A Terceira Margem – Parte CDXXIX

Descendo o Rio Branco

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Francisco J. R. Barata (1798/9)
Parte IV  

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De manhã cedo trataram de nos dar café, depois do qual passei a mandar concertar a canoa em que vinha, cujo casco estava quase podre, e portanto aqui ficamos neste dia. Às 09h00, nos chamaram para almoçar, às 15h00, para jantar, às 16h30, para o chá, e às 21h00, para a ceia; e em todas estas ocasiões se nos oferecia e apresentava tudo com tanta abundância e delicadeza, que nos causava admiração, tanto pela excelência das iguarias, como pela delicadeza do serviço, e dos aparelhos da mesa, para a qual as ditas mulatas sempre vinham com a sua parentela, e todos muito bem ataviados ([1]).

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Logo que amanheceu tratamos da continuação da nossa viagem, e eu então ofereci uma rede ou maca em que eu dormia, e de que pela primeira vez me havia servido, à mais velha das ditas mulatas, por quem tinha sido gabado o seu feitio. Ela repugnou em aceitar na inteligência de que eu não tinha outra, porém com a certeza de que me ficavam mais algumas, a aceitou, e juntamente seis cuias. À irmã ofereci outras 6 cuias, sendo uma cheia de anil, e outra de puxurí ([2]), e igualmente um pequenino pacará ([3]), o que tudo agradeceram, porque julgavam que entre nós tinham estas coisas tanta estimação, quanto elas lhes davam. Despedimo-nos enfim com a vazante, encontrando ainda algumas pedras, porém sem aquele grande perigo porque antecedentemente tínhamos passado. Pelas margens do Rio se achavam algumas outras plantações, nas quais desconhecendo-se as nossas canoas, não sem pequena admiração, nos miravam até nos perderem de vista. E deste modo nos parecia tão suave o trabalho passado, que se ainda fosse preciso sofrer e passar por outros maiores, nós com gosto nos sacrificaríamos a eles, para ganharmos a contemplação dos nossos admiradores. Chegamos pois perto da cidade de Essequibo, onde ficamos, não porque não tivéssemos ainda maré para chegar ao seu porto, mas porque como já era de noite, e eu não sabia os usos do País, reservei a minha chegada para a manhã seguinte.

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Chegada esta, às 07h00, ou pouco mais, entramos na dita cidade de Essequibo, a qual está situada na margem direita do Rio, em terra pouco alta. Nada vi nela digno de maior atenção, porque tem poucos edifícios, suposto que alguns suntuosos e fabricados de madeira; mas tem muitas plantações em o seu Distrito, onde reside a maior parte dos habitantes. Não demonstra grande comércio; mas sim muita agricultura, cujos produtos umas vezes vêm ali receber os navios, outras os fazem transportar a Demerara, cidade de que logo falarei. Tem uma Fortaleza na entrada da cidade, de que é Comandante um Capitão holandês [o qual está a soldo da Inglaterra], tendo de guarnição algumas cinquenta praças; porém todas debaixo das ordens do Tenente-Coronel Comandante inglês, residente na dita cidade de Demerara. A dita Fortaleza, suposto é regular, contudo não tem artilharia, porque esta foi transportada para a mencionada cidade capital. Logo que me desembarquei, procurei apresentar-me ao Comendador ou Governador subalterno, porém, como estava fora da cidade, me conduziram à presença do secretário, ao qual apresentei os passaportes de que ia munido. Ele me recebeu com muita cortesia, porém disse-me ser preciso participar ao Governador a minha chegada, para este resolver, e que, portanto, me havia de demorar três dias, ao que eu me sujeitei. Mandou-me para uma casa que supus ser estalagem, a cujo dono mandou não sei que ordem, porque logo que entrei me apareceu um homem, que em língua francesa me rogou o acompanhasse à sua casa, o que assim fiz. Porém ainda bem não tínhamos entrado, quando vi encaminhar-se a nós um oficial militar com um semblante verdadeiramente marcial. Perguntei quem ele era, e o dono da casa me respondeu ser o Comandante da Fortaleza, que havia chegado da outra margem do Rio, onde morava.

Este respeitável oficial depois de haver falado e cortejado ao dono da casa em holandês, me perguntou na língua latina quem era, de que Nação, e para onde ia, ao que respondi na mesma linguagem, que era português, Porta-bandeira, e que no serviço de minha Augusta Soberana pretendia seguir viagem para Suriname, como constava dos meus passaportes, que estavam em poder do secretário do Governo, e esta resposta lhe dei com um semblante tal como o de que ele se revestiu para me perguntar. Disse-me então que o acompanhasse à casa do dito Secretário, para onde nos dirigimos; logo que ali chegamos, com ar altivo perguntou ao dito quem lhe dera autoridade para exigir de mim os meus passaportes, vendo que eu era militar, e que a ele pertencia o exame dos mesmos, pelo que sem perda de tempo lhes apresentasse; o que executou o Secretário dando-lhe ao mesmo tempo algumas desculpas do seu procedimento. Examinados os passaportes, nos ofereceu o Secretário de almoçar, e no entanto me entraram a perguntar em que País habitava, por onde tinha vindo, e que tempo havia gasto na viagem, ao que satisfiz, ficando eles admirados da minha longa derrota; mas eu lhes moderei a sua admiração, dizendo que os portugueses estavam acostumados a empreender coisas mais árduas no serviço de seus amáveis e benéficos soberanos, porque estes eram gratos aos seus vassalos remunerando-os com grandes mercês, e tratando-os como a filhos, e não como a escravos.

Daqui tiraram eles por conclusão de que eu seria feliz, e bem recompensado desta diligência; o que eu confirmei porque se praticaria comigo o mesmo que com os outros. Acabado o almoço, o Comandante me conduziu para um barco, dizendo-me que ordenasse à minha gente nos seguisse, o que fiz. Atravessamos o Rio, e fomos desembarcar da outra banda, onde estava o Quartel da tropa. O Comandante me conduziu para o seu, que era no sobrado do mesmo, casa sumamente asseada, onde se achava também sua mulher, a qual é católica romana, e logo me veio cumprimentar. Este oficial me entreteve, já me relatando algumas coisas desta Colônia, já querendo exigir de mim notícias do nosso território, ao que satisfiz quanto meu dever e as circunstâncias o permitiam, fazendo-lhe ao mesmo tempo do País algumas pinturas, que lhe causaram grande assombro. Ele tinha alguma instrução; porém da história do nosso Brasil nada sabia, porque de tudo o que eu lhe relatei ficou persuadido. Muitas diligências fez para me persuadir que tinha grandes forças militares debaixo de suas ordens; porém eu me não capacitei ([4]), por que havia visto na cidade poucos soldados e pouca gente, e menos artilharia nas canhoneiras da Fortaleza, cuja guarnição diária era de seis soldados e um cabo, segundo ele mesmo disse. Às 15h00, fomos para a mesa, a qual foi servida com asseio e abastança, eu notei que nos talheres e mais aparelhos se achavam as armas reais da Inglaterra, e perguntando que motivo havia para isso, me respondeu que tudo pertencia ao Rei, o qual tudo lhes dava, assim pelo que pertencia aos mantimentos, como à copa, e até esquisitas bebidas. Não deixei de me admirar disto, porém não o dei a conhecer. Perguntou-me ele se isso mesmo se praticava entre nós e eu lhe respondi que não, porém, que segundo o meu parecer tínhamos nesta parte melhor ordem, porquanto se dava a cada oficial certa porção de dinheiro para o dito fim, de cujo dinheiro fazia o uso que bem lhe parecia.

Acabado o jantar, veio o chá, e nos aparelhos divisei as mesmas armas, não perguntei coisa alguma, porém fiquei persuadido de que eles eram assistidos não só com o necessário e útil, mas até com o agradável, e ainda com o supérfluo para manter a um militar alegre e robusto, como é justo que seja.

Depois do chá intentei ir à cidade, porém ele me dissuadiu com o aparente pretexto de que o não privasse e à sua senhora do gosto que tinham de saber algumas coisas do meu País, e especialmente do uso, costumes e trajes das senhoras portuguesas americanas, ao que eu me vi precisado a satisfazer, não com miudeza, mas em suma, certificando-lhes que nelas havia o recato honesto, pelo qual sempre foi respeitada a Nação; que eram aptas para o conhecimento das artes e ciências, nas quais muitas se tinham distinguido, e que, quanto aos seus trajes, eles tinham mais de ricos que de esquisitos, o que era próprio de um País aonde o ouro, a prata, e as pedras preciosas tinham o seu natural berço.

Aproximando-se a noite e a maré vazante, me disse ele que queria que eu lhe entregasse os meus passaportes e cartas que levava, para remetê-las ao Tenente-Coronel Comandante em Demerara, ao que lhe respondi, que a prática entre os portugueses era não largarem de si os documentos e ordens que haviam recebido de seus superiores, e principalmente quando tendiam a legalizar a sua pessoa com os ditos passaportes, ele instou, e eu produzi novas razões para o não dever fazer, dizendo-lhe enfim que se tinha de mim desconfiança me mandasse preso, ou com a segurança que lhe parecesse, à vista do que me respondeu, que não desconfiava, e só queria cumprir com os seus deveres, mas por último cedeu, e tomou o expediente de me mandar somente com guarda militar em barco do serviço do destacamento, metendo igualmente a meu bordo um soldado, pedindo-me que o desculpasse deste procedimento, pois era conforme as ordens que tinha. Eu lhe agradeci quanto foi possível os seus obséquios, e ofereci algumas cuias à sua mulher, uma pequena porção de puxurí, e a ele um pouco de tabaco fabricado em Silves, o que tudo estimaram muito. Eram quase oito horas quando a maré principiou a vazar, e eu devia partir, porém eles o não consentiram, sem que primeiro ceasse; o que feito me despedi, e eles me vieram acompanhar até o Porto, dando-me as maiores provas de gratidão, a que eu correspondi. Partimos finalmente, e, às 10h30, saímos do dito Rio, e principiamos a fazer a nossa navegação pelo Oceano sempre costeando a terra da parte do Sul, onde apareciam muitas plantações; e assim fomos continuando até que a enchente nos impediu e obrigou ao descanso. (Continua…) (BARATA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 11.05.2022 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

BARATA, Francisco José Rodrigues. Da Viagem que fez à Colônia Holandesa de Suriname o Porta Bandeira da Sétima Companhia do Regimento da Cidade do Pará, pelos Sertões e Rios Deste Estado, em Diligência do Real Serviço – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 08 – Tipografia de João Inácio da Silva, 1846.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com

[1]   Ataviados: Paramentados, vestidos.

[2]   Puxurí: Nectandra pichurim.

[3]   Pacará: cesta redonda feita com palha de palmeira.

[4]   Capacitei: convenci.

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