A Terceira Margem – Parte DLXVIII

Jornada Pantaneira

A Retirada da Laguna –Parte VI

VI
Em Marcha. Formatura da Coluna.
A Vista da Fronteira. 

Fortalecido em sua primeira resolução, não pôde, entretanto, o Coronel Camisão executá-la sem deixar perceber algumas das antigas hesitações. Fora ele próprio que, para 13.04.1867, marcara a partida; adiou-se para o dia imediato, embora, desde o romper d’aurora, tudo estivesse pronto e o Corpo do Exército em ordem de marcha. Só em hora avançada tornou conhecida a nova determinação, a tal respeito estendendo-se em explicações que a todos espantavam, provocando malignas interpretações, principalmente a propósito dos pousos, que fixara. Dispusera-os, com efeito, de modo que a coluna chegasse a Bela Vista, ou em suas imediações, isto é na fronteira, no sábado de Aleluia ou domingo de Páscoa, para que ali se cele­brasse esta solenidade. ‒ “Assim diziam os críticos, os tiros de peça, iniciais de nossa entrada em fogo, serão os mesmos que geralmente acompanham a cerimônia religiosa: a iniciativa da campanha será coberta pela festa”.

13.04.1867 foi, pois, ainda um dia perdido: gastaram-se as horas da manhã em preliminares de viagem, inteiramente supérfluos, e cujo único objetivo parecia procurar entreter os soldados. Estes, aliás, a tudo se prestavam com a melhor disposição. Fizera-se ouvir o Hino Nacional e uma explosão de entusiasmo o acolhera.

Vários Ajudantes-de-Ordens se despacharam então, cada qual do seu lado, a ler uma ordem do dia, apelando para o patriotismo da coluna e a lhe relembrar a confiança nos chefes. Enérgicas aclamações estrugiram ainda, após esta proclamação, repetindo-se várias vezes: chegara ao auge a animação. No entanto caíra a noite, que se passou sem que nos houvéssemos movido.

Todos viram o Comandante, meditativo como sem­pre, passear na sombra, em frente à sua barraca, por mais tempo e mais tarde do que geralmente fazia.

No dia seguinte, desfilou o Corpo diante dele; com isto pouco a pouco se animou. Já a vanguarda, contudo devia dar-lhe motivos de reflexão, composta com homens de nossa cavalaria desmontada. E, com efeito, já relatamos que não tínhamos mais cavalos, todos vitimados na região de Miranda por uma epizootia ([1]) do gênero da paralisia reflexa que a nós mesmos, tão cruelmente, viera provar. Quando muito pudera o serviço de faxina conservar alguns muares.

Faltava-nos o elemento primordial da guerra nestes terrenos, a cavalaria; e não havia quem com isto se não impressionasse. Malgrado a diferença de feição, a que se tinha: de resignar, nada perderam os nossos caçadores do aspecto marcial.

Após eles, marchava o 21° Batalhão de Linha, prece­dendo uma Bateria de duas peças raiada depois o 20° Batalhão, outra Bateria igual à primeira acom­panhada pelo 17° de Voluntários da Pátria; e afinal as bagagens, o comércio, com a sua gente e ma­terial, as mulheres dos soldados, bastante nume­rosas.

Ocupava o gado o flanco esquerdo, com as carretas de munições de guerra e de boca, massa confusa protegida por forte retaguarda. Tínhamos o Miranda à frente; os soldados o atravessaram; uns levan­tando acima d’água armas, cartucheiras; outros sobre uma ponte volante que os engenheiros acabaram de construir, auxiliando-os neste trabalho urgente um 2° Tenente de Artilharia, Nobre de Gusmão ([2]), jovem oficial, cheio de inteligência, que nessa ocasião demonstrou o zelo que mais tarde sempre pôs em destaque. Mais de duas horas tomou esta travessia; neste ínterim havia o Coronel Camisão e seu Estado-Maior lido notícias que o Correio de Mato Grosso acabara de trazer. Nenhum comunicado, oficial ou privado, relativo à invasão do Paraguai pelo Sul viera ao nosso Comandante nem coisa alguma que a tal fato se ligasse.

Seriam, no entanto, informes do mais alto interesse, até mesmo indispensáveis no momento em que nos aventurávamos à perigosa operação, sem que aspi­rássemos prefixado fim.

Às 14h00 recomeçou a marcha, e, a lentidão era ex­trema: regulávamos o passo pelo dos bois que puxa­vam a artilharia e ainda, de tempos em tempos to­dos estacavam, porque o próprio Coronel, indo e vindo com o seu Estado-Maior, da frente à retaguar­da, punha-se com o óculo de alcance, a examinar as cercanias, ora distraída, ora muito atentamente. Sur­preendia-nos isto porque se jamais houve campos sem mistérios eram os que atravessávamos.

Estavam, então, inteiramente despidos; recentemen­te incendiados neles perecera até a erva rasteira, de modo que os atiradores distribuídos, no momento da partida, ao longo da nossa coluna, para guardá-la, a ela se haviam incorporado, dispensados dum serviço sem razão de ser. Ao cair da noite atingimos elevado monte.

A 16.04.1867 recomeçou a marcha na mesma or­dem, somente deviam os diferentes corpos alternar, de um dia para outro, à testa, ao centro e à reta­guarda. Seguíamos uma estrada formada de dois trilhos paralelos, espaçados por 3 ou 4 palmos de capim e esta se estendendo a perder de vista pelas planícies desnudadas. Uma ou outra moita, ou arbus­to, quando muito, surgiam de vez em quando. Só no horizonte se divisavam uns capões.

Estavam os dois trilhos bem batidos, tornando-se visível que havia pouco por eles tinham passado e tornado a passar cavaleiros e em contingentes avul­tados. Desta estrada partiam, de distância em dis­tância, outros rastos de cavalos encaminhados para os acidentes do solo, que permitiam a visão ao longe. Não se podia mais duvidar que o inimigo nos observava a marcha.

Fomos acampar perto do morro do Retiro, onde ocupamos a vertente em cuja base nasce o volumoso Ribeiro do mesmo nome. É nesse lugar admirável a natureza; corre a água emoldurada de palmares, entre margens ligeiramente sinuosas, revestidas de relva curta e fina, da mais bela cor esmeraldina.

Não longe dali residira outrora esta mesma D. Senhorinha, cuja hospitalidade já gabamos. Achava-se, então, casada, em primeiras núpcias, com um Lopes [João Gabriel], irmão do nosso valente Guia José Francisco, e falecido em 1849.

Residindo só, com os filhos, então crianças, numa zona fronteiriça, onde não há a mínima segurança para os fracos, já fora outrora a viúva presa e levada por um magote de paraguaios.

Reclamada, ao cabo de algum tempo, pela legação brasileira em Assunção e liberta, em 1850, contraíra, segundo o costume generalizado naquela terra, segundo casamento com o cunhado, o nosso Guia, que a estabelecera em sua estância do Jardim. Ali, ao começar a invasão, de 1865, fora de novo presa e internada no Paraguai.

A 17.04.1867, pela manhã, deixamos o Retiro e, duas léguas à frente, encontramos uma construção em forma de galpão ou cabana que evidentemente acabava de ser abandonada por uma ronda inimiga.

Erguia-se-lhe ao lado um destes mastros de vigia a que os paraguaios chamam mangrulhos, grosso es­teio ou travejamento de toscos madeiros, pelos quais trepam para descortinar, ao longe, os terrenos circunvizinhos.

Haviam os nossos índios Guaicurus avançado até ali, anteriormente, num reconhecimento do Tenente-Coronel Enéias Galvão.

Desta vez fizeram os selvagens, nossos aliados, ale­gre fogueira do tal mastro e da choupana.

Avisaram neste momento ao Coronel que o nosso comboio se atolara à saída do Retiro. Decidiu ime­diatamente que, sem interromper a marcha, iríamos esperá-lo a alguma distância, à vanguarda.

Foi o que fizemos assentando acampamento exata­mente no local onde existira a fazenda de João Gabriel. Grosso contingente de vanguarda colocou-se em observação sobre uma culminância que dominava a campina.

Quem comandava este Destacamento era um Capitão da Guarda Nacional do Rio Grande do Sul, Delfino Rodrigues de Almeida, mais conhecido pelo apelido paterno de Pisaflores, homem enérgico, a cuja bravura todos prestávamos homenagem.

Vimo-lo olhar fixamente para Oeste; de repente, par­tido de diferentes pontos, reboou um grito: A fronteira!

Da elevação onde se achava o Destacamento avis­tava-se com efeito a mata sombria do Apa, limite das duas nações.

Momento solene este, em que entre oficiais e solda­do não houve quem pudesse conter a comoção!

O aspecto da fronteira que demandávamos a todos surpreende que realmente era novo. Podiam alguns já tê-la visto mas com olhos do caçador ou do campeiro, indiferente.

A maior parte dos nossos dela só haviam ouvido vagamente falar; e agora ali estava à nossa frente como ponto de encontro de duas nações armadas, e como campo de batalha. (TAUNAY, 1874) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 03.04.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Epizootia: doença que ataca simultaneamente diversos animais da mesma espécie. (Hiram Reis)

[2]    Cesário de Almeida Nobre de Gusmão: possuía verdadeiro espírito militar, ainda mais apurado pela rija educação recebida na Alemanha e na Escola Politécnica de Carlsrühe, e devotava-se de corpo e alma, com inquebrantável entusiasmo, à sua carreira e ao cumprimento dos árduos deveres dela derivados. Legítimo tipo de soldado, a sua energia, o gosto por trabalhos violentos e a afronta às intempéries contrastavam com o comodismo e a indolência de alguns colegas. Pobre Gusmão! Quantas singularidades tinha, entremeadas das mais sólidas e distintas qualidades! Com a maior seriedade e perfeitamente crente do que contava, pregava-nos formidáveis mentiras a respeito das suas inúmeras aventuras na velha Germânia, algumas que o punham até em situação ridícula. Mas que coração nobre, que maneiras delicadas e fidalgas! Não são muito comuns, neste mundo de egoísmo e interesse material, caracteres como o dele, cheio de ingênuos arroubos à maneira do fantasioso e quase sublime, embora grotesco, Dom Quixote. […]

     Na travessia, porém, do Coxim ao Rio Negro, e ainda mais, do Rio Negro ao Taboco, foi um herói, a conduzir e guiar todo o trem de artilharia por caminhos impossíveis, a desatolá-lo de contínuos e fundos tremedais, a consertar, arranjar e amarrar os tirantes e cordas de couro cru, a cada instante arrebentados; a lidar com os bois de tiro exaustos de fadiga; a animar os soldados exasperados, ele, sempre o primeiro nos passos difíceis, sem repousar um só minuto, metido na água suja, imunda, no lodo, nos atoleiros, atento a mil expedientes, severo quando preciso, mas sempre meigo e condescendente para com o soldado, de quem se fazia adorar e tudo obtinha. Esforços tão valentes e desenvolvidos de tão boa vontade não podiam ser esquecidos e, por uma lei de misteriosa justiça, aqui, nestas concisas palavras, deixo-os concretizados como homenagem da Pátria à memória de Cesário de Almeida Nobre de Gusmão, tanto mais quanto depois, da ocasião da Retirada da Laguna, vi-o reproduzi-los com a mesma abnegação, idêntico fervor e elevado sentimento do dever, buscando, ainda mais, com inexcedível amor filantrópico, e de Chefe exemplar, salvar os comandados da cholera-morbus que os dizimava e aniquilou aquele já de si reduzido contingente de artilharia do Amazonas. (TAUNAY, 1948)

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