A Terceira Margem – Parte CDXV

EPOPEIA ACREANA 

Mapa Rio Branco – Porto Acre

Rio Branco, AC – Porto Acre, AC

O sábio teme o céu sereno; em compensação, quando vem a tempestade ele caminha sobre as ondas e desafia o vento. (Confúcio)

Ama as águas! Não te afastes delas! Aprende o que te ensinam! Ah, sim! Ele queria aprender delas, queria escutar a sua mensagem. Quem entendesse a água e seus arcanos – assim lhe parecia – compreenderia muitas coisas ainda, muitos mistérios, todos os mistérios. (HESSE)

Quando parto às escuras, lembro-me de minhas jornadas anteriores em que faço sempre questão de sair antes do amanhecer. Na descida dos Rios Aquidauana-Miranda, no Mato Grosso do Sul, meu parceiro, menos propenso à “Litania das Horas Mortas”, amedrontado, abandonou a jornada no terceiro dia.

Gosto de navegar solitariamente usufruindo das belezas naturais que me cercam e enfrentar todo tipo de obstáculos acompanhado de longe pelo Supremo Arquiteto. Saindo antes do amanhecer tenho a rara oportunidade de me entranhar nos sutis meandros aquáticos, de imergir literalmente no momento mágico que é o despertar de um novo dia. A uniformidade da flora vai ganhando novos contrastes, novas cores, novas luzes, numa invulgar explosão que apresenta progressivamente a pujança extrema da biodiversidade tropical.

A fauna preguiçosa, acorda entoando uma maravilhosa ode sob a batuta do Astro-rei, tons diversificados, emitidos pelas mais diversas gargantas, irmanadas numa sinfonia única acompanhada eventualmente, de longe, pelo som melancólico dos bugios. Nestas horas adentro solenemente nos umbrais de um templo sagrado e avisto, extasiado, a “Terceira Margem do Rio”. Somente os verdadeiros canoeiros são capazes de aprender humildemente com as águas, com os ventos, e entender suas sutis mensagens observando as nuvens e os seres da mata. Aprendi com eles a reconhecer minha capacidade e minhas limitações, a fazer companhia a mim mesmo e me alegrar com isso, a refletir sobre minhas ações ou omissões. A declamar poesias educando a respiração enquanto pico a voga. Meu coração e minha mente seguem a par e passo, literalmente, as estrofes da “Litania das Horas Mortas” de Da Costa e Silva, o Príncipe dos Poetas Piauienses e autor da letra do Hino do Piauí.

Acampamento 07a

Litania das Horas Mortas
(Antônio Francisco da Costa e Silva)

Por estas horas de silêncio e solidão,
Eu gosto de ficar só com o meu coração.
É nestas horas de prazer quase divino
Que eu me sinto feliz com o meu próprio destino.

Por estas horas é que a cisma me conduz
Por estradas de treva e caminhos de luz.
É nestas horas, quando em êxtase medito,
Que sinto em mim a nostalgia do infinito.

Por estas horas, quando a sombra estende os véus,
A fé me leva além dos mais remotos céus.
É nestas horas de tristeza e de saudade
Que desperta em meu ser a ânsia da Eternidade. […]

É nestas horas de tristeza e esquecimento
Que eu gosto de ficar só com o meu pensamento. […]

Por estas horas transitórias e imortais
Se desvanecem minhas dúvidas fatais. […]

Por estas horas, meu instinto morre, com
A intenção de ser justo, o anseio de ser bom. […]

Por tuas horas silenciosas, benfazejas,
Deusa da Solidão, Noite! bendita sejas!

21.09.2017 – Partindo de Rio Branco  

A estada em Rio Branco foi providencial. As dores musculares diminuíram, fiz minhas marchas diárias de três horas, ao alvorecer, abandonei a dieta a base de castanhas e bananas, dormi em uma cama seca, tomei banho quente e bebi água insípida, inodora e incolor, tudo de bom. Estabelecemos contato com a Prefeitura de Porto Acre e a Agência Fluvial de Boca do Acre da Marinha do Brasil, esperando que os apoios sejam concretizados para que possamos pernoitar um dia em cada uma destas cidades mais confortavelmente. A barraca, que me abriga contra os mosquitos antes do entardecer transforma-se literalmente em uma sauna seca. Não existem árvores e os arbustos são raros, é época da seca, acampo onde, no período da alagação, é o leito do Rio.

Acordei às 04h22 e parti às 05h15, apoiado, mais uma vez, pelo 7° Batalhão de Engenharia de Construção. Em vez da costumeira e agradável névoa da evapotranspiração o que se via e sentia era a macabra fumaça das queimadas que dificultam a visibilidade, a respiração e irritam os olhos.

Um costume ancestral arraigado nos corações e mentes dos trabalhadores rurais que teimosamente per­sistem nesta prática extremamente criminosa. O refle­xos desta deletéria prática são, a longo prazo, o empo­brecimento do solo, degradando e afetando sua fertilida­de, e, em consequência, diminuindo a produção agrícola em virtude da eliminação de nutrientes essenciais como nitrogênio, potássio e fósforo, além de reduzir a umidade da terra acarretando sua compactação, desencadeando, com isso, um processo erosivo, que, certamente, estará comprometendo o futuro e a segurança alimentar da humanidade. Outro grande malefício oriundo desta infe­liz prática é a liberação de uma grande quantidade de CO2, ‒ principal gás do efeito estufa, sem mencionar os efeitos altamente nocivos à saúde humana e à sobrevi­vência de nossa biofauna.

Avistei um ribeirinho que carregava sua canoa com bananas para vendê-las em Rio Branco e comprei-lhe duas pencas por quatro reais. As bananas que ganhei em Xapuri, do amigo Duda Mendes, tinham acabado. Um enorme boto vermelho fez uma evolução a bombordo do caiaque balançando a embarcação. Mais adiante, a uns 2 km, não sei se o mesmo boto realizou manobra semelhante a bombordo e boreste.

Avistei, ao longe, três homens em uma canoa e, ao me aproximar, identifiquei dois idosos, um na proa e outro na popa e um rapaz de pé empunhando uma espin­garda calibre vinte (09°53’35,90” S / 67°38’13,70” O). A cachorrada latindo em ambas as margens chamou minha atenção para um enorme capincho macho (Hydrochaeris hydrochaeris) que nadava rapidamente no talvegue do Rio tentando escapar dos seus vis algozes.

Acampei, na margem esquerda (09°47’37,70” S / 67°34’57,80” O), adiante do ponto marcado, e montei a barraca à sombra de uma embarcação encalhada no banco de areia. Conversei, aos berros, com o Sr. Cid e esposa, que moram na margem direita defronte ao meu acampamento, eles empoleirados no alto do barranco eu na praia da margem esquerda.

Mais tarde o Cid apareceu para conversar e me mostrou uma gigantesca cabeça de Jau que ele tinha encontrado. Estávamos conversando animadamente quando, por volta das 16h00, de repente, o tempo mudou e caiu uma tremenda borrasca.

Consegui escorar a barraca para que ela não fosse arrastada pela força do vento. Entrei na barraca e segurei firmemente os estais para que não dobrassem. Meia hora depois a chuva acalmou. A vantagem da repentina chuvarada foi que a temperatura amainou e pude relaxar um pouco.

Total 10° Dia – Rio Branco / AC 07a         =   63,2 km
Total Geral ‒ Iñapari / AC 07a                 = 588,9 km

22.09.2017 – AC 07a – Porto Acre 

Depois da chuvarada da tarde passada a temperatura ficou bem mais agradável e dormi bem. Alvorada às 04h20, como sempre começo arrumando a tralha de dormir na mochila vermelha. O aprestamento foi lento e minucioso, tinha previsto minha chegada em Porto Acre antes das 13h00, portanto, não havia pressa, eram pouco mais de 50 km. Parti às 05h10, graças à chuva o ar estava bem mais puro embora volta e meia ainda se pudesse sentir o cheiro da vegetação queimada.

Deixei o celular ligado para que ele identificasse os raros locais onde tivesse sinal e com isso conseguir saber se o Cb Rogério da Silva Ribeiro, do 7° BEC, que mora em Porto Acre, tinha conseguido contatar a Srtª Leidiany Honório Rodrigues a respeito do apoio da Prefeitura em alojamento e alimentação.

Hospitalidade
(Jayme Caetano Braun)

No linguajar barbaresco
E xucro da minha gente
Teu sentido é diferente,
Substantivo bendito,
Pois desde o primeiro grito
De “o de casa” dado aqui,
O Rio Grande fez de ti
O mais sacrossanto rito! 

Não há rancho miserável
Da nossa terra querida,
Onde não sejas cumprida
No mais campeiro rigor,
Porque Deus Nosso Senhor
Quando te botou carona,
Já te largou redomona
Sem baldas de crença ou cor! […]   

Hospitalidade é o mate
Da chaleira casco preto,
É a graxa que do espeto
Vai respingando na brasa,
É o truco, que a casa vasa,
Sempre está pintando “Flor”,
É Rancho do corredor
E sombra de oitão de casa! […]    

É o charque de carreteiro
Picado sobre a carona;
É o lamento da acordeona
Que se perde campo fora;
É a china linda que chora
Num derradeiro repique
Pedindo que a gente fique
Até que se rompa a aurora!  

Mas porém, sintetizada,
Num traste de uso machaço
A hospitalidade é um laço
Bem grosso e de armada grande
Que Deus trançou, pra que ande,
Apresilhado ao cinchão
Nos tentos do Coração
Dos gaúchos do Rio Grande!
 

A viagem transcorreu sem alteração. Os ribeiri­nhos são desconfiados e muitas vezes não respondem a um simples bom dia ou a um aceno de mão. Que dife­rença do nosso Gaudério que já mandaria o Taura passar para diante, lhe mandaria tomar acento e estenderia de pronto um mate amargo em nome da nossa proverbial hospitalidade. Como seria bom se todos fossem capazes de corresponder a um aceno, um cumprimento, um sorriso. O dia ficaria mais alegre, mais leve e matizado com cores mais cordiais.

Porto Acre

Nas proximidades de Porto Acre o tempo fechou, nuvens escuras e vento vindo de Este a mais de 40 km/h. Segurei o remo com força e me aproximei ao máximo da margem direita. Piquei a voga de maneira a vencer logo a curva à esquerda (09°38’40,06” S / 67°32’06,34” O) que estava logo à minha frente e que me permitiria ficar protegido do vendaval. Logo que consegui meu intento uma chuvinha gelada e fina caiu.

O corpo cansado e castigado pela canícula recebeu sofregamente aquele providencial fluído. Falei com o Cabo Rogério da Silva Ribeiro pelo celular e o mesmo me indicou o local onde deveria aportar. Ele e o irmão carregaram o caiaque até a residência de amigos, Sr. Admilson e Sr.ª Maria José, e depois fomos procurar o hotel providenciado pela Prefeitura. Fui hospedado no “Hotel e Restaurante 03 Irmãos” administrado pela Dona Francisca (Chica) e sua fiel escudeira Sr.ª Raquel.

Porto Acre – Sala Memória

Visitei, mais tarde, a Sala Memória e acompanhado pelo Sr. Artur Sena, seu titular, fomos até a Prefeitura agradecer à Srtª Leidiany Honório Rodrigues, Chefe de Gabinete do Prefeito Benedito Cavalcante Damasceno o apoio prestado. Esta é a primeira vez, no Acre, desde nossa Descida pelo Rio Juruá que recebemos apoio de uma Prefeitura. Sempre tivemos o suporte do Exército, Polícia Militar, Bombeiros Militares em cada cidade acreana pela qual passamos, mas como nenhuma dessas instituições se faz presente em Porto Acre a única alternativa seria essa. Agradecemos sinceramente ao Prefeito Bené e sua equipe pela cordial acolhida.

Graças ao amigo Antônio Jony da Costa Noronha, o Capitão-Tenente (AA) Gerson Garcia de Carvalho, Agente Fluvial de Boca do Acre, contatou-nos e nos aguarda, é a Marinha do Brasil apoiando nosso Projeto.

Total 11° Dia ‒ AC 08a / Porto Acre             =   54,2 km
Total Parcial ‒ Rio Branco / Porto Acre      = 117,4 km
Total Parcial ‒ Iñapari / Epitaciolândia     = 188,2 km
Total Parcial ‒ Epitaciolândia / Xapuri      = 105,2 km
Total Parcial ‒ Xapuri / Rio Branco             = 232,3 km
Total Geral ‒ Iñapari / Porto Acre                = 643,1 km

 

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 06.04.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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