir, tornando-se universal esta hilaridade. Está a vida da guerra cheia dos mais ines­perados contrastes. O extremo frescor das noites de inverno, na América do sul, mesmo entre os trópicos, obrigou-nos logo a voltar aos nossos improvisados abrigos onde as exigências do sono reconquistaram todos os direitos durante as horas decorridas até o amanhecer. Aos primeiros albores pusemo-nos novamente a marchar, expostos ao fogo da artilharia inimiga, mas sem que nos detivéssemos em lhe responder.

Levavam os nossos atiradores de vencida tudo o que diante deles achavam e não perdiam tiro. Haviam alguns cavaleiros inimigos caído, desde o começo da fuzilaria e seus cadáveres ficaram estirados, abando­nados na estrada, não tendo seus camaradas tido tempo de os levantar e arrastar na carreira.

Reconhecendo os nossos que um destes corpos era o de certo desertor brasileiro, evadido de Nioaque, muito antes da guerra, não foi possível, apesar de todos os esforços dos oficiais, subtrair os despojos deste miserável ao furor dos soldados. À medida que passavam o golpeavam com a espada ou a baioneta.

Encaminhávamo-nos para as ruínas da Bela Vista. Abria-se diante de nós largo vale, quase plano, tendo à direita um renque de colinas de suave declive. Te­ria o inimigo podido aproveitar-se, contra nós, desta disposição do terreno; mas chegamos a tempo de utilizá-la, ocupando a primeira destas elevações.

Dali o nosso fogo manteve os paraguaios a distância, enquanto marchávamos, e nossas peças iam su­cessivamente ocupar os pontos que melhor podiam cobrir-nos. Esta manobra, pela precisão com que foi diversas vezes repetida, levou-nos sãos e salvos até um último cabeço que domina o Apa e Bela Vista. Ali nos estabelecemos, naquela manhã de 09.05.1867.

Lá ainda ocupávamos a fronteira do Paraguai, embora batidos pelo pungente pesar de a deixar. Tão recentemente a havíamos atravessado, certos de realizar importante diversão, talvez até indispensável à causa da pátria! Nós nos sentíamos como corridos de vergonha, vendo nossas esperanças de glória tão cedo desvanecidas. Escapara-nos a presa e não queríamos ainda aceitar a absoluta necessidade de a abandonar.

Assim, pois, iria confinar-se à região dos sonhos a visão daquele território magnífico, aberto diante de nós, sob tão belo firmamento? Dali nos era, pois, indispensável sair, exatamente quando prováramos superioridade em armas? Faltavam-nos, não havia dúvida, as munições; mas de um momento para outro não poderíamos recebê-las? Já não tinham, desde muito, sido pedidas a Nioaque? Acaso cheguem, explicava um oficial aos seus camaradas, o Coronel, que ainda não se conformou com o pronunciar a palavra retirada, ordenará logo nova ofensiva. E assim devaneávamos sem ligar maior importância a todos estes pensamentos.

Um homem, no entanto, avidamente acompanhara tais conversas: era o nosso infeliz guia. Absorto, sombrio, sem uma só palavra para quem quer que fosse, desde que retrogradávamos reconcentrava-se na contemplação dos sofrimentos da família, reduzi­da ao cativeiro, exposta aos tormentos, já os haven­do sofrido talvez: mulher, filhos, parentes, amigos.

Assumira, a seu ver, a marcha para a frente, o aspe­cto de um compromisso que, uma vez tomado sob a invocação do patriotismo e da humanidade, era defi­nitivo, embora a todos nós custasse a vida! Agora, que se falava de penetrar novamente no Paraguai, tornara-se outra vez entusiástico e expansivo. Do comandante, abroquelado no mutismo, corria aos oficiais e destes aos soldados, garantindo se encarregava de abastecer o corpo de Exército. Se nos entregássemos à sua experiência, haveria de conduzir-nos por caminhos que só ele conhecia, a lugar seguro onde o esperaríamos. Enganavam-se os que acreditavam na exaustão de recursos de sua fazenda. Ainda possuía reservas e tudo sacrificaria, como já tudo sacrificara. Nós lhe admirávamos a alma generosa: mas eram-lhe evidentes as ilusões e exageros.

Destruindo-se por si mesmas contribuíam para nos abrir os olhos à verdade. Se ainda algumas dúvidas nos restavam, veríamos demonstrada a nossa absoluta impotência pelas notícias trazidas por um dos nossos oficiais, o Tenente Vitor Batista, que, da Colônia de Miranda, escoltado por doze soldados, viera ao nosso encontro. Não se avistara com os paraguaios; mas quanto ao objeto de nossa principal preocupação, ou por assim dizer, o único, contou-nos que nenhuma remessa de munições partira de Nioaque. Um bom número de carretas de comércio, carregadas de mercadorias, havia realmente atingido a Machorra.

Ainda estavam algumas paradas à nossa espera; mas as outras, a maioria, ao saber de nossas refre­gas com o inimigo, tinham tornado atrás, certas de que não nos encontrariam mais.

A Machorra, como já dissemos, está situada a dez quilômetros de Bela Vista, em território brasileiro; e podíamos supor que os inimigos, preocupados conosco, e com o que poderíamos fazer, ainda se não haviam dirigido para ali. Interromper a nossa marcha, para atrasar a deles, ficar além do Apa e fazer, entretanto, com que os mercadores tomassem o mais depressa possível a estrada de Nioaque, tais foram, pelo que pudemos julgar, as ideias do Coronel. Por elas se apaixonou. Considerava desonra ver apreender tão rica presa pelo inimigo, que indo sempre à nossa frente, haveria de atingi-la antes de nós e não deixaria de arvorá-la em troféu. Assim, pois, ordenou aos diferentes corpos que só a 11.05.1867, dois dias mais tarde, levantassem acampamento.

Debalde apressaram-se vários oficiais em lhe fazer ver que, para a execução de uma retirada, já comprometida pela escassez de víveres que nos ameaçava, havia a maior urgência em atravessar o Apa, antes que os inimigos tivessem conseguido torná-lo para nós intransponível; a não ser mediante sacrifícios de todo o gênero, e sobretudo o de uma delonga que infalivelmente nos perderia.

Mostrou-se irredutível, defendendo-se numa única alegação: exigia a dignidade do Corpo de Exército a demonstração de que a retirada se efetuava tanto sem precipitação como sem temor. Restava-lhe man­dar levar à Machorra a ordem para que os nossos mascates regressassem a Nioaque; e foi então que se lhe transmutou a funesta obstinação em verda­deira ideia fixa. Chamando o Tenente Vitor Batista, o portador das notícias recentes, dele indagou qual seria o melhor meio de entrar em comunicação com o comboio e quem poderia executar a Comissão.

Depois, como este valente oficial não hesitasse em oferecer-se, aceitou-lhe a proposta, sem nada querer ouvir das observações que me foram feitas acerca dos inconvenientes de se arriscar assim a perder um oficial, de patente já distinta, tão dedicado, e cuja perda podia trazer o desânimo à coluna. Continuou inabalável, a tudo respondendo com o dizer que o filho de Lopes lhe serviria de guia, tomando atalhos que conhecia e impraticáveis à cavalaria.

Tal ordem se executou. Dois dos nossos refugiados do Paraguai, os irmãos Hipólito e Manuel Ferreira, arrastados pela confiança no filho de Lopes junta­ram-se ao Tenente Vitor. Partiram os quatro, deixan­do-nos cheios de apreensões as mais intensas. Mal decorrera meia hora, ouvimos distintamente, ao longe, tiros de fuzil. Estremecemos, fitavam os nossos olhos o ponto onde os ausentes haviam desaparecido. Vimos, afinal, o filho de Lopes sair só, da mata do Sul, correndo para nós, seminu e todo ensanguentado.

Apenas cobrou alento, contou o que se passara. Os paraguaios os haviam cercado, matando o Tenente e os irmãos Ferreira. Ele próprio conseguira escapar graças a um espinhal denso onde se lançara e don­de, por milagre, pudera atingir o Rio. A todos cons­ternou este fatal acontecimento. Quanto não deve ter sofrido o infeliz Coronel Camisão com o seu gênio tão acessível às angústias do arrependimento e do remorso! Dominou, contudo, a comoção: não disse palavra, e não tardou em ordenar aos engenheiros que, sobre o Apa, construíssem uma ponte para a passagem das tropas. Tudo o que se pôde fazer, por falta de material e ferramenta, foi uma pinguela e ainda assim vacilante e pouco segura.

Felizmente, porém, baixara sensivelmente o nível das águas e o Rio mostrava-se vadeável. Começou a passagem da coluna às seis da manhã seguinte. Foi morosa e difícil. Os soldados atravessavam a água, levantando acima das cabeças armas e bagagens, a lutar com a rapidez da corrente. Os doentes, os oficiais, os músicos e as mulheres utilizaram-se da pinguela.

Houvesse o destino determinado que os inimigos cui­dassem em assestar a artilharia numa esplanada que nos ficava a cavaleiro, ou simplesmente espalhassem atiradores em torno de nós, caro nos teriam feito pagar a invasão do seu território, no momento em que o deixávamos. Felizmente adotaram outro plano; separados em dois grupos, um esperou-nos à frente, ao passo que o outro se dispunha a cair-nos à retaguarda, desde que entre ela e o resto da coluna visse o Rio. Não surtiu efeito a combinação, mantidos que foram a distância respeitosa pelo fogo rápido, e habilmente dirigido, de uma das nossas peças, a que, do alto da chapada, onde se estabelecera o nosso acampa­mento, podia varrer todos os arredores.

Depois dos batalhões do centro e seus canhões pas­sou o gado costeado por 12 homens, a quem coman­dava o Capitão da Guarda Nacional Silva Albuquer­que. Nossa vanguarda com as peças que tinham protegido a passagem, transpôs o Rio a seu turno, coberta pelo fogo de uma bateria que acabava de tomar posições defronte da margem paraguaia.

Às nove e meia, quando nos achávamos todos em território brasileiro, foi a nossa ponte improvisada cortada por alguns soldados que para este serviço reservara o Ten Catão Roxo. Recomeçou o Corpo de Exército a marchar, acompanhando a margem que o fogo do Forte de Bela Vista, agora arruinado, podia outrora dominar.

Tomou a dianteira o Batalhão de Voluntários do Tenente-Coronel Enéias Galvão, indo o 21° de Infantaria, comandado pelo Maj José Tomás Gonçalves, formar a retaguarda. Entre eles ficaram os corpos do centro: à direita o 20°, comandado pelo Cap Ferreira de Paiva; e, à esquerda, o corpo de caçadores sob as ordens do Cap Pedro José Rufino.

Cobria toda esta força duas linhas de carretas, no meio das quais iam as mulas carregando o resto de nossos víveres, munições e alguma bagagem de ofi­ciais. Vinha depois o grupo das mulheres, dos enfer­mos e convalescentes. Nossas últimas juntas de bois arrastavam as peças; a de Marques da Cruz, no ân­gulo da direita; a de Nobre de Gusmão, no da es­querda; a de Cantuária à extrema-direita da reta­guarda; e a de Napoleão Freire à extrema-direita.

À retaguarda do 20° Batalhão, e fora das linhas, tudo superintendendo iam o Comandante e parte do seu Estado-Maior. A cada momento enviava, para todas as direções, os seus oficiais e Ajudantes-de-Campo, a fim de se regularizar o movimento.

Por duas vezes ao Chefe dos voluntários, à vanguarda, avisou que os seus atiradores, por demasiado ardor, se isolavam da coluna, com grande risco para todos, como não tardaram os fatos a demonstrá-lo.

Avançávamos; e nossos olhos se despediam de Bela Vista, dizendo-lhe adeus e para sempre. Muitos daqueles que conosco estavam, então, não mais existem. O que podem desejar os seus sobreviventes é nunca mais regressarem àquele teatro de tanta miséria. Já se não percebia um pedaço de muralha branca, único destroço ainda de pé do que fora a Fortaleza daquela fronteira; nada mais se via além das franças ([1]) da mataria do Apa.

Aberta de todos os lados, estendia-se a campina acessível aos olhos, exceto num ponto a alguma dis­tância, à nossa frente, e ponto que os nossos atira­dores não haviam reconhecido. Uma espécie de es­carpa ali mascarava o que verificamos ser profunda depressão do solo, embaixo de suave declive que tornava a subir para a Machorra, cujo caminho seguíamos. Ascendia o sol, eram doze horas. (TAUNAY, 1874) (Contiunua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 14.04.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Das franças: dos ramos mais altos. (Hiram Reis)

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