A Terceira Margem – Parte DLIII

Jornada Pantaneira

Túmulo do Guia Lopes (OLIVEIRA, 1952)

O Guia Lopes – Parte III

No dia 24, como já estivesse aberta, até a margem do Prata, a picada de que se incumbira o bravo rio-grandense Capitão Pisaflores, por ela atravessou Lopes, e foi ter à sua propriedade, aquela estância amada, da qual sempre falava demoradamente, com um misto de saudade e de entusiasmo.

No dia seguinte, as nossas Forças atravessaram o Prata. O pior é que o número de coléricos se multiplicava assustadoramente. Já se não achava como os conduzir. Por isso mesmo, forçoso foi abandonar os cento e trinta que, então, havia. Que fez o Comandante das Forças Expedicionárias?

Mandou abrir na mata uma clareira extensa, ordenou que para ela se transportassem, na noite de 25 para 26, aqueles cento e trinta mártires, e lá os deixou, com a alma amargurada, sob a proteção platônica deste cartaz, escrito em letras grandes, e que ficou pregado no tronco de uma daquelas árvores, testemunhas silenciosas de tantos gemidos, de tantas lágrimas e de tantas imprecações:

‒ Compaixão para os coléricos!

No momento, exatamente, em que, com o raiar do dia, acabavam de abandonar na mata aquelas pobres vítimas de um destino injusto, apareceu Lopes, que, desde a véspera, tinha regressado de sua propriedade.

Trazia a desoladora nova da morte de seu filho, pela cólera. Tremia-lhe a voz, mas estava aparentemente calma.

‒ Meu filho morreu,

Disse ele ao Coronel, segundo o testemunho do Visconde de Taunay,

‒ Desejo sepultá-lo em terra minha. É um pequeno favor que, por ele, e por mim, solicito; a sua vida, como a minha, pertencia a Expedição. Deus, que tudo determina, salvou-o muitas vezes das mãos dos homens, para levá-lo hoje.

Conduziram-no, então, em um reparo de peça, e ao atingirem a margem direita de volumoso Ribeirão, que corria pelas terras do velho Lopes, ai o sepultaram. Enquanto se abria a sepultura, Lopes conservou-se a distância, silenciosamente, sob o peso de sua grande dor. Só quando lhe comunicaram que o solo estava úmido, e até encharcado, é que ele descerrou os lábios, para dizer, com a resignação de um Santo:

‒ Agora, que importa? Entreguem a terra o que lhe pertence.

Depois, continuou, com a coluna, pela sua estância a dentro. O novo ponto de estacionamento de nossas Forças já estava determinado: era o meio da mangueira do nosso guia. Estava por se findar a missão do velho Lopes. Combalido, arcado para a frente, com a cabeça sobre o arção ([1]) da sela, seguia ele, sem proferir palavra. Súbito, saltaram-lhe os estribos, e ele caiu, pesadamente, ao solo. Acabava de o assaltar, impiedosamente, a cólera.

Colocaram-no sobre um reparo, e, como ele, uma vez ai, se reanimasse um pouco, continuou a dirigir a marcha. Assim é que, mal percebeu a tentativa de seu genro Gabriel para atravessar um capão, com o fim de atalhar caminho, recomendou, embora com voz sumida:

‒ Contornem o mato, que é muito sujo.

Ao cair da noite, alcançaram as nossas Forças o local do antigo rodeio de gado da estância do velho Lopes, e nele estacionaram, ficando o nosso Guia, com o Coronel Camisão e o Tenente-coronel Juvêncio, estes, também, coléricos, instalado num galpão em ruína.

Na manhã de 27, iam as nossas Forças continuando a marcha, quando os paraguaios tentaram, mais uma vez, cortar-lhes a retirada.

Foram, porém, contidos pelo 17° de Voluntários, que fazia a retaguarda. Após meia légua de marcha, chegaram as nossas Forças, finalmente, a uma das margens do Miranda. Na margem oposta, estava a casa do velho Lopes, aquela mesma casa sob cujo teto nunca faltou pousada, e pousada régia, para os que algum dia lhe bateram à porta.

Desgraçadamente, em ali chegando, entregou Lopes a sua alma generosa a Deus. Sepultaram-no, então, no meio do acampamento, em terra que ele havia regado com o suor de seu trabalho honesto, e, sobre a sepultura, colocaram os seus bravos e leais amigos, piedosamente, uma cruz, que fizeram de madeira tosca. Era a única homenagem que lhe podiam prestar naquele momento. Outras, não lhe podiam ser prestadas senão depois.

E, realmente, o foram. Hoje, ele tem o nome sobalçado ([2]) pela nossa história, e a figura perpetuada no bronze do monumento que se levanta, solene, na capital da República, sob as bênçãos desta doce Pátria, a que tanto serviu, e pela qual morreu, entre os soluços dos que foram testemunhas de sua “Constância e de seu Valor”. (OLIVEIRA, 1952)

 

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.02.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

OLIVEIRA, General João Pereira de. O Guia Lopes – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Militar – Revista Militar Brasileira, 1952.     

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Arção: parte dianteira da sela. (Hiram Reis)

[2]    Sobalçado: exaltado. (Hiram Reis)

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