Viajante por Ofício

O Coronel de Engenharia Zauri Tiaraju Ferreira de Castro parceiro de trabalho no 6° BECmb, São Gabriel, RS, (quando eu era ainda um jovem Tenente), e ex-prefeito de Caçapava do Sul no período de 2009/2012, enviou-me outro texto de sua autoria que faço questão de compartilhar com os leitores.

Viajante por Ofício
(Zauri Tiaraju Ferreira de Castro)  

No início de 1974, eu servia em São Gabriel-RS, a minha primeira cidade como oficial, no posto de Segundo Tenente. Recém havia chegado das férias e da lua de mel, organizando a casa, adquirindo os tarecos da mobília e em processo de adaptação para a vida familiar que se iniciava.

No quartel do 6° BECmb eu recebera a função de Chefe do Serviço de Informações e Relações Públicas da Unidade com bastante atividade social do nosso meio e bastante tempo para jogar bola na hora do treinamento físico obrigatório, que nós chamávamos de educação física. Encaminhava-se um ano tranquilo para quem não tinha tropa para comandar e exercia função burocrática de pouca intensidade.

Num belo dia, o major Coelho, Sub-Coman­dante, determinou que eu acumulasse a chefia da Seção de Pessoal por uns dias já que o titular teria de se afastar por curto período. O S1 é o responsável pelas escalas de serviço da unidade, o que era rotina, alterações das praças, o que já tinha um Sargento encarregado, folha de pagamento, o que também andava sozinho e por receber e levar para despacho a documentação que chegava diariamente e que precisava ser lida por ele para dar destinação e alguma orientação específica para casos de urgência ou fora da rotina.

Nesse período, chegou um rádio (espécie de telegrama pelos quais o Exército se comunicava internamente através das estações rádio que existiam em todos os quartéis), pedindo um oficial voluntário para substituir o Ten Menegatto, casado com uma gabrielense e que escolhera voltar para o Sexto após cumprir seu tempo de categoria especial na distante Boa Vista de Roraima, onde havia um Batalhão de Engenharia de Construção, 6° BECnst, trabalhando nas ligações rodoviárias com Manaus e fronteiras da Venezuela e Guiana.

Disse para o major ali mesmo que eu era o voluntário e ele, sem consultar aos demais tenentes, como era de costume, mandou que eu o respondesse para Brasília, indicando o meu nome para a missão desafiadora. Chegando em casa, de supetão, quer dizer, sem preparação nenhuma, avisei empolgado para a recém casada: Vamos para Roraima conhecer a Amazônia.

Em maio, chegou o rádio da transferência e a nossa primeira providência foi visitar a sogra do Menegatto para saber informações de Boa Vista, da viagem e da rotina da vida por aquele setentrião. Ela tinha ido visitar a filha e uma netinha que não vieram de férias no final do ano para economizar o dinheiro das passagens e já começar um pé-de-meia, já que lá na primeira categoria, nas fronteiras, só serviam voluntários e havia uma gratificação de 20% do soldo básico e se podia escolher para onde ir ao término da missão. Saímos dali verdes de mate e sabendo quase tudo daquele destino tão distante. Até aprendemos a andar de avião, o que levar, o que não levar etc. Vendemos toda a mobília da casa que tínhamos recém comprado e decidimos transportar somente o fuscão preto que iria por terra até Belém, por balsa até Manaus e daí para frente dependeria do destino.

Foi uma aventura maravilhosa, tanto que depois do retorno, novamente para São Gabriel, voltamos à Roraima em 1978 já com a filhinha pequena e eu mais antigo no posto de capitão. Tivemos um mês em Boa Vista no Hotel de Trânsito dos Oficiais (HTO), lidando com os recrutas no quartel, até ser designado para o Destacamento Sul, que tocava o serviço de abertura da estrada na direção Norte, buscando o encontro pelo meio do caminho com o pessoal que descia de Boa Vista, tocando o serviço para o Sul. Essa previsão ocorreu no final de 1975, próximo ao marco da linha imaginária do Equador, no estado do Amazonas, a cerca de 500 Km de Manaus.

Como Tenente pica-fumo, novato, me reservaram funções burocráticas junto ao comandante do destacamento que era um major que aos finais de semana viajava para Manaus, inicialmente distante a 130 Km do Acampamento de Santa Cruz, onde ocupamos uma das seis casas existentes para oficiais e sargentos em uma clareira à beira da estrada. Dali para frente, eram distribuídas, ao longo do trecho em obras, as equipes de revestimento primário, terraplanagem, bueiros e pontes, desmatamento mecânico e topografia em perfeita simbiose e relativa independência quanto às responsabilidades.

Na sede do destacamento, eu tinha um horário melhorzinho, das seis às dezoito, e chefiava rancho (tínhamos nove cozinhas ao longo do trecho), seção de pessoal civil e militar (cerca de setenta militares e de quatrocentos civis celetistas), carpintaria e serviços de segurança. Eram pavilhões de tábua pregados na horizontal e cobertura de zinco.

Nosso sistema de trabalho era diferenciado para civis e militares. No fim do mês, após ser realizado o pagamento do pessoal civil, em dinheiro vivo, ali mesmo na sede do Destacamento, formava-se um comboio de cerca de doze/treze ônibus locados para levar o pessoal para a cidade de onde retornariam ao sétimo dia da dita Dispensa de Arejamento. Os milicos gozavam dessa e de mais uma de dois a três dias no meio do mês. Isso porque a maioria deixara mulher e filhos em Manaus. Havia aqueles que não viajavam nunca por motivos os mais diversos, os denominados laranjeiras. Nós decidimos ir a Manaus de dois em dois meses ou em ocasiões especiais. Nosso divertimento era bater pernas pela Zona Franca onde quase tudo era uma grande novidade para nós dois recém-casados .

Havia, na Rua Lima Bacuri, uma Casa de Hóspedes, onde se dispunha de acomodação para os oficiais e famílias dos trechos. A alimentação era por conta de cada um. Ali se escutava as aventuras dos solteiros nos seus dias de folga fora do mato, especialmente as vivenciadas nos banhos nos igarapés ainda pouco poluídos das proximidades da cidade.

Não me esqueço do meu primeiro dia no mato, cheio de curiosidades e meio assustado. O pessoal militar estava de folga e só permaneceu uma meia dúzia de cabos e soldados de serviço durante o final de semana chuvoso. Ficaram algumas máquinas no trecho com operadores civis de confiança para realizarem algum serviço específico que era bom não paralisar. Desci num avião da FAB, Búfalo, no campo de pouso de Santa Cruz, distante cerca de 130 Km de Manaus.

Havia um cabo me aguardando com um Jeep Willys completamente embarrado, dizendo que tinha ordens para mostrar-me a casa de madeira onde eu iria ficar provisoriamente, até que desocupasse uma outra ao lado da primeira casa da vila que era a do Major. Ao todo eram seis, de madeira bruta, pregadas na horizontal. Não havia mobília. Uma mesa, duas cadeiras de alumínio de praia, uma geladeira pequena, um fogão a gás, uma cama de casal e só. O box do banheiro era revestido com uma folha de zinco nova. A comida, para os primeiros 15 dias, vinha em uma marmita de alumínio do rancho do Destacamento que ficava há uns 200 m de distância, até que eu pudesse ir a Manaus para fazer compras.

Era de manhã. Lá pelas três da tarde, apareceu o cabo dizendo que havia chovido mais do que o esperado e teria de ir buscar o operador do trator de esteiras que estava no trecho e que não poderia trabalhar naquelas condições. Disse que ficava há uns 35 Km adiante. Decidimos ir com ele para já ir conhecendo e fotografando aquele mataréu todo que já nos fascinava. A estrada recém-aberta, ainda não revestida, era de terra avermelhada e com a chuva ficara muito escorregadiça.

Antes de chegar ao destino, nosso motorista que era eletricista e não sabia dirigir direito, derrapou o veículo e tombamos de lado em câmara lenta, envaletando na lateral de um corte da estrada nova. Foi um susto bem grande porque o jeep deitou para o meu lado e por sorte não era lugar de aterro. Desviramos o carro e seguimos viagem sem machucados a 10 Km/h. Chegamos em casa já de noite. Meu medo era ficar a pé no meio do mato e ser atacado pelos índios ou pelas onças. Começamos bem nossa aventura na selva amazônica.

Poucos meses depois, já adaptado àquela vida de trecheiro, troquei de função e de residência. Num sábado de folga, fizemos nossa mudança de caçamba para uma vila nova 80 Km adiante para acompanhar o andamento da estrada mais de perto, por motivos logísticos. Ali fomos pioneiros, os primeiros moradores do Acampamento de Santo Antônio do Abonarí, melhor organizado e mais bem equipado.

Para melhor caracterizar essa situação, transcrevo abaixo, uma Crônica de autoria de um Ten Cel, Sub-Cmt recém-chegado ao Batalhão, que fazia uma viagem de conhecimento das atividades, publicada no Informativo O PIUM, que era produzido pelo pessoal das Relações Públicas do Batalhão.

Nele constavam notícias de todas as frentes de serviço, era distribuído pelos canteiros de obras e procurava informar e integrar o pessoal que trabalhava espalhado distante da sede. No seu ANO II, N° 7, de 20 Set 1975, na sua contracapa saiu o seguinte:

DUAS HEROÍNAS 

Manaus já se distanciava 220 Km e nenhum povoado ousava violentar aquela verde e misteriosa natureza virgem. Aproximávamo-nos do Rio Santo Antônio do Abonarí, e uma sensação estranha, misto de curiosidade e receio, nos invadia; pois logo adiante estariam os mesmos índios Atroarís que, mui recentemente, trucidaram de forma solerte e cruel alguns homens da FUNAI e trabalhadores da turma de desmatamento manual, empenhados na abertura da BR-174.

Eis que, de repente, em uma enorme clareira aberta recentemente em plena floresta, divisamos três casas de madeira e, bastante afastados delas, alguns pavilhões cobertos de zinco: era o futuro acampamento do Destacamento Sul do 6° BEC.

Nossa surpresa foi maior ao depararmos com duas pessoas do sexo feminino, cuja idade aproximada era de 20 anos, acompanhadas de uma criança quase de colo, isolados do resto do mundo e em meio a ambiente tão adverso. Embora identificadas com a terra, não eram filhas de Manaus, nem da Amazônia, as duas primeiras mulheres brancas a residirem tão perto dos Waimirís e Atroarís.

Vieram de longe! D. Olinda, há um ano casada, saiu de sua terra, Caçapava do Sul, nos pampas, acompanhando seu marido o 2° Ten Tiaraju, que se transferira para o 6º BEC. D. Marta, mãe de Erick, casou-se faz dois anos, lá no Recife, com o 2º Ten Eduardo, quando este terminou o CPOR.

Hoje, elas se despedem dos maridos pela manhã, aguardando-os só à noitinha, quando lhes contam as novidades do dia, que não são poucas. A distância entre o acampamento e as frentes de trabalho já não permite retorno para o almoço. Somente a cada duas semanas passam dois dias em Manaus, fazendo as compras dos gêneros que carecem para a sua sobrevivência.

Assim, vão vivendo voluntariamente estas heroínas uma epopeia sem alardes, desenvolvendo uma atividade de profundo alcance social, mercê de uma abnegação exemplar que tange as raias do estoicismo.

Permaneci servindo neste Destacamento até o final de 1974, quando aconteceu o massacre dos Atroaris que vitimou o Sertanista Gilberto Pinto. A partir daí os trabalhos obedeciam a uma série de precauções quanto à segurança de civis e militares, tendo sido empregadas tropas do Batalhão de Infantaria de selva de Manaus em missões preventivas de presença armada para desestimular novos ataques.

Era uma situação inusitada, porque não se enxergavam os silvícolas e aos poucos os soldados foram acostumando com ausência daquele “inimigo” invisível e passaram a não acreditar mais no perigo que eles representavam para o nosso pessoal que trabalhava desarmado. Somente uns seis meses depois do massacre é que apareceram alguns índios e fizeram contato com um patroleiro que trabalhava isolado, reparando um trecho isolado. Não houve violência e foi muito rápido.

Por essa época, final de 1975, fui de a pé, acompanhado pelo soldado motorista e um servidor civil, portando um mosquefal, levar uma bateria pequena para o gerador da equipe de desmatamento. Andamos cerca de uns dois Km pela picada aberta manualmente-terreno arenoso e baixo e nos deparamos com rastros humanos recentes de pés descalços. Seriam dois adultos e uma criança (identificamos que eram índios pelo formato aberto do dedão do pé que nunca usou calçado, aberto para fora). Ficamos receosos e muito atentos, mas nada apareceu, nem mesmo quando retornamos já no escuro até onde ficara o jeep.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 12.04.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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