A Terceira Margem – Parte CDXXXV

Descendo o Rio Branco

Cel Hiram em seu caiaque

Robert Hermann Schomburgk (1835/1836)
R. H. Schomburgk – o Homem  

Nasceu, em Freyburg, às margens do Rio Unstrut, na Turíngia, mais tarde Província Prussiana da Saxônia em 05.06.1804. Seu pai foi Johann Friedrich Ludwig Schomburgk, ministro luterano em Freyburg, nos idos de 1801 e 1820, e depois em Voigstedt até 1847, onde veio a falecer um ano depois de cólera. Sua mãe foi Christine Julian que morreu em 1827. Ele era o mais velho de seus cinco filhos: Linna Theresia que nasceu em 1806, Alfred Otto em 1809, Moritz Richard em 1811 e Ludwig Julius em 1819.

Robert Hermann Schomburgk

Sua educação fundamental foi proporcionada basicamente pelo pai, quem, segundo ele, despertou-lhe, desde cedo, um grande amor pela botânica. Saiu de casa, aos 14 anos, para labutar como aprendiz de um comerciante, em Naumberg, chamado Krieger e, em 1823, foi trabalhar com seu tio, Henry Schomburgk, que tinha um comércio em Leipzig. Nesta cidade teve maiores oportunidades de estudar botânica e, além de assistir a palestras na Universidade local, teve aulas particulares. Ele fez, também, várias excursões botânicas na região do Reno, Hartz e Turíngia.

Schomburgk tinha o desejo, desde cedo, de viajar para fora da Europa, mas se absteve de fazê-lo cumprindo uma promessa feita à mãe. Mais tarde ele diria a George Bentham que ele havia deixado a Alemanha “em decorrência de causas políticas”. […]

Desde a sua primeira Expedição, sofreu de problemas de saúde recorrentes. Além da malária e da febre amarela, ele sofria de grave problemas reumáticos e mais tarde veio a ter problemas de visão. Há também fortes evidências de que sofria de epilepsia. O jovem artista Edward Goodall, que o acompanhou na segunda e terceira Comissões de Limites, registrou em seu diário no dia 01.10.1841:

Chegando em casa, fui dormir, mas logo fui despertado pelo Sr. Schomburgk que estava tendo um dos mais terríveis acessos epilépticos que já tinha presenciado.

No mesmo ano, Schomburgk mencionou em carta a Jardine que ele sofrera dois ataques de “debilidade nervosa” que podem se referir à mesma enfer­midade. No entanto, com exceção de uma referência a um outro “ataque nervoso”, em 1855, não há nenhuma outra menção a eventos semelhantes.

Parece que ele tentava evitar que suas condições físicas se tornassem públicas e viessem impedir que conseguisse alcançar a tão almejada nacionalidade britânica, que, para seu desespero, jamais foi concretizada. Ele chegou a escrever para o secretário da Sociedade Geográfica Real, em 1835, pouco antes de partir das Ilhas Virgens para a Guiana Inglesa:

O desprezo que me dispensaram os Ministros em Berlim e a maneira com que as autoridades trataram do caso de meu irmão mais novo, associado à uma antiga Sociedade política da Prússia, que só encontra similar nos Anais da Inquisição Espanhola romperam, em definitivo, os últimos laços que me prendiam a essa Nação, que invadiu e ocupou a minha terra natal, a Turíngia. Não me considere falacioso quando digo com orgulho que nada pode ser igualado à Inglaterra que é, agora, o meu país por adoção!

Schomburgk, quando estava em Santo Domingo, fez diversas tentativas de naturalização, através de uma série de cartas. Numa delas, ao Lorde Palmerston, em 1850, ele afirmou que, até então, como seu pai ainda estava vivo e outros membros de sua família moravam na Prússia, ele não solicitara a cidadania britânica. Agora, porém, que seu pai falecera, dois de seus irmãos estavam morando na Austrália e seus irmãos e irmãs remanescentes estavam prestes a se mudar para lá, tornando-se todos súditos de “um soberano a quem eu servi desde que subiu ao trono”, ele também desejava obter cidadania britânica. Ele observou que a falta de tal cidadania não o impedira de se tornar cavaleiro e cônsul britânico. O problema intransponível era o de poder residir em solo britânico e Schomburgk nunca conseguiu o seu intento. […]

Schomburgk certamente possuía muitas qualidades sem as quais ele não teria conseguido liderar Expedições que cobriam milhares de quilômetros no interior da Guiana com grande sucesso.

Ele se preocupava, por demais, com o bem-estar de todos os membros de suas expedições, nativos ou não, e se orgulhava do fato de que, com a exceção de um funesto acidente em Berbice, suas viagens tinham sido extraordinariamente livres de calamidades. (RIVIÈRE)

The Journal of the Royal Geographical Society, 1836

Relatório de uma Expedição ao interior da Guiana Britânica, em 1835/6. Por Robert Hermann Schomburgk.  

Será sempre lembrado pelos membros da Sociedade Geográfica, que uma Expedição para explorar o interior da Guiana Britânica foi decidida pelo Conselho da Sociedade no final do ano de 1834; e que, ao ser comunicado ao Governo, encontrou a mais completa aprovação e patrocínio dos Ministros de Sua Majestade. As instruções do Conselho da Sociedade, que serão encontradas em detalhes no Relatório anual para 1836, anexado a este volume, foram, consequentemente, transmitidas ao Sr. Schomburgk, selecionado para comandar o grupo explorador, em Georgetown, Demerara.

As páginas seguintes contêm um resumo do primeiro, segundo e terceiro relatórios da primeira Expedição ao interior, com uma análise das Observações Astronômicas e Meteorológicas, que foram recebidas até esta data; que poderão ser acessados pelos interessados; como também o mapa original, de 205 cm – a um grau de Latitude; uma cópia do qual, em escala reduzida, acompanha este Relatório.

Uma típica Korijaal da Guiana

Seguindo suas instruções, o Sr. Schomburgk deixou Georgetown em 21.09.1835, rumo ao Essequibo, que deságua no Atlântico por uma Foz de 22,5 km de largura de costa à costa, separadas por quatro canais e três ilhas baixas, a maior dos quais – Wakenaam, tem 11,2 km de comprimento.

21 de setembro de 1835 – Prosseguindo nosso curso [diz o Sr. Schomburgk] por este nobre Rio, que, a partir de sua Foz no Mar, percorre uma direção Norte-Sul por cerca de 56 km e largura média de 13 km, passamos sucessivamente por Hog e Fort Islands; outrora, o último o centro de todo o comércio da colônia ocupada pelos holandeses – agora sem vida e deserto, exceto por alguns negros que construíram suas casas de barro junto às ruínas da antiga capital da Guiana. […]

01 de outubro de 1835 – No dia 1° de outubro, tendo ultimado todos os preparativos, deixamos o posto no Cuyuny e começamos a subir o Rio Essequibo. O grupo consistia de três europeus, um oficial militar, um residente de Demerara e eu, quatro negros, e as tripulações das três korijaals ([1]). Cinco negros, cinco Caribes, três Macoosie e dois índios Accaway, no total vinte e duas pessoas. […] Navegando Essequibo acima em direção à sua nascente, o Rio segue rumo Sudeste por 11 km, até Point Saccaro, onde volta-se para o Sul por 96 km e recebe como afluente, o Massaroony, a uns 19 km a Oeste, e o Rio Demerara, 24 km a Leste, que mantêm um curso paralelo durante toda essa distância. […]

22 de outubro de 1835 – 19 km a Sudeste chegamos às corredeiras de Rapoo assim chamadas pelo nome indígena de bambu [Naslus latifolia], que aqui abundam. Rochas e rebordos de gnaisse, mas sem o revestimento vitrificado, formam um dique sobre o qual a corrente corre turbulenta. O Rio forma um cotovelo; fluindo do Sul lentamente por 21 km, as colinas Orientais fazem com que ele se dobre de repente para Noroeste, até a confluência do Rio Potaro, a uma distância de 145 km. Acredita-se que o Rio Demerara mantenha um curso paralelo durante toda essa distância, separado apenas por 32 km para Leste; e nesse intervalo estão numerosas trilhas, muito usadas pelos índios. Uma longa ilha aqui divide o Rio em dois canais; o Oriental, chamado Yukoopato; no Ocidental é a Barra do Arouan. Acima das corredeiras, avistamos, ao longe, duas corials ‒ uma rara visão, que só ocorreu duas vezes desde que saímos do posto; e treze dias se passaram desde que avistamos um ser humano, exceto os de nossa própria equipe. Os índios eram Macoosies do Rupununi, em uma viajem ao Rio Demerara, seu barco estava cheio de redes, grandes bolas de algodão, arcos de madeira, tabaco em folhas, papagaios, araras, etc. O chefe, como galardão, usava uma coroa de penas de arara; e como eles haviam aportado em uma ilhota rochosa do Rio, para lá rumamos com o objetivo de contatá-lo. Avistando-nos, ele retornou ao seu barco, e tomando assento em um dos bancos, nos aguardou solenemente. Barganhamos seus produtos por facas e tesouras; e, depois de oferecer alguns mimos à ele e à sua esposa, ele prometeu levar nossas cartas para a colônia. O curso do Rio agora está livre de ilhas e mantém uma largura de 460 m por alguns quilômetros; suas margens são de 3,6 a 4,6 m altura, de barro branco claro, debruadas por árvores majestosas – a corrente é insignificante. […]

25 a 28 de outubro de 1835 – […] Alguns quilômetros mais adiante, empurramos uma das pequenas corials pelo córrego Curassawaak para o Sul, em busca de uma Aldeia de índios e comida. Encontramos uma grande plantação de mandiocas, cabanas bem construídas, belas panelas de barro, bolas de algodão, uma rede semiacabada ‒ tudo denunciando uma ocupação recente; mas nenhuma criatura viva foi avistada; tudo deserto. Levantamos várias hipóteses relativas ao destino dos nativos ‒ fogo, ataque de uma horda inimiga ‒ tudo em vão. Fomos obrigados a voltar de mãos vazias até nossa tripulação esfomeada, que ficou muito decepcionada. Finalmente, apareceu um solitário Macoosie, que morava num casebre às margens do Rupununi, para esclarecer a questão. Uma das esposas do chefe morrera; e, em consequência, embora a Aldeia fosse nova, a lavoura ainda por colher, abandonaram-na e deixaram esse pobre índio para cuidar das plantações. Mas ele residir naquela Aldeia infeliz! Não, não tinha nenhuma intenção! O cacique Jacobus tinha se retirado para as colinas no Norte, e para lá seguimos. […] Schomburgk passou todo o mês de novembro em Annay – recuperando a saúde de sua equipe, que muito sofreu, para obter informações dos nativos, colecionar e preservar espécimes, reproduzir o itinerário em um mapa e fazendo observações meteorológicas, astronômicas e trigonométricas para georeferenciar – os Rios, a posição e a altitude das montanhas e determinar a temperatura do ar. […] O chefe Jacobus [Yhrayee] me acompanhou com 14 índios, alguns Caribes e outros Macoosies. Todos os arranjos foram concluídos, e eu e meu companheiro saímos da Aldeia, em Annay, com a última corial para a margem do Rio. Que visão em nossa chegada lá! Índios, homens, mulheres e crianças ‒ cestas com provisões, nossos baús e caixas ‒ estavam misturados na maior confusão. As redes vermelhas penduradas de árvore em árvore, as fogueiras com panelas, tudo lembrava um acampamento cigano. O índio não gosta de deixar a esposa e os filhos em casa quando empreende uma viagem de várias semanas, um pouco por ciúmes, mas, na verdade, por preguiça, já que todos os seus desejos são atendidos pela esposa. Embora Jacobus tivesse me assegurado que não haveria mais do que três mulheres e seu filho, descobrimos, para nosso grande espanto, que o número total era de trinta e três pessoas.

01 de dezembro de 1835 – Iniciamos a jornada com três corials. O Rio serpenteia ao longo de um curso a Sudeste das Montanhas Parime. Suas margens são de um barro amarelado claro misturado com areia; árvores de tamanho moderado o ornam, e logo atrás delas se estendem as savanas até o sopé das montanhas. O Rio era tão raso que os índios foram obrigados a impulsionar as corials com longas varas ([2]), e só raramente eram capazes de usar seus remos. Os bancos de areia eram frequentes; devemos lembrar que estávamos no auge da estação seca. Observamos rochas porosas negras nas margens ou incrustadas no barro, alguns bancos de cascalho, consistindo principalmente de pequenos fragmentos irregulares de quartzo e granito. […] À nossa chegada à enseada Wy-y-poocari, fomos informados de que o Comandante do Forte português ([3]) São Joaquim, a quem eu havia escrito anteriormente, estava na Aldeia de Pirarara. Enviamos um mensageiro para lá e o Capitão Cordeiro veio no dia seguinte trazendo cavalos. Cavalgamos com ele até o Pirarara, um belo vilarejo de catorze casas e de oitenta a cem habitantes, notável por estar à beira do outrora famoso Lago Amucu. Depois de um dia de descanso, o senhor Cordeiro e um dos meus companheiros seguiram para Forte São Joaquim enquanto eu voltava para a enseada. […] Aproximamo-nos da cadeia de montanhas conhecida pelo nome de Serra Conocon, que se estende por 48 km na direção N.E. e S.W., através da qual o Rio Rupununi é espremido numa garganta de uns 119 m. Em muitos casos, as montanhas sobem abruptamente à uma altura de 609 a 762 m. Elas são de granito, bem revestidas de vegetação e habitados por uma numerosa tribo de índios chamada Warpeshanas ou Mapeshanas. Os brasileiros chamam essa região de Conocon, que significa “arborizada”, em oposição a Pacaraime, que significa “descalvada” ([4]); enquanto os nativos chamam parte dela de Mapure, Touroo e Mapiree. Observamos nas margens do Rio duas espécies de palmeiras que não havíamos visto até então: a primeira, pequena e graciosa, cresce em grupos e se chama Marauiara; a outra, delgada, geralmente com 15 m de altura, tem apenas algumas folhas de cor azul clara. Elas não tinham nem flores nem frutas. […]

No dia seguinte, de manhã cedo, depois de deixarmos para trás as montanhas, percorremos as savanas, e nos aproximamos da margem Oriental do Rio e chegamos a uma pequena Aldeia de Warpesha­nas, onde tínhamos a intenção de conseguir provisões. A distância não era grande e ao nos aproximarmos do local, observamos que consistia de uma cabana côncava e outras duas de menor tamanho. Diversos Warpeshanas tinham vindo das vizinhanças para participar de um banquete de Piwarrie ([5]), eles eram pessoas bem formadas e mais altas do que qualquer índio que eu já tivesse visto antes. Embora não se possamos distingui-los, de outras tribos, pela sua indumentária, sua linguagem é tão diferente do Caribee e Macoosie, que eles não conseguem entender-se. Muitas tribos falam a dialeto Macoosie, por meio do qual eles são capazes de conversar uns com os outros. Os homens se adiantaram e vieram cumprimentar-nos de uma maneira semelhante aos Macoosies – isto é, acenando com a mão diante do nosso rosto; depois eles se afastaram, e deram início a uma conversa animada, entremeada de gargalhadas altas – duvido que o assunto tenha sido outro que não fosse à nosso respeito, nossas roupas, etc. Olhei, por um instante, para uma das casas abertas, onde mulheres e crianças estavam ocupadas em assar beiju para a festa. Que alvoroço quando fiz a minha aparição! As crianças fugiram gritando, galinhas cacarejando, papagaios chalreiando e os cães latindo embora sem intenção de me atacar, mas permaneciam a uma certa distância, apenas o que estava mais próximo, latia mais alto, aproximando-se. Embora nossa tripulação indígena fosse tão estranha para os cães e papagaios quanto nós, estes não se alarmaram com a aproximação deles; mas assim que nos acercamos, o barulho dos pássaros e dos animais tornou-se insuportável. A oca circular era construída de maneira diferente das dos Macoosies: as paredes não eram de barro, apenas a entrada, e o restante era de folhas de palmeira. O interior era formado por uma cúpula sustentada por três vigas e vários pilares inclinados. Ao redor, as redes eram penduradas, e os diferentes implementos da cozinha e de caça fixados nas paredes. No centro havia um cocho de madeira, esculpida e pintada à moda indígena, onde nessa ocasião, se encontrava uma vasilha de barro de uns sessenta litros de Piwarrie. Os convidados, reunidos para a festa, tinham pendurado suas redes na grande oca e nas pequenas cabanas abertas, enquanto outros, do lado de fora, eram assistidos pelos hospitaleiros anfitriões, muito pintados e ornamentados para a solene ocasião, encarregados de trazer-lhes toda bebida alcoólica que desejassem. A febre obrigou-me a permanecer na minha rede, onde tive a oportunidade de assistir ao ritual. A um sinal dado pelo anfitrião, ou por um dos convidados, uma cabaça com a bebida era entregue à pessoa que a solicitara, que, depois de sorver fartos goles, passava-a ao seu vizinho, e assim continuavam até completar a ronda, mas nenhum descanso era concedido à cabaça, e, após algumas horas, a grande calha tinha sido esvaziada e novamente preenchida com outros imensos vasos de barro que tinham sido mantidos em reserva. A conversa foi se tornando cada vez mais violenta – antigas proezas de bravura, encontros com onças, etc., eram os temas; mas antes mesmo que os vasos de barro da vala fossem esvaziados, a algaravia estancou, e um grande mal-estar tomou conta de quase todos os participantes. A consequência da beberagem, impura desde sua ma­nufatura, ingerida em excesso, provoca a degrada­ção do ser humano. Os índios foram sempre acusa­dos de não serem carinhosos para com seus filhos. Tenho visto casos frequentes que mostram justa­mente o contrário. Grande injustiça tem sido feita a eles nesse sentido. Um Warpeshana retornou depois de alguns dias de viagem, e foi com grande prazer que vi seus filhos reunirem-se em torno dele, pendurarem-se no seu pescoço e fazerem-lhe mil perguntas; muito provavelmente sobre sua viajem, o que ele trouxe, etc. Ele distribuiu algumas castanhas de caju, que retirou do cesto, o que muito lhes agradou, embora essas pudessem ser encontradas nas proximidades. Sua esposa trouxe-lhe o filho caçula, um bebê; que ele acariciava com o mesmo carinho que um ser civilizado faria. Eles demonstram mais atenção para com suas esposas do que eu esperava, do que eu havia lido. Refiro-me aos Caribes, onde as mulheres são consideradas mais como companheiras do que escravas. Elas certamen­te trabalham duro; os homens limpam o terreno e elas têm de cultivá-lo e trazer os frutos da colheita; mas não são consideradas como escravas e burros de carga como nos tentam impingir. Há, porém, um grande absurdo que, infelizmente, prevalece em todas as tribos – o desdém para com as pessoas idosas e/ou doentes. Elas são abandonadas em um pequeno canto da casas e deixadas por sua conta; refém de suas redes, muitas vezes sem acesso às necessidades básicas para sobreviver.

19 de dezembro de 1835 – Nossa jornada para o Sul através das savanas, na margem Leste do Rio, deveria começar na manhã seguinte [19 de dezembro]: roupas de baixo e todas as outras coisas que pudéssemos dispensar ficariam para trás. Todas as nossas necessidades se resumiam, portanto, a uma segunda muda de roupas, redes, cronômetro, sextante, giroscópio, bússola etc. Todos foram carregados em cestas; nossa provisão foi calculada para dez dias. Tivemos de fazer um desvio para colher algumas bananas em um lugar que tínhamos visitamos no dia anterior. Entre outras curiosidades indígenas, observei as mandíbulas inferiores do macaco uivante ([6]), carregadas como um troféu pelo nosso anfitrião caçador. A primeira jornada foi de curta duração; a febre intermitente me atacou, novamente, e fomos obrigados a parar cedo em uma Aldeia. A cadeia de montanhas fica perto da casa. Um dos meninos indígenas me trouxe um lindo pedaço de quartzo cristalizado, com lâminas de mica. […]

20 de dezembro de 1835 – Continuamos nossa jornada, acompanhados por muitos Warpeshanas, que tornaram a viajem mais prazerosa; três deles tinham sido contratados como carregadores e guias. […]

01 de janeiro de 1836 – Aportamos, na noite de 01.01.1836, novamente, na enseada Wey-a-poucari e seguimos, na manhã seguinte, para Pirarara. A entrada Wey-a-poucari, em Latitude 3°38’N., é o refúgio da “Imperial Cidade Dourada de Manoa”; um caminho vai daqui até a Aldeia Macoosie Pirarara, às margens do Amucu, o grande Lago com margens auríferas. A distância é de cerca de 18 km, inicialmente através de um solo sinuoso, pouco arborizado e coberto com grama baixa, depois, atravessa vários pântanos e uma pequena elevação, aos pés da qual corre o Rio Pirarara, que precisamos atravessar para chegar à Aldeia de mesmo nome. O Riacho, antes de se misturar com as águas do Lago Amucu, tem pouco mais de um 2,7 m de largura, aquele famoso Lago, o centro da Parima, ou Mar Branco, se estende para o Leste e Oeste, e na época em que o visitamos, em dezembro e janeiro, com uns 4,8 km de comprimento, quase todo coberto de juncos e algumas raras vitórias-régias ([7]). […] De acordo com as informações que coletei, o último Rio tem suas nascentes no lado Norte das Montanhas Pacaraima, sobre uma mesa, e forma uma fina cata­rata, chamada Corona. Nós estávamos a caminho de visitá-lo, quando meu companheiro de viagem retornou, no terceiro dia de sua jornada, tão doente, que fomos obrigados a renunciar ao nosso propósito e retornar à Aldeia. […] Nosso retorno ao Rupununi Inferior, e entrada Currassawaak, merece celebra­ção. Uma festa de Piwarrie foi, portanto, planejada, mas a Aldeia não possuía uma grande vala. Os homens foram então para o bosque próximo, e começaram a selecionar uma árvore para cortá-la e escavá-la usando machado e fogo. O dia da festa se aproximava, e o Piwarrie ainda não estava pronto; e como a bebida tinha de fermentar por quase dois dias antes de ser servida, lançaram mão de uma pequena corial para substituir o cocho [ou vala] e todo o povoado, homens, mulheres e crianças, se ocuparam de mastigar o pão de mandioca, e prepa­rá-lo para usar. Depois de ter assim assegurado sua fermentação na devida medida e forma, e o novo cocho ter sido completado na manhã da festa, a bebida favorita foi transferida da corial para ele. Já descrevi a intemperança da qual o índio é contumaz em suas bebedeiras; e as cenas que eu presenciava até o momento não eram nada diferentes daquelas dos Warpeshanas e Macoosies. […]

Caribes ‒ Vila Annay (Charles Bentley)

04 a 05 de março de 1836 – Na noite de 4, acampamos a uma milha da grande catarata. Dabaero, o único nativo da região de Annay, que disse tê-la visitado em sua infância e a quem fizemos mil perguntas mostrou-se bastante confuso, e, mesmo agora, que era evidente que a grande queda estava bem próxima, ele ainda não tinha certeza se realmente era aquele o lugar que estávamos procurando. Logo após montarmos nossas tendas, uma tempestade violenta começou e a chuva durou a noite inteira. O Rio contraiu-se consideravelmente: as colinas aproximavam-se de ambos os lados, e o desenho das margens opostas eram tão similares que o canal era uma verdadeira obra de arte. O tempo, como para nos recompensar pelos sofrimentos que nos causara nos últimos dias, desanuviou-se; a névoa ainda pairava ao redor dos topos das colinas, e o Sol infiltrava-se por alguns raios errantes através das escuras nuvens, lançando uma luz variada sobre a paisagem, o que a tornava ainda mais pitoresca. Na manhã do dia 5 de março, após quinze minutos de navegação a grande catarata do Essequibo estava diante de nós. Numerosas colinas de estrutura granítica, com cerca de 91 m de altura, cobertas de vegetação luxuriante, comprimem o Rio em 46 m, onde o caudal atira-se em um precipício de 12 m, lançando espumas sobre o leito rochoso e, novamente, se precipita três metros abaixo. A vegetação luxuriante com toda a pujança de um clima tropical, as massas de granito projetando-se sobre o Rio e espremendo-o consideravelmente, as águas brancas e espumosas, combinaram-se para formar a mais bela e pitoresca cena que testemunháramos durante nossa Expedição. Todos os índios da nossa equipe declararam que nenhum homem branco jamais chegara a esta Cascata e, como de todas as perguntas que fiz, não consegui obter nenhum nome nativo para ela, me considerei compelido a nomeá-la como Cascata do Rei William, em honra de sua Majestade, patrono da Royal Geographical Society; e, portanto, adotamos todos os procedimentos regulamentares para nomeá-la, para surpresa e diversão dos nossos índios. […]

Pirara e Lago Amucu (Charles Bentley)

28 de março de 1836 – Parti, no dia 28 de março, na minha corial, tripulada por doze dos melhores e mais capazes homens; a maioria deles estava pela primeira vez a caminho da cidade ‒ eu estava, portanto, ansioso para ver que efeito o aspecto de nossos navios, nossos edifícios, etc, teria sobre eles. O próprio Zeno não poderia ter mostrado mais desinteresse que esses selvagens. Um menino da tribo Atoria, que ia na proa, olhou, de relance, sobre tudo aquilo que era novidade para ele, e sem alterar o semblante, dirigiu, novamente, o olhar para a proa da corial, nada parecia ter-lhe despertado a atenção. Fiquei muito desapontado. Na minha chegada a Georgetown, recebi as maiores demonstrações de alegria pelo meu retorno. Apressei-me a apresentar-me a Sir James Carmichael Smyth, o Governador, que me recebeu da maneira mais gentil, e tal cortesia me fez esquecer os sofrimentos dos seis meses anteriores. […]

Cascata Willian IV, Rio Essequibo.

Pelos últimos relatos do Sr. Schomburgk, datado de Demerara, em 22.08.1836, ele estava no ponto de começar a explorar o Rio Courantine, o limite Leste da Guiana Britânica, com a intenção de atravessar suas nascentes até o Alto Essequibo, e assim continuando seu exame do interior, e do alcance chamado Serra Acaraí, a linha de separação, nesta parte da América do Sul, entre as Bacias do Essequibo e das Amazonas. (SCHOMBURGK, 1836)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.05.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

RIVIÈRE, Peter. The Guiana Travels Of Robert Schomburgk, 1835-1844 ‒ Volume I: Explorations on Behalf of the Royal Geographical Society, 1835-1839 ‒ Inglaterra ‒ Londres ‒ The Hakluyt Society London, 2006.

SCHOMBURGK, Robert Hermann. Relatório de uma Expedição ao Interior da Guiana Britânica, em 1835-6 ‒ Inglaterra – Londres ‒ The Journal of the Royal Geographical Society of London, Volume The Sixth, páginas 224 a 284, 1836.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Corial: Tronco vaciado (canoa), Kuriyara. Esta palabra es igualmente común en la mayoría de los dialectos Caribes y ha sido adoptada por el Español de Sur América “curiara”. Há pasado al Inglés como “corial”,  palabra que nada tiene que ver con “coracle” ‒ barquilla de cuero. En Caribe […], significa […] un tronco o madero vaciado y con extremos puntiagudos. (REVISTA DE FOMENTO, n° 21 a 25)

[2]   Varejar.

[3]   Brasileiro.

[4]   Descalvada: nua.

[5]   Piwarrie ou caxiri: bebida alcoólica extraída de mandioca fermentada. O teor alcoólico é diretamente proporcional ao tempo de fermentação.

[6]   Bugio ou Guariba.

[7]   Vitórias-amazônicas.

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