A Terceira Margem – Parte CDXXIII

Descendo o Rio Branco  

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Ricardo Franco de A. Serra (1780/1)
Parte II   

Concluído este reconhecimento da comunicação do Rio Branco com o do Rupununi, voltamos a embar­car-nos nas canoas; e continuamos pelo Rio Mau acima até mais de 4° de Latitude Boreal, por meio de serras desde a Latitude de 3°50’, em que as cinco cadeias de montes que víamos uns por detrás de outros, olhando dos campos do Pirara para o N, aqui nos demoravam para o S; e depois de termos vencido algumas cachoeiras, chegamos a uma muita extensa, à que o gentio chama Urue-Buru, na nossa língua ‒ Cachoeira do Papagaio, donde fomos obriga­dos a voltar, podendo contudo, asseverar que, ainda que aquele Rio não acabe por entre a mesma serra, como nos disse o gentio prático, mas venha por aquela parte a comunicar-se com alguns dos Rios, que descem para o Oceano por domínios estranhos, tão difícil para nós a descida por meio das cachoeiras e tão fácil de se vedar qualquer introdução que por ali se queira fazer, que absolutamente não há mister mais visto do que o sítio a que chegamos para se dar por inútil qualquer comunicação, que por ele se descubra.

Aqui nos falta dizer que todas estas extensas serras são povoadas do gentio Macuxí que é o mais numeroso do Rio Branco, e menos guerreiro talvez.

Da Cachoeira voltamos à Foz do Tacutu, onde logo nos foi preciso deixar a canoa em que vínhamos, que demandava dois palmos o meio de fundo para navegar, e nos metemos em umas pequenas, nas quais mesmo fomos com grande dificuldade, por es­tar o Rio em poços, e a comunicação de uns a outros destes estar quase seca; e tendo ido até à ponta da serra, que dos campos do Pirara dissemos avistar para o Sul, não sendo possível navegar-se mais, as­sentamos em fazer a diligência da averiguação das serras e fontes do Rio Trombetas, o Urubu, de que V. Exª nos havia também encarregado, com marchas por terra desde a Fortaleza em caminho para nas­cente; o que deixamos reservado para ultimar as nossas diligências, sendo-nos de maior importância “ex vi” ([1]) das mesmas referidas ordens o reconhe­cimento das outras fontes do Rio Branco, por onde tinham clandestinamente descido para estes domí­nios os espanhóis da Caribana, e se iam estabele­cendo pelas fontes do Rio Branco, desde o ano de 1770, até o de 1775, em por ordem de V. Exª foram represados.

No dia 10 do março nos pusemos em viagem pelo Rio Branco acima, a que os índios vizinhos chamam Urariquera, levando sempre em vista a intenção das ordens de buscar pela parte do Norte os limites natu­rais que hajam de servir de inalterável demarcação, e tendo deixado a Boca do pequeno Rio Parimé em 3°30’ de Latitude Boreal ([2]), e depois a do Majori, que também vem da parte do Norte, fomos subindo até o intruso estabelecimento que foi dos espanhóis de Caia-Caia o qual se acha quase neste mesmo Paralelo, e ainda sobre as campinas, que ficam fechadas da cordilheira, que por altura de 4° do Norte tínhamos observado.

E continuando águas acima, vencidas as cachoeiras repetidas do Urariquera, encontramos a Foz do Rio Uraricapará em 3°24’ de Latitude Boreal: por este Rio, a que os espanhóis davam o nome de Parimá, corremos 20 léguas em rumos do Poente, e depois de Norte, e nos achamos no outro estabelecimento, que eles também fundaram com o nome de Santa Rosa, que era a sua escala para a intrusão nas ver­tentes do Rio Branco, sendo a Latitude deste lugar de 3°43’12” estando ainda afastado o centro das serras, que desde o Mau vem correndo Leste-Oeste pela referida Latitude de 4° de Norte, não obstante que ela aqui remeta alguma coisa a Sul, e esta mes­ma serra é a que os ditos espanhóis atravessaram em um dia, quando do povo de S. Vicente descia para estas vertentes, e ao extremo dela em dois dias vinham a este lugar de Santa Rosa, ou varadouro de Adanca, como do mapa melhor se vê.

Deste sítio continuávamos ainda a viagem águas aci­ma, na intenção de irmos reconhecer a quebra da serra, que, como dissemos, servia de porta a estes vizinhos; mas a cheia era de tal qualidade que nos impossibilitou dar mais um passo, pelas cachoeiras, que tínhamos de vencer, e assentamos fazer pelos matos a diligência que pudéssemos, para o dito co­nhecimento, sem embargo de nos ter ficado muito doente na Fortaleza um preto espanhol, que nos de­via servir de prático, por ter vivido muitos vezes no dito sítio de Santa Rosa, e ter vindo com os espa­nhóis por S. Vicente, o outro embaraço foi o de ser necessário regular o mantimento para a volta, por­que o bote de cinco remos, em que tínhamos manti­mento para mês e meio, não se pôde varar na quinta cachoeira, a que chamam do Aningal, e nas peque­nas canoas, em que continuamos todo o resto da viagem, não coube mais mantimento que para doze dias, dos quais oito eram passados, e assim tendo reconhecido este sítio, em que as serras que dele se avistam, ainda mostram a mesma direção de nas­cente a Poente, daqui assentamos serem as mesmas que desde o Mau vem correndo por mais de cinquen­ta léguas, e que, contendo desde o Pirara por ses­senta léguas de extensão, fazem por si mesmas uma notável divisória, tal como se deseja na presente ocasião.

Voltando Rio abaixo a favor da enchente, em dia e meio chegamos à Foz deste Rio, entramos pelo Ura­riquera acima, que corre entre o Sul e Poente, e an­dando dois terços de légua chegamos a uma grande cachoeira de salto, e por uma alta eminência da par­te do Poente subimos pelo trilho das canoas de corti­ça, que por ali arrasta o gentio Perocoto, que em grande número frequenta estes Rios, mas que para nós era impraticável, ainda que pudéssemos demo­rar-nos, servindo-nos este pequeno desvio para des­cobrir estes novos embaraços da navegação naquele dito Rio Urariquera, donde continuando em descer às cachoeiras e toda a extensão do Rio, que vai até o mencionado sítio de S. João Baptista de Caya-Caya.

Incorporados já com o nosso bote maior, entramos no Rio Maracá, o qual também seguia os rumos entre Sul e o Poente, e, não obstante ser caudal de águas, vão estas tão derramadas por pedras, e cachoeiras, que de seis léguas para cima não pudemos vencer, sendo notável nele o ser ainda bordado de férteis campinas pela parte do Nascente.

Assim viemos retrocedendo até encontrar a Boca do Rio Amajarí, que do Norte desce ao Rio Branco, e cuja indagação se nos mostrou interessante, tanto por ver se descobríamos alguns pontos intermédios da cordilheira, que tínhamos visto nos extremos de Santa Rosa, e do Pirara, e Mau, como pela notícia que alcançamos de haverem os índios Erimissanos degolado sobre aquele Rio uns missionários espa­nhóis, que pelos sinais que eles dão, são os barba­dinhos da ordem franciscana da Província de Cata­lunha, que se acham paroquiando no Alto Orenoco; e correndo com efeito o Rio, e passando além do sítio da matança dos Padres, em que mandamos arvorar uma cruz de pau, subimos até a altura de 3°54’, tendo andado o Rio entre o Poente e Norte, havendo nós passado 19 cachoeiras, sendo a 20ª a que acha­mos na mencionada altura, muito perto da cordilhei­ra, e aliás serras que víamos à Norte, mas já desde os campos da 1ª Cachoeira Grande, que fica em Lati­tude 3°44’ que vem a ser a mesma altura de S. Ro­sa, se descobrem as serras, que vêm desde o Mau.

Deste mesmo lugar da cachoeira, em que observamos o eclipse do Sol de 23 de abril, atraves­samos com caminho de Poente a nascente para a cabeceira do Parimé, que fica menos de três léguas, donde muito melhor, e sem dúvida se descobre a cadeia ou muralha de serra, que vem desde o Mau, como temos dito e se estende além de S. Rosa, mui­to mais para o Poente pela Latitude de 4° de Norte.

Ali soubemos que os missionários barbadinhos tinham descido pela mesma quebrada das serras, por onde vieram depois os espanhóis com mão armada, sendo impraticável a descida pelas outras partes da serra pela altura e escarpado dela, nesta jornada andamos com um velho de Nação Erimis­sana, por nome Apaicá, cuja habitação está quase sobre o Parimé, que tinha ajudado aquele assassi­nato, a que deu causa a imprudência dos tais missio­nários, que vieram meter-se para dentro destes domínios tão notáveis pelas vertentes dos Rios, e pelas altas serras que as separam.

O Rio Parimé não corria na sua fonte, coisa sensível, mas estava toda em poços a água, e se deve considerar aquele pequeno Rio, como um esgoto das campinas adjacentes sem que tenha nenhum Lago de verão, e muito menos cercado de altas serras por toda a circunferência, como fabulizaram tantas cartas impressas em Europa.

Depois de obtermos estas claras ideias do que nos foi ordenado, nos recolhemos para a Fortaleza de S. Joaquim para dali irmos outra vez tentar a diligência de averiguar as fontes do Rio Trombetas e Urubu, a qual só por marchas de campo se pode fazer, mas o inverno nos vinha como seguindo desde o Poente, de onde trazíamos a nossa derrota, e começaram logo tão grandes chuvas, que as campinas alagadas não permitiam as marchas de pé, para que ultimamente V.Exª nos havia prevenido com as barracas de cam­panha, e oleados para cobrir as caixas dos instru­mentos astronômicos.

Será, contudo, muito útil praticar-se esta averigua­ção a todo o tempo que se puder fazer, para se reconhecer a extrema que devemos ter com os holandeses, e mesmo com os franceses de Caiena, quando se houver de tratar algum ajuste de limites com estas colônias confinantes, como também da mesma forma, e para o mesmo fim se deverão examinar as cabeceiras dos Rios Rupununi, e Anáo-au, que se diz formam as vertentes entre os sobre­ditos portugueses e holandeses domínios, como so­mente pelas notícias adquiridas se figura, ou de­monstra no pequeno mapa adjunto ao total referido nesta’ participação.

É o que podemos informar a V. Exª, que Deus guarde por muitos anos. Barcelos, 19 de julho de 1781. ‒ Ricardo Franco de Almeida Serra, Capitão Engenheiro. ‒ Dr. Antonio Pires da Silva Pontes. (SERRA)

Forte Coimbra

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.04.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

SERRA, Ricardo Franco de Almeida. Documento Oficial – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 06 – Kraus Reprint, 1844

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Ex vi: por efeito, por força.

[2]   Boreal: Norte, Setentrional.

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