A Terceira Margem – Parte DLXVII

Jornada Pantaneira

Hiram Reis e Silva – O canoeiro

A Retirada da Laguna –Parte V

V
Reconhecimento. Rebate Falso. Regresso de Cativos Escapos ao Inimigo.
O Guia Lopes e o Filho. Avante!             

Recebeu imediatamente o 21° Batalhão ordem de escoltar os engenheiros, numa exploração das localidades vizinhas da Colônia; e, com efeito, a 25.03.1867, o Tenente-Coronel Juvêncio, com os dois subordinados, avançou até o ponto cha­mado Retiro que, havia pouco, fora evacuado por um Destacamento paraguaio de uma centena de ho­mens. Feito o reconhecimento regressou na mesma tarde a nossa Comissão ao acampamento.

Tinham percorrido os infantes que nos acompanha­vam mais de 52 km transportando capotes e armas, além de sessenta cartuchos na cartucheira. Pudemos frequentemente constatar que as mais longas mar­chas não conseguem abater a energia do soldado brasileiro. Decorreram os dias subsequentes, na inação; e neste solene repouso do pensamento, que é apenas prudência em vésperas de arriscadas empresas. Tanto ninguém deve perturbar-se com a apreensão de desgraças, que talvez não ocorram, como se não entregar à exagerada confiança no futuro, que à possível catástrofe ainda venha trazer o rigor do imprevisto. Abril começara, fadado às nossas provações. O serviço de comboio longe estava de se achar garantido e, no entanto, como que a abundância reinava no acampamento.

Carretas em contínua afluência ali traziam toda a espécie de fazendas e demais objetos de luxo que aqueles campos desertos jamais haviam certamente visto. Assim, as mulheres dos soldados, atraídas por este movimento comercial desciam de Nioaque em grupos cada vez mais numerosos.

Também para tal afluxo de gente contribuía a reputação de salubridade da Colônia de Miranda. Era para aquele ponto, com efeito, que, muito antes da invasão estrangeira, de toda a vizinhança mandavam convalescentes e enfermos. Ali são cristalinas as águas do Rio que as infiltrações salobras dos pânta­nos de jusante ainda não contaminaram. Nada deixa­va a desejar o estado sanitário das tropas.

Haviam, pois, recomeçado os exercícios diários de todos os Batalhões e nossas músicas, rompendo afinal o longo silêncio, alegravam os espíritos. A dos Voluntários de Minas, sobretudo, cuidadosamente recrutada, executava sinfonias cuja novidade, para os ecos locais, ajuntava novo encanto ao prazer da audição. Recebeu logo o 17° Batalhão ordem de ir, além do ponto atingido pelo 21°, realizar um reconhecimento, sob a direção do Guia Lopes e em companhia de um grupo de índios Terenas e Guaicurus, que desde al­gum tempo se apresentara ao Coronel.

A 10.04.1867, realizou-se a partida, bandeiras des­fraldadas e música à testa, espetáculo sempre impo­nente em vésperas de combate. Graças ao Coman­dante apresentava-se o corpo em pé de disciplina, que em qualquer ponto o tornaria notado. Reserva­va-nos o dia seguinte emoções muito diversas e quase contraditórias: a esperança de encontrar o inimigo, que se não realizaria, e o imprevisto das mais comoventes cenas familiares. Anunciou-nos uma mulher, vinda de Nioaque, o encontro, à mar­gem de um Rio próximo, de um grupo de cavaleiros, falando o espanhol.

Depois de lhe fazerem algumas perguntas, haviam-na deixado passar tranquilamente. Deu-se logo o alarma em toda a frente e à retaguarda, mas tivemos logo a agradável surpresa do regresso do nosso Destaca­mento trazendo dez cavaleiros.

Eram brasileiros, eram irmãos! Pertenciam a famílias estimadas e bem conhecidas de fazendeiros das vizi­nhanças de Nioaque: Barbosas, Ferreiras, Lopes, e haviam conseguido escapar ao inimigo inexorável. Com a rapidez do raio circula a notícia de sua apa­rição por todo o acampamento, e até em Nioaque.

Para os ver acodem homens e mulheres, possuídos como que de embriaguez; e a maioria até a chorar. Patrícios nossos! Rodeados, carregados, acham-se de repente em presença do Comandante que os interro­ga. Contam que, levados prisioneiros para o território paraguaio, eles e as famílias, haviam, ao se retirar o inimigo, sido dispersos por diversas localidades, prin­cipalmente em Vila Horcheta, a sete léguas de Concepción.

Ali lhes haviam dado terras de cultura sob a condição de pagarem aos coletores o quinto da colheita. Nun­ca os incomodaram muito até então, mas sabendo, ultimamente, que o ditador López, já falto de gente para o exército, projetara recrutar todos os estran­geiros, e até mesmo os prisioneiros, e que, ao mes­mo tempo, se aproximava uma coluna brasileira, tu­do tinham arriscado para reunir-se aos patrícios, escapando ao perigo de ter de os combater. As pró­prias famílias os haviam incitado a assim proceder.

A 25.03.1867, exatamente no dia dos nossos primei­ros reconhecimentos diante da Colônia, conseguiram apossar-se de bons cavalos paraguaios, e, como se não iludissem acerca do destino que os aguardava caso fossem novamente capturados, tinham se arriscado a caminhar à noite, e de mata em mata, fazendo contínuos rodeios, em direção à fronteira.

Atingindo-a felizmente, atravessaram o Apa e depois, deixando à direita a estrada da Colônia, subiram ao Norte, em direção à estância do Jardim, de onde desceram ao nosso encontro.

A um deles, o filho do Guia Lopes, chamou o Coronel à sua barraca e a sós. Era moço simpático, cuja inteligência e discrição pareciam provir da herança paterna. Versou a conversa, naturalmente, sobre as informações que ele e o cunhado, Barbosa, podiam dar relativamente à situação do Paraguai, à sua força apreciável, meios de resistência, e sobretudo quanto à fronteira vizinha.

Responderam os refugiados que as fortificações do Apa não passavam de simples estacadas de madeira comum, guarnecidas, em Bela Vista, por uma centena de homens, sob o comando do Major Martim Urbieta.

Estavam os outros fortes em piores condições defen­sivas; mas o governo paraguaio, à vista dos avisos recebidos, comprometera-se a providenciar dentro em pouco e a enviar reforços, determinando que até a chegada destes, se fizesse uma retirada ante a investida brasileira, destruindo-se tudo o que não fosse possível carregar. Acrescentaram que, no interior do Paraguai, era ge­ral o desânimo; dia a dia menos se acreditava num feliz desfecho da guerra. Entretanto a resolução da defesa, a todo o transe, não parecia esmorecida.

Quanto ao respeito pelo presidente, El Supremo, cujo nome todos pronunciavam descobrindo-se, era sem­pre o mesmo. Apenas pelo acampamento se espalharam tais notí­cias, só houve um grito: Ao Apa! Ao Apa! Atingiu o entusiasmo ao auge, deixando-se os mais prudentes arrastar pela excitação apaixonada dos grupos que de todos os lados se formavam.

Anunciou-se neste momento a volta do 17° Batalhão que acompanhara o velho Lopes. Era geral o desejo de assistir ao primeiro encontro do pai e do primogênito que lhe voltava aos braços. Passando pelos postos avançados soubera o nosso Guia da grande notícia.

Vinha pálido, lacrimejante, em direção ao filho que, respeitosamente, o esperava, descoberto. Não des­montou; estendeu a destra trêmula ao filho, que a beijou; depois o velho Guia deu-lhe a bênção e pas­sou sem proferir palavra.

Foi uma cena patriarcal, e como seja o coração hu­mano sempre sensível aos grandes lances, atônitos, olhávamos uns para os outros, como a indagar se não seria fraqueza entre soldados nem sempre poder conter as lágrimas.

Que emoção devia sentir o velho vendo o filho esca­po ao inimigo! E quanta dor, ao pensar que os outros membros da família, ainda cativos, haviam perdido o mais valente defensor! Quando em tal lhe falamos tomou longa pitada e disse: “Deus tudo faz. Deus assim o quis. Fui outrora feliz, tive casa e família. Hoje durmo ao relento; estou só, e como do que a caridade dá”.

‒  Vamos encontrar casa em Bela Vista, lhe respon­demos. Tem o senhor a seu lado filho e genro. Come em companhia de amigos e até ainda é quem lhes dá a comer de seu gado.

Com melancólico sorriso meneou a cabeça, dizendo:

‒  Nunca mais será minha a estância do Jardim!

Entrementes, depois de haver combinado com Bar­bosa os meios de ainda ter gado do sogro, ordenou o Coronel que se avançasse. (TAUNAY, 1874) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 31.03.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874. 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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