A Terceira Margem – Parte DXLII

Descendo o Rio Branco

Ponte José Guerra ‒ Caracaraí (15.08.2019)

Caracaraí – S. M. Boiaçu
(15 a 18.08.2019)
– Parte I

Eu não acredito em caridade. Eu acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas.
(Eduardo Hughes Galeano)

15.08.2019 (Caracaraí / AC 02)

Choveu a noite toda. São Pedro fechou as com­portas do céu exatamente na hora em que começamos a transportar o caiaque, com auxílio das rodinhas, para o portão dos fundos da Agência Fluvial que, como não poderia deixar de ser, tem acesso direto à margem do Rio. Parti da Agência Fluvial de Caracaraí, às 06h00, com o apoio de nossos valorosos marinheiros.

O tempo estava nublado, mas sem nenhum pre­núncio de chuva. O Deslocamento foi tranquilo graças aos formidáveis guarda-sóis naturais disponibilizados por São Pedro. Fui observando as margens e as ilhas que, na sua quase totalidade tinham-se transformado em extensos igapós. Para minha surpresa, a uns 15 km de Caracaraí uma pequena ilha exibia um pequeno barranco a um metro da água, aproximei-me curioso e me deparei com um jacaré-açu de uns 4 metros, de boca aberta, curtindo a canícula que ao notar minha presença atirou-se lá de cima e partiu em desabalada carreira.

Embora a cheia altere significativamente o panorama, já que as fotografias aéreas do Google, que eu dispunha eram da estiagem consegui fazer um leitura tranquila sem ter de lançar mão do GPS.

Por volta das 13 horas, depois de percorrer 75 km (12,5 km/h), comecei a prestar a atenção nos locais de acampamento. Avistei um barranquinho numa das ilhas que devia ter um palmo acima da linha d’água e cujo terreno parecia adequado à montagem do acampamento, entusiasmado apontei minha proa para lá.

A ilha que na sua maior parte era, agora, um igapó, tinha grandes árvores, a maioria parcialmente submersas. Já me imaginava descansando naquele aprazível local, mas descartei-o, logo em seguida, em virtude das enormes pegadas de jacarés-açus.

Srª Rita Lúcia e Sr. Claudicei (15.08.2019)

Estava muito cansado, tinha empreendido inúme­ras e desafortunadas tentativas de achar um local para acampar quando avistei um barco de pescadores com um gentil casal a bordo. Imediatamente o Sr. Claudicei e a Srª Rita Lúcia me convidaram para subir à bordo e comer um peixe assado com farinha. Insistiram para que pernoitasse no barco, mas como eu não tinha rede para dormir à bordo eles me informaram, então, que logo à frente, à margem direita, tinha um igarapé onde os pescadores acampavam. Agradeci a fidalguia do hospitaleiro casal a parti para o local indicado.

O igarapé era um verdadeiro labirinto, mas achei terra firme para montar o acampamento (01°09’50,64”N / 61°20’21.30”O). Bandos de macacos pregos pulavam com extrema habilidade de uma árvore para outra provocando uma verdadeira chuva de galhos e folhas que aproveitei na pequena fogueira.

Acampamento 02 – AC 02 (15.08.2019)

Montado o acampamento, depois de um simulacro de banho redigi este diário me preparando para descansar.

Deixei a lona da barraca à prova d’água aberta para arejar a pequena barraca até começar uma garoa fina, lá pelas 21h00, e que continuou até o alvorecer.

“Labirinto” (15.08.2019) (1)

O acampamento, os sons da mata me faziam engarupar na memória do tempo e relembrar o esta­giário 01 do Curso de Operações na Selva, lá para as bandas do Puraquequara, pernoitando, pela primeira vez na vida, sozinho em uma rede de selva armada nos ermos dos sem fim impressionado com a curiosa sinfonia entoada por gargantas de espécies tão variadas.

Hoje não era diferente, outras plagas, diversa sinfonia, diferentes animais, mas um mantras igualmente encantador. De madrugada, uns passinhos curtos e leves sobre as folhas secas me despertaram. Sem acender a luz abri com cuidado a lona impermeável e avistei duas pequenas cotias que por ali perambulavam, um sinal de que não havia grandes predadores na área.

Total 3° Dia ‒ Caracaraí / AC 02               =   77,0 km
Total Geral ‒ Ponte dos Macuxis / AC 02   = 214,0 km

16.08.2019 (AC 02 / AC 03)

Parece que S. Pedro estava mais atento e desta feita e fechou as comportas do céu pouco antes que eu iniciasse o aprestamento externo ‒ desmontagem da barraca e carregamento do caiaque. Sai, às 06h10, do igarapé que mais parecia um tortuoso labirinto grego.

As copas dos arbustos e das palmeiras estavam à flor d’água obrigando-me a manobrar o Argo I constantemente. Logo que iniciei a jornada, uns 500 metros à jusante, passei pelo Igarapé que o Sr. Claudeci e a Sr.ª Rita Lúcia tinha mencionado, nas coordenadas: 01°09’33,4” N e 61°20’17,0” O. A área era mais ampla permitindo embarcações de maior porte adentrar na mesma sem dificuldades e o local para o acampamento espaçoso e limpo.

A brisa que se iniciou fraca e agradável no início da manhã intensificou-se prejudicando a navegação e travando a correnteza. As possibilidades de acampar em solo seco simplesmente sumiram depois do meio-dia e uma única alternativa tinha sido aventada, em Caracaraí, pelo Sgt Felipe da Marinha de Guerra ‒ na Boca do Igarapé Água Boa e para alcançá-lo eu precisava superar a marca do dia anterior navegando mais de 90 km. O deslocamento lento em virtude do vento não facilitava em nada minha meta, mas aportei, às 16h20 nas ruínas de uma antiga base AMAPU, na foz do Água Boa. Montei a barraca sob as ruínas de um barraco abandonado, tomei um bom banho lavei a roupa, e, às 18h30, estava pronto para descansar.

Noite extremamente tranquila. Sem chuva e a sinfonia animal ao longe embalava meu sonho. Eu estava exausto tinha remado 92 km, o ombro direito incomodava um pouco, acho que mais em virtude da falta de preparo físico do que da cirurgia. Não coloquei o relógio para despertar, deitei cedo, às 18h30 e certamente acordaria cedo.

Total 4° Dia ‒ AC 02 / AC 03                    =   92,0 km
Total Geral ‒ Ponte dos Macuxis / AC 03   = 306,0 km

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 01.02.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.    

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com

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