A Terceira Margem – Parte CDVI

EPOPEIA ACREANA

Cel Hiram em seu caiaque

Bolivian Syndicate – II   

O Cotejo destas duas notas, ‒ escreveu na imprensa da época um ex-Vice-Presidente da República:

É um dos mais rudes golpes que já jamais sofreu o nosso patriotismo.

Reunido pouco depois em sua sessão ordinária o Congresso Nacional da Bolívia, nenhuma providência foi sugerida ou solicitada pelo Chefe do Estado, no sentido de modificar e menos rescindir o Contrato com o Bolivian Syndicate. Nem essa ilusão era mais lícito entreter em face da nota Pinilla. Nesse documento é categórica e formal a afirmação de que a Bolívia não estava disposta a permitir que outro poder do seu direito de celebrar aquele Contrato, nem pretendesse autoridade para ajuizar do mérito ou das conveniências dela.

Mais claro se torna o pensamento do Governo boliviano na Exposição que o Congresso Nacional, em La Paz, na sessão de 1901, fez o Sr. Aramayo, Ministro da Bolívia em Londres, incumbido oficialmente de negociar o arrendamento do “Territorio de Colonias”. Assim, a Bolívia afirmava, sem refolhos, o propósito em que estava de manter e executar o Contrato, expondo francamente quais os motivos e quais os fins que a induziram a celebrá-lo. Perante o Congresso Nacional Boliviano, reunido em Comissão Geral, em setembro de 1901, para deliberar sobre o aludido Contrato, fez o Sr. Aramayo uma clara e minudente exposição, da qual são os trechos seguintes:

Entre estes encargos, senhores, aprouve ao governo transmitir-me instruções e bases amplas, acordadas em Conselho de Gabinete, em data de 15.03.1900, para a organização de uma companhia que se encar­regasse da exploração e colonização das regiões do Noroeste da República, conhecidas sob a denomina­ção de “Territorio do Acre”, e politicamente demarca­das como Delegação do Purus. Dava-me o Governo autorização suficiente para estabelecer as condições desta negociação, e entre elas a de adjudicar terrenos e seringais à título gratuito, com o objetivo de amparar sua posse e a de promover a colonização e povoamento daquelas terras; a de entregar a administração das alfândegas e a arrecadação das rendas fiscais sob condições adequadas; a de procurar e fomentar a construção de ferro-carris, aberturas de estradas a navegação de Rios; finalmente tudo quanto fora conducente ao desenvolvimento e progresso daqueles territórios, assim como a sua conservação debaixo do domínio da República.

Mais previsoras foram estas instruções, ilustres se­nhores; e, compreendendo seu vasto alcance, me de­diquei com o maior anelo a buscar os meios de pôr em execução os desejos do governo. Várias vezes cheguei a formular Contratos que pareciam viáveis, com diversos indivíduos e corporações da alta finança, e outras tantas vi frustrados meus planos e dissipadas minhas esperanças. Os Estados da América do Sul não oferecem garantias, dizem uns, estão em contínuas revoltas: suas instituições não são estáveis, as indús­trias estão continuamente expostas a novos impostos, cada vez mais arbitrários e caprichosos. A Bolívia está muito sequestrada ([1]), reflexionam outros, são raros não só os que tem conhecimento de seu solo e posição geográfica, como até os que sabem de sua existência. Estas ideias são as que predominam e com as quais se tem que lutar. Quando iniciei estas negociações o Acre estava ocupado por aventureiros, que o declararam República Independente.

Depois da ocupação militar de nossas tropas, veio todavia a grande cruzada organizada em Manaus pôr em prova nossa força de resistência. Em tais condições não era possível organizar nada sério. Quase que não havia a quem recorrer para peleja com o fim de nos restituir o território usurpado. Triunfa­ram, enfim, nossos soldados, marcando uma fase gloriosa, como nenhuma, nos anais da história pátria; estabeleceu-se a Alfândega de Porto Acre, reconhe­ceu-se nossa autoridade e soberania naquele território e acreditei então chegado o momento de fazer um esforço supremo. Circunstâncias excepcio­nais, e verdadeiramente providenciais, puseram-me em contato com um grupo capitalista norte-americano, que já havia tido ocasião de se informar sobre as riquezas naturais que encerra o nosso solo e ajudado pelo prestigioso explorador Sr. Martin Conway, vantajosamente conhecido em nosso país, consegui interessá-los a tal ponto com as minhas informações, que um deles, o distinto advogado da casa Vanderbilt, Mr. Willingford Whitridge, foi delegado para tratar comigo em Londres.

Resultados dessas conferências é o Contrato que o Governo submeteu à vossa consideração. As bases desse Contrato foram formuladas por mim, em consulta com homens experimentados nesta classe de empresas e, em vista das cartas constitutivas de sociedades análogas, como a Companhia das Índias, a Companhia do Sul da África e outras. Procurei alegar todas as condições que, além de resguardar nossa soberania naquelas afastadas regiões, dessem amplo desenvolvimento às suas riquezas naturais.

Consultei a maneira de obter para o Estado a maior renda possível, conciliável com o êxito da empresa. Aquelas bases me ofereceram grande dificuldade; elas foram aceitas no fundo e só exigiram modificações na forma e em alguns pontos Referentes à arbitragem e concessões minerárias, etc., que meu zelo pelos interesses nacionais havia um pouco exagerado.

Formulado o Contrato, o Sr. Whitridge partiu para Nova Iorque, reuniu os membros do sindicato, conseguiu sua aprovação e mandou-me um exemplar assinado, que recebi em Buenos Aires, de onde lhe devolvi um outro exemplar firmado por mim, como havia sido combinado. Tão transcendental me parecia a negociação, honrados senhores, que logo se assen­taram as bases do convênio preliminar, telegrafei ao Sr. Presidente da República, dando-lhe conta dele e pedindo-lhe seis meses de licença para vir pessoal­mente explicar o seu alcance. Um negócio desta magnitude não teria importância se não fosse posto em mãos de capitalistas e empresários de primeira ordem, e se me decidi a prestar-lhe todo o meu apoio e a recomendá-lo eficazmente ao governo, é porque estou convencido de que o “The Bolivian Syndicate” está formado de banqueiros poderosos e de grande prestígio no mundo das finanças, como poderá infor­mar o Dr. Bridgman, Ministro dos Estados Unidos.

Tenho pela minha parte a firme convicção de que estamos preparando neste negócio uma transformação rápida de todo o ser da Bolívia. O Sindicato Boliviano a que me refiro é composto de alguns dos banqueiros mais poderosos ou influentes de Nova Iorque, tais como Twombley e Whitridge, que manejam todos os negócios da família Wanderbilt, B. J. Cross, que representa a firma bancária Bliss & Ciª; Emilio Roosevelt, primo do atual Presidente da República e chefe da casa Roosevelt & Filhos. etc.; Iselin, banqueiro; F. P. Olcott, Presidente da Central Trust Company; Brown, Brothers, banqueiros que na Inglaterra dirigem sob a razão de Brown, Shipley & Comp. Qualquer destas firmas por si tem os meios de dar o capital que este negócio requer, e sem embargo convidaram a Pierpont Morgan e outros capitalistas ingleses, com o propósito de dar a empresa o espírito cosmopolita. É mui provável que, o domínio legal da empresa seja em Londres, e nesse caso se me convidou a tomar assento no diretório em resguardo dos interesses da República.

Trata-se de conseguir que o delegado da Companhia do Acre seja um chefe militar inglês, científico e orga­nizador, que se distinguiu na Guerra do Transvaal. O embaixador americano em Londres, Mr. Choate, consultado sobre o sindicato, declarou que não era possível formar outro mais poderoso. Mr. Hay, Ministro das Relações Exteriores na grande República, em carta dirigida ao Dr. Bridgman disse textualmente o seguinte:

Departamento do Estado – Washington
Caro Dr. Bridgman
Tenho o prazer de recomendar-lhe o Sr. Frederico W. Whitridge, de Nova Iorque, que é interessado no Sin­dicato Boliviano composto dos seguintes cavalheiros:

Mr. F. P. Olcott, do Central Trust & Company;
Mr. Adrian Iselin Jr;
Mr. W. William A. Reid Messers Varmelja & Company;
R. J. Cross, que representa Mr. Jorge Bliss, que era antes sócio de Messers Morton, Bliss & Company;
Messers, Roosevelt and Sons, especialmente Mr. Emilio Roosevelt, que é primo do nosso vice-Presidente;
Messers, Brown Brothers & Company;
Mr. Frederick W. Whitridge;
Mr. K. Twombly;
Mr. John R. Hageman, presidente da Metropolitan Ld. Insurance Company e também;
Mr. Augusto Belmont.
Informam-me de que foi organizada uma companhia sujeita às leis do estado da Virgínia com um milhão de dólares de capital. Pelos nomes que lhe indiquei verá que o sindicato está composto de homens da mais alta posição e de grande fortuna.

Compreenderá que esta carta não é de maneira alguma oficial e que o Governo dos E.U.A. não toma parte em qualquer petição de concessões que estes cavalheiros possam fazer ao governo da Bolívia. Só desejo dar testemunho da alta posição destes cavalheiros, cujos nomes citei e que ficarei muito obsequiado por qualquer conselho que lhes possa prestar.

John Hay.

O Sr. Dr. Fernando Guachala, nosso Ministro em Washington, consultado pelo Sr. Presidente da República, deu-lhe em carta recente as mais amplas e satisfatórias informações sobre o poder do sindicato e a alta posição de seus membros. Graças à influência deste sindicato, podemos, sem dúvida, contar de hora em diante com o apoio moral da Chancelaria Americana em nossas questões, ante o Governo do Brasil, referentes à livre navegação dos rios que dão acesso ao nosso território.

Que direis honrados Srs. representantes, sobre o alcance do plano que havemos traçado? Basta lançar a vista sobre os acontecimentos que se desenrolaram naquelas regiões onde £ 70.000, pelo menos, produziu a alfândega do Acre no último ano financeiro. Tudo se consumiu com a sua defesa e mais de um milhão e tanto de bolivianos arrancados de um orçamento exíguo, com prejuízo dos serviços mais urgentes.

O tributo de sangue nós o havemos pago em proporções alarmantes que confrangem a alma.

Se o resultado desses sacrifícios fosse definitivo, se a posse perpétua daquelas ricas comarcas fosse assegurada, poderíamos nos consolar com a ideia de que a consolidação de um Estado não se pode conquistar sem o sacrifício de vidas e de capitais; examinemos, porém, friamente a situação. Por enquanto ocupamos o Acre.

Manaus se mantém tranquilo porque não conta com aventureiros bastante arrojados para afrontar de novo nossos heróis, por mais que suas forças se hajam exagerado pelo cansaço e pelas enfermidades. O Brasil respeita as tradições honradas de sua chancelaria e se conforma que ocupemos o território que recebemos como nosso por força dos Tratados, mas espera que se há de produzir de novo o conflito e que havemos de ir “motu proprio” ([2]) lhe oferecer o Acre em troca de outras compensações.

O Peru nos ameaça e, vendo que não nos há de vencer, no terreno diplomático, adota o plano de ocupar de fato tanto terreno quanto pode, chegando as suas pretensões até o Madeira. Ainda no Alto Acre se apresentaram expedições que pretendem exercer atos de soberania. Nos afluentes do Juruá existem corregedores nomeados pelo Governo do Peru.

Cada passo que dermos no sentido de fixar nossas alfândegas no Ituxi, no Iaco, no Purus, no Embira, no Tarauacá, que produzem borracha e que são férteis e ricas regiões, há de oferecer um novo obstáculo, quer seja pelos povoadores brasileiros alentados por Manaus, que percebe atualmente os direitos sobre a borracha dessas regiões, quer seja pelo Peru, que pretende direitos de soberania, como tem feito constar o Cônsul peruano Sr. Pezet, em repetidos protestos contra o Sindicato.

Se não mantivermos ali um exército, a ocupação do solo e a percepção das rendas serão ilusórias. E a ninguém se oculta hoje a dificuldade de equipar, transportar e sustentar um exército naqueles longínquos e mortíferos climas. Por conseguinte, a ocupação daqueles imensos e ricos territórios é insustentável com os elementos que atualmente conta o país. Muitos há que, convencidos disso, propõem sua venda ao Brasil, como única solução.

O governo encontrou um meio eficaz, não só de ocupar e defender aqueles territórios, como de com­vertê-los em um centro de prosperidade, em uma fonte importantíssima de riqueza que há de inundar gradualmente todo o resto do país, mediante o estabelecimento de vias férreas e companhias de navegação. O grande movimento de capitais e de energia industrial que se inicia há de marcar indubitavelmente o princípio de uma nova era de progresso para a República.

Não escapou aos legisladores bolivianos o perigo da absorção americana consequente ao arrendamento Aramayo: no parecer do Congresso Nacional é prevista e estudada a hipótese e o relator frisa bem que “entre essa ameaça remota e a perda imediata do território a que a que a Bolívia estaria condenada com as sucessivas revoltas promovidas ou auxiliadas pelos interesses dos brasileiros, não havia que hesitar”.

Em nota ao nosso Ministro das Relações Exteriores, que faz alusão à eventual atitude do Governo dos Estados Unidos de frente à repulsa do Governo do Brasil ao Bolivian Syndicate, o Sr. Page Bryan declarava, em suma, que o Governo Americano não podia ser indiferente aos interesses dos seus nacionais. Entretanto, se desde a publicidade do Contrato não podia restar dúvida quanto aos intuitos do Governo Boliviano, os seus atos e negociações precedentes eram de molde a desviar a vigilância do Governo Brasileiro. Com efeito, o confronto de alguns fatos é expressivo.

Em 12.03.1900 [a 15 do mesmo mês e ano tinha o Sr. Aramayo as instruções para negociar o arrendamento de todo o Território pelo período de 60 anos], o Sr. Salinas Vegas, Ministro Diplomático da Bolívia, celebrava em Petrópolis um Contrato de arrendamento da alfândega de Porto Alonso [então em poder de Luiz Galvez] pelo período de três anos, obrigando-se o arrendatário, como condição para vigência do Contrato, a pacificar o território do Acre “mantendo a ordem e fazendo respeitar a pacificar o território do Acre mantendo a ordem e fazendo respeitar a soberania da Bolívia no Acre e seus afluentes”. Nesse Contrato, de Petrópolis, é ressalvada a hipótese de cessão de território pela Bolívia. “En el caso en que por alguna razón o acuerdo, la Bolivia renuncie espontánea y voluntariamente al territorio de Acre, obliga-se, etc., etc”. O Contrato feito em Petrópolis era, pois, um arranjo preparatório do Contrato Aramayo e aplainaria dificuldades ao “Bolivian Syndicate”.

Por esse tempo também o Sr. Salinas Vegas conferenciava com o nosso Ministro das Relações Exteriores Sr. Magalhães sobre permuta de território na região acreana. Em carta datada de 31.03.1900, positivando ideias expendidas em conferências com o Ministro de Estado do Brasil, o Sr. Salinas Vegas propunha para limite entre os dois países uma linha quebrada, a Leste do Iaco, traçada perpendicular­mente da oblíqua do Tratado de 1857 [linha Cunha Gomes] no paralelo 10°20´. O Ministro das Relações Exteriores do Brasil pretendia outra linha perpendicu­lar mais a Oeste, a qual o representante da Bolívia objetava que ela iria obrigar a criação de duas alfândegas, uma na confluência do Purus com a linha Cunha Gomes, outra na confluência do Purus com o Iaco. Esta negociação não prosseguiu, alegando, em certo ponto, o Sr. Salinas Vegas que não tinha os plenos poderes. Que, se houvesse, porém, levado a termo a projetada permuta – um pequeno trecho de território que tínhamos reconhecido boliviano no vale do Acre, 15 milhas, por cerca de 50 milhas de território nosso no Amazonas – é intuitivo que tal arranjo não resolveria, antes viria piorar a situação.

A maior parte do Acre, cerca de 250 milhas quadradas – a mais produtiva e a mais povoada de brasileiros – continuava boliviana; como boliviano permanecia o trecho abaixo do paralelo 10°20’ igualmente ocupado e explorado por brasileiros. Do que vem exposto resulta que a Bolívia realizava no arrendamento do seu “Territorio de Colonias” uma ideia governamental maduramente meditada e aceita no país.

Outros planos anteriores de colonização particular do Acre já se haviam estudado e resolvido na Bolívia. A última combinação era, sem dúvida, mais vasta e poderosa; não era, todavia, a primeira: em 1880 fora sancionado o Contrato Bravo com a anuência dos diretores políticos da Bolívia.

Para a Bolívia era um ato feito e acabado o arrenda­mento do Bolivian Syndicate. Seriam inúteis junto ao Governo Boliviano quaisquer protestos ou tentativas nossas. E a desesperança de alcançar modificações na execução do Contrato, como já antes falhou a expectativa de ver desaprovado pelo Congresso Nacional da Bolívia seguiu-se aos últimos esforços empregados então pelo nosso Governo.

Escritor bem informado, que em uma série de comunicados ao “Jornal do Commercio” fizera a defesa dos atos do nosso Governo referentes a Questão do Acre, escrevia por fim estas palavras de resignado desalento, que importavam o reconhecimento do fato consumado:

Hoje, que este assunto – o arrendamento – se acha, ao que parece concluído, torna-se preciso que façamos à Bolívia a justiça a que tem direito. É nossa crença que, em circunstâncias idênticas, qualquer outro país teria tido igual procedimento. A Bolívia viu povoado por cidadãos de um país vizinho e mais forte uma parte de seu território.

Sabe que nesse país existem homens de imputabilidade que levantam a opinião no sentido da reivindicação deste mesmo território, positivamente seu, pelo Tratado de 1867 e como tal considerado pela nossa chancelaria desde 40 anos passados. Considera que nesse território fez-se uma revolução que se afirmava ser fomentadas pelo estado brasileiro vizinho. Com grande sacrifício de homens e de dinheiro envia àquelas longínquas paragens duas expedições militares.

Sente-se ameaçada na sua propriedade e vê-se na impotência de fazer face à novas eventualidades. Que fazer? Foi sua inspiração buscar proteção de um país forte, por meio de um contrato com cidadãos desse mesmo país. Persiste a propaganda injusta que se tem feito entre nós e surta ela efeitos positivos, que a Bolívia, ferida em sua impotência, será capaz, não já de arrendar, mas de vender e até fazer doação daquele território a uma nação mais poderosa, cravando-nos destarte um espinho em carne viva.

Poderíamos protestar, alegando pertencer-nos parte desse território; mas essa nação mais poderosa, quando muito, propor-nos-ia o arbitramento, que nos é imposto pela própria Constituição, e neste a nossa perda seria evidente, clara como a luz meridiana. Ato de patriotismo seria, pois, na hora atual, estimularmos o nosso Governo a mandar traçar, o mais breve possível, a nossa linha divisória.

Não poderia ser mais inquietadora a situação pública do país. Era extrema a exaltação dos ânimos irritados pela iminência do arrendamento e manifestavam-se ardorosamente todos os órgãos de opinião. Um brasileiro ilustre na política do país desde o Império, assim se exprimiu em artigo da imprensa:

Confrange o coração o modo como o Governo encara o desastre do Acre. Não afronta a gravidado de uma situação que cria em nossas fronteiras indefesas e no coração do continente sul-americano um Sindicato territorial estrangeiro, à imitação de outros idênticos, estabelecidos no continente sulafricano, de tristes funestas recordações. Não se eleva à altura do dever de dar ao incidente enquanto é tempo a condigna solução que resguarde o mais vasto, o mais rico e o mais indefeso estuário do mundo, como é a região amazônica, e com ela a integridade da Pátria! Ou por­que sentindo o peso das responsabilidades o queira repartir com outros, ou porque dando o desastre por consumado o queira dissimular com impertinentes e irritantes demonstrações, o Governo diverte-se em recordar-nos os antecedentes da Questão do Acre e fazer caretas pueris à Bolívia de mal dissimulado despeito de um logrado, desaconselhando aos brasi­leiros a menor coparticipação no Sindicato e repudian­do o Tratado de Comércio celebrado com aquela República!

Outra e não essa é a questão que agita o espírito público, que preocupa o patriotismo brasileiro, que ameaça e sobressalta toda a América do Sul. Os antecedentes da questão do Acre são assaz conhecidos. Nossos limites com a Bolívia foram fixados pelo Tratado de 1867, ao qual até hoje se não deu execução, e sem essa execução não é possível determinar definitivamente a qual das potências confinantes pertence a região do Acre. As divergências manifestadas pelos comissários brasileiros sobre a nascente do Javari, estavam impondo a necessidade de uma demarcação regular por uma Comissão Mista Internacional.

Em vez desse processo regular para a execução do Tratado, preferiu-se adotar arbitramento, no infeliz protocolo de 1895, o errado Marco Tefé, aliás plantado com o Peru e não com a Bolívia. Reconhecido o erro, o protocolo de 1895 foi substituído pelo não mais feliz protocolo de 1898, que adotou “provisoriamente” a linha Cunha Gomes por fronteira.

Felizmente tais protocolos não se continham no Tratado, virtualmente sequer, não criavam nem suprimiam direitos contra ou além do Tratado de 1867, por cuja execução somente se poderá demarcar definitivamente a linha divisória que, partindo do Madeira, vá ter às nascentes do javari, onde se achassem.

Menos podem criá-los ou suprimi-los simples notas ministeriais infelicíssimas, como foram as duas famosas da chancelaria brasileira, uma relativa à Alfândega de Porto Alonso, outra em resposta à nota de 7 de março, do Ministro boliviano nesta Capital.

O Paiz”, em editorial de 27.07.1902, referindo-se ao ato do nosso Governo, sujeitando à legislação fiscal da União e do Estado do Amazonas as mercadorias procedentes do Acre e retirando de Porto Alonso o Cônsul brasileiro ali estabelecido, escrevia:

Este processo de resolver uma questão delicada como a delimites, depois das declarações feitas pela nossa chancelaria e dos solenes compromissos por ela tomados à face de todo o mundo, não nos parece digno da nossa cultura política e das nossas tradições diplomáticas.

É preciso salientar que, como toda a gente, julgamos ser da maior utilidade para o País que o Acre volte à nossa jurisdição; como toda a gente, entendemos que o Governo do Brasil se deve opor por todos os meios à execução do arrendamento a bem da sua própria integridade, ameaçada por uma vizinhança importuna e usurpadora; mas isso não quer dizer que aprovemos as deploráveis chicanas em que a nossa chancelaria se tem envolvido em desespero de causa; o desembaraço com que o atual Governo repelia a sua orientação e considera nulos atos internacionais, praticados por sua livre vontade, e que já produziram os seus efeitos; e a inconsciência com que por fim se lança em uma aventura séria como essa da renacionalização do Acre por uma simples nota, e que obrigará talvez ao extremo de uma declaração de guerra. (OCS, n° 034)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 14.03.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

OCS, n° 34. O Território do Acre – Resumo Histórico da Questão – Brasil – Cruzeiro do Sul, AC – O Cruzeiro do Sul, n° 34, 03.03.1907.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Sequestrada: isolada.

[2]   Motu proprio: de livre vontade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *