A Terceira Margem – Parte CDV

EPOPEIA ACREANA 

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bolivian Syndicate – I   

Um artigo atual, com o passar dos anos, deixa de ser notícia e passa a ser um documento histórico. (Hiram Reis)

Em cada um de nossos livros recorremos a artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros para reportar a história contada por escritores que tiveram a oportunidade de vivenciar cada um daqueles históricos momentos. Para ressaltar a importância de cada uma dessas gazetas vamos repercutir a notícia de um destes diários muito especiais – “O Cruzeiro do Sul”, fundado pelo Cel Coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo, primeiro prefeito do Departamento do Alto Juruá, cujo lançamento ocorreu no dia 03.05.1906.

“O Cruzeiro do Sul” era um semanário, sendo excepcionalmente editado duas vezes por semana, com um número de laudas que variava de quatro a seis páginas. Num período extremamente conturbado da nova República onde os jornais eram manipulados pelos governantes estaduais de acordo com seus interesses pessoais, como vimos em páginas anteriores, tendo, não raras vezes sido fechados ou incendiados, suas prensas apreendidas e redatores presos, “O Cruzeiro do Sul”, porém, conseguiu manter sua linha editorial livre dessas funestas influências, pelo menos durante a excepcional gestão de Thaumaturgo de Azevedo. “O Cruzeiro do Sul” foi suspenso, definitivamente, por determinação do Ministro do Interior Carlos Maximiliano, em 10 de março de 1918.

O Cruzeiro do Sul, n° 1, 03.05.1906

O Cruzeiro do Sul, n° 1
Cruzeiro do Sul, AC – Quinta-feira, 03.05.1906
Ao Nascer   

Noutros tempos, quando se inaugurava uma povoação, os seus primeiros sinais de vida eram anunciados aos ventos pela construção de um fortim, pelo sinistro levantamento de um patíbulo ou pela criação de um eremitério ([1]). O mundo mudou. Ainda se assentam fortalezas, mas com intuitos meramente defensivos, por mera precaução, e não já para atacar os vizinhos por instinto de rapina e de predileção pelo canibalismo guerreiro; ainda se erguem cadafalsos em países atrasados ou apegados aos processos correcionais da inquisição e do feudalismo, mas já se prefere a prisão educadora à reclusão exclusivamente penitenciária, que acirra o criminoso, em vez de o morigerar ([2]); ainda se edificam presbitérios, mas a carreira eclesiástica deixou de ser um privilégio e os fiéis trocaram os sermões de pregadores fementidos ([3]) pelas conferências livres de espíritos emancipados.

Hoje, com a transformação dos costumes, das instituições e dos conhecimentos humanos, são muitos outros os meios de existência. Antigamente lutava-se a valer pela vida: no estágio atual da civilização cuida-se apenas de trabalhar pela vida. Noutras eras nascia-se e morria-se no fragor de pelejas sangrentas; o triunfo pertencia ao mais feroz. Atualmente nascesse e morresse em plena paz; a vitória cabe ao mais sociável.

Na desordem permanente, grassante nos lares, nos hábitos e nas ideias, consistia a norma das sociedades pretéritas. Não se adiantava: estacionava-se ou retrogradava-se ([4]). A ordem, em que se baseiam os progressos estáveis, é ao contrário o gonfalão ([5]) hasteado pelas camadas sociais do presente. A remodelação foi morosa, mas adquiriu em intensidade e extensão o que perdeu em anos. Só é duradouro, desafiando o perpassar dos séculos, o que se prepara calmamente, sem sofreguidões. As conquistas precipitadas ruem com a mesma facilidade com que se alcançaram. Alexandre e Napoleão caíram tão depressa como subiram, porque foram afogueados. Cromwell e Bismarck fizeram obra para ser contemplada pelas gerações vindouras, porque souberam esperar e perseverar. Devagar se vai ao longe, dizia Pombal. “Toute passe…” ([6])

E as fortalezas e as forcas e as igrejas, tidas e havidas como indispensáveis, essenciais na fundação de qualquer cidade, também passaram. O povo dos nossos dias pede rapidez nos movimentos, luz nas almas, liberdade no pensamento. E assim, ao iniciar a cidade do Cruzeiro do Sul, os marcos inapagáveis que nela se assentam são o jornal, a escola, a eletricidade, ‒ o jornal que orienta e propaga as boas novas, a escola que instrui e disciplina, a eletricidade que ameniza e robustece o trabalho, jornal, escola e eletricidade que ligam os continentes e confrater­nizam as nações, instrumentos inestimáveis de aproximação e de riqueza, de cultura e de pacificação, de tolerância e de solidariedade.

O período que se abre promete-nos uma série infindável de melhorias morais, intelectuais e materiais. Não uma esperança vã a que alimentamos. A realidade, mostrando-nos cometimentos nunca dantes sonhados nestas plagas tão produtivas quanto desajudadas dos aperfeiçoamentos a que tem incontrastável direito, assegura-nos que bastará um lustro ([7]) para este Departamento se modificar fundamentalmente.

Possui-se aqui a matéria prima das ativas rasgadas – a opulência.

Haja sempre na administração superior personali­dades como a que hora nos dirige, inabalável nos seus nobres desígnios, incomparável na ação indefessa ([8]), inexorável na repressão dos transviados, zelosíssima na gerência dos dinheiros públicos, e dentro de pouco o Estado do Acre deixará de ser um projeto querido, para se tornar um fato radioso, igualando a ubertosa Região Acreana, em regalias e progredimento, aos cantões mais felizes da União Brasileira.

O Cruzeiro do Sul, despontando com a garridente cidade que lhe deu o nome, surge aparelhado para uma salutar propaganda valorizadora desta zona e para os debates leais e serenos em prol do departamento do Juruá em particular e do Território do Acre em geral, esperando merecer o apoio da população da região acreana e contando, na exposição das suas legitimas aspirações, que são as de um povo até ontem menosprezado, com o prestigioso concurso de seus prezados confrades de toda a República. (OCS, N° 1)

O Bolivian Syndicate ocupa espaço relevante nas páginas do jornal “O Cruzeiro do Sul”, nas tiragens de número 34, 35, 36 e 37 nos dias 03, 10, 17 e 24.03.1907, sob o título “O Território do Acre – Resumo Histórico da Questão” que, dada a sua relevância histórica, fazemos questão de reproduzir na íntegra:

O Cruzeiro do Sul, n° 34, 03.03.1907.

O Cruzeiro do Sul, n° 34
Cruzeiro do Sul, AC – Domingo, 03.03.1907
O Território do Acre
Resumo Histórico da Questão  

[…] Extraímos este trabalho do Diário Oficial, de 14 de novembro do ano próximo passado ([9]). Eis o resumo histórico da “Questão do Acre”, desde o seu início até a final solução diplomática:

Ao começar o período presidencial, avultava entre as dificuldades de nossa política interna, a todas elas sobrelevando pela própria complexidade, como pela superexcitação a que chegara a opinião nacional, a “Questão Acreana”, que vinha engravescendo ([10]) desde 1899 através alternativas cada vez mais inquie­tantes para a ordem interior do País e talvez para a paz sul-americana. Estavam os brasileiros, habitantes do Acre, pela terceira vez a contar do estabelecimento da alfândega de Porto Alonso, em luta armada contra a Bolívia, cuja soberania, firmada no Tratado de 27.03.1867, apenas, havia conseguido curtos intervalos de autoridade pacífica naquela região.

O último levante em guerra dos acreanos, cujo comando Plácido de Castro assumiu a 06.08.1902, em Xapuri, estendeu-se por toda a vasta zona acima e ao Sul do Paralelo 10°20’, dominando-a inteiramente após o combate da Volta da Empresa, em 14 de outubro, com exceção apenas da povoação denominada Porto Alonso, que afinal, sitiada pelos revolucionários, teve de capitular a 24.01.1903, ficando a alfândega boliviana, ali instalada, em 1899, de acordo com o governo brasileiro, em poder da revolução triunfante. Em consequência destes sucessos o Governo da Bolívia aprestou uma Expedição Militar, que viria submeter os revolucionários e restabelecer a sua autoridade eliminada pela força.

A esse tempo já era lei da Bolívia, promulgada em 21.12.1901, o Contrato Aramayo-Whitridge, assinado em Londres a 11 de junho do mesmo ano, que arrendava ao “Bolivian Syndicate” toda aquela região denominada na legislação administrativa interna da Bolívia “Territorio de Colonias”. Fora a iminência da execução desse Contrato, quando desfeita a esperança de que a, Bolívia abrisse mão dele, que havia levantado em armas a população acreana e exacerbado ao extremo a opinião em nosso País.

Logo que o Ministro das Relações Exteriores, na presidência anterior, teve ciência da existência daquele arrendamento e da sua apresentação ao congresso boliviano, agiu junto ao governo de La Paz no sentido de ser ele rejeitado pelo Poder Legislativo da República vizinha; e aqui, em conferência com o representante diplomático da Bolívia, manifestou o pensamento contrário do governo do Brasil, passando-lhe um memorando que teve esta resposta do Sr. Claudio Pinilla, em data de 09.12.1901:

No tengo conocimiento algún de tal contracto, pero puedo garantir la inexactitud, pues conozco las ideas de mi gobierno e de mi país contrarias a toda enajenación de territorio.

Era essa a linguagem da Bolívia sempre que se falava na devolução do Acre ao Brasil. Aquelas palavras lembravam estas outras de seu antecessor o Sr. Salinas Vegas:

Nunca a Bolívia venderia o seu território.

Seria uma execração.

Não obstante, em dezembro estava aprovado pelo Congresso Boliviano e promulgado pelo General Pando o contrato de arrendamento de toda a região do Acre a um sindicato estrangeiro, ao qual era assinado o prazo de um ano para organização da Companhia.

Não podia ser mais lesivo aos direitos patrimoniais dos brasileiros, primeiros ocupantes e civilizadores daquela região, esse contrato que os entregava indefesos, por meio de processos violentos e iníquos, ao alvedrio ([11]) sem contraste dos arrendatários, e que, por outro lado, encerrava uma ameaça à ordem política continental. Era a implantação na América do sistema dos “charterd companies”, empregadas nas terras da Ásia e da África.

Ao lado do Brasil outros países tiveram também a compreensão de que semelhante contrato, pelas franquias e poderes outorgados, importava em abdicação da soberania, devendo gerar fatalmente complicações perigosas para a América do Sul.

A impressão causada em nosso país foi de verdadeiro pasmo, e em breve a indignação contra aquele arren­damento, que vinha sacrificar milhares de nacionais e perturbar a nossa política geral, repercutia na imprensa, nas sociedades científicas, nas reuniões populares, nas câmaras legislativas, em todos os círculos da opinião. A vulgarização das cláusulas da concessão boliviana, até então imperfeitamente conhecida, veio exacerbar os ânimos, elevando à mais alta tensão a hostilidade geral que desde alguns anos fermentava no país em consequência dos aconteci­mentos que se desenrolaram no vale amazônico.

Nos termos do contrato do arrendamento, a compa­nhia teria durante cinco anos o direito exclusivo de comprar em propriedade todas as terras ou qualquer parte delas, compreendidas no território, com os seringais que não estivessem legalmente adjudicados a outros indivíduos ou companhias [cláusula 2ª], até encerrar-se a legislatura que deliberou sobre o contrato, não poderia o congresso boliviano, sem prévio consentimento do sindicato, dispor ou compro­meter-se a dispor de seringais de terras de espécie alguma e para qualquer fim que fosse, dentro dos limites do território. A companhia [dispõe a “letra D” do memorando anexo] respeitará os atuais legítimos possuidores de terras e exigirá deles que registrem devidamente seus títulos. À companhia, logo que fosse incorporada, eram concedidos todos os direitos sobre minas, ficando suspensa durante o prazo do contrato [30 anos] toda a legislação minerária da Bolívia [cláusula 5ª].

A companhia assumiria o governo civil e a administra­ção do território e teria o poder e autoridade, únicos, absolutos, exclusivos e independentes [cláusula 7ª e 8ª] para arrecadar as rendas, regalias, impostos, direitos e contribuições “e geralmente para fazer administrar, exercer e executar pôr, em vigor, velar e possuir dentro dos limites do território e com sujeição as leis do Estado, todos os negócios, atos, funções, obrigações, direitos, poderes e privilégios de qualquer espécie, que ora competem ou venham a competir ao Governo e que lhe pertençam ou sejam por ele possuídos […] e, o governo transferirá à companhia, pelo tempo da concessão, todas as terras públicas ou do Estado, edifícios, propriedades e direitos de todo gênero dentro dos limites do território. A companhia [letra g] pagaria os salários do delegado nacional e dos juízes e mais empregados nomeados pelo governo, como também as despesas da Comissão de Limites com o Brasil. Se, em qualquer tempo e a juízo do governo, tivesse a companhia de equiparar e manter força armada ou Barcos de Guerra além da Força do Polícia, seriam as respectivas despesas pagas pelo modo que se indica, sendo a Companhia imediatamente embolsada pelo governo”.

Aprovado definitivamente este contrato, isto é, tendo sido ineficaz a ação do Governo do Brasil para o fim de não ser ele realizado, e ainda improfícua a nossa interferência para que o Congresso Boliviano o não aprovasse ou nele fizesse, quando menos, alterações substanciais, intentou por fim o Brasil conseguir modificações na execução do arrendamento, antes de organizada a Companhia. Assim é que, em nota de 14.04.1902, respondendo ao memorando de 1° do mesmo mês, “em que o governo boliviano oferecia ao governo do Brasil a subscrição de uma parte do capital do ‘Bolivian Syndicate’, não excedente a £100.000”, declarou o nosso Ministro das Relações Exteriores recusar o oferecimento, porque “aceitando a participação oferecida, os acionistas brasileiros e o Governo do Brasil, como intermediário oficial, admitiriam como bom um contrato que lhes é prejudicial e se privavam do direito de reclamar contra as suas consequências”.

E fazendo notar que o Contrato Aramayo-Whitridge poucas alterações havia recebido no Congresso Boliviano, remanescendo os inconvenientes apontados pelo Governo Brasileiro em dezembro do ano anterior [1901], acrescentava o Ministro na mesma nota de 15 de abril:

O governo boliviano, confiando à Companhia o uso da Força Militar e Naval, condição essencial de uma soberania real e efetiva, transfere de fato uma parte de seus direitos soberanos [aliás expressamente ressalvados], de sorte que no caso de abuso o Governo Brasileiro se encontraria em frente à autoridade que ele não pode reconhecer e nem reconhecerá. Deste modo a Bolívia encontrar-se-ia em uma situação em que lhe não seria possível salvar as suas responsabilidades com um país vizinho e amigo. A sua personalidade internacional ficaria enfraquecida com essa delegação de uma autoridade soberana.

O Contrato nenhuma precaução toma para evitar, quanto for possível, que a linha divisória seja ultrapassada por propostos da Companhia; apenas diz que ela deve respeitar os Tratados de Limites. Esta recomendação é insuficiente, porque a linha não está demarcada e nestas condições estão desconhecidos no terreno os limites dentro dos quais teria de exercer jurisdição o sindicato.

Um mês depois, a 14.05.1092, o Sr. Claudino Pinilla respondia nos seguintes termos a nota anterior do Ministro de Estado do Brasil:

Acho injustificado o temor de que os atributos e obrigações da Companhia se possam tornar gérmen de dificuldades internacionais.

O Sr. Ministro Magalhães, tratando de fundamentar suas apreensões, diz:

Assim, a Companhia terá o direito de organizar Força Policial, e o Governo, quando julgar conveniente, “lhe permitirá” manter Força Armada e Barcos de Guerra, para a defesa dos Rios, e conservação da ordem interna e outros objetos. Esta última cláusula [acrescenta o Sr. Ministro] dá à concessão, já em si extraordinária, uma amplitude que pode abranger o curso brasileiro dos Rios e ocasionar atos de hostilidade.

O Sr. Ministro há de permitir-me expressar-lhe que a possibilidade remota de um dano não pode justificar a exclusão de atos em si mesmos inocentes. Na existência da humanidade tudo é suscetível de um perigo: o comércio que radica entre nós interesses estranhos, a colonização, que cria núcleos do população estrangeira: o crédito, que nos obriga diante de financeiros e capitalistas poderosos, etc …, e não obstante isso, ninguém consideraria judicioso repudiar o comércio, a colonização e o crédito, porque contém o gérmen de dificuldades que se podem tornar internacionais.

Afora isto, desejo chamar a atenção ilustrada do Sr. Ministro para a seguinte circunstância:

Quase todas as estipulações do Memorando, anexo ao Contrato, são regras de economia administrativa e entre as “obrigações” que se impõem à Companhia estão as de prover e manter sob a supervigilância do Delegado Nacional uma Força suficiente da Bolívia para a proteção dos habitantes do indicado território, e para manter a devida obediência às leis da Bolívia [Item C. do Memorando].

A Guarnição Militar será sempre boliviana.

As Forças de Polícia auxiliares da Administração Nacional que a Companhia tem a obrigação de prover e manter estarão debaixo da, supervigilância do Delegado e “se em qualquer tempo [acrescenta o Contrato] surgir, a juízo do Governo, a necessidade de que a Companhia mantenha uma Força Armada ou Barcos de Guerra para a defesa dos Rios, ou conservação da ordem interna, ou outro objeto, em adição à Força Policial antes referida, as despesas que estas ocasionarem serão também retidas e pagas dos 60% que correspondem ao Governo”.

É pois, o Governo quem julga da conveniência de aumentar suas Forças: a Companhia quem provê os fundos para sua sustentação, como agente financeiro do Governo, a cargo das rendas deste e que devem reembolsar aquela. Não é um direito da Companhia a organização destas Forças, porém uma obrigação que contraiu para mantê-la e equipá-la. Assim explicado o sentido das estipulações supraditas, penso que desaparecerá o temor de que elas possam ocasionar atos de hostilidade.

A Bolívia não é um país agressivo. Seu constante empenho tem sido o de marchar de acordo e harmonia com o vosso ilustrado Governo, e por isso concordou com todas as suas exigências, quer para definir a fronteira em 1867, quer para demarcá-la até hoje. Firme nessa linha de conduta, espera que a mútua consideração que se devem dois povos amigos e vizinhos lhe indicará sempre o caminho da retidão e da harmonia.

O Contrato de que me tenho ocupado não é uma medida do momento, de aplicação imediata e único, é um convênio de vastas proporções, que irá se desenvolvendo, à medida que as circunstâncias o indiquem.

Destinado a regular as relações do Governo com a Companhia em um lapso regular de tempo, promovendo o desenvolvimento do país para assegurar sua tranquilidade, contém estipulações de previsão que podem ou não ter efeito, segundo os acontecimentos.

Uma dessas é o aumento da Força Pública e o equipa­mento de vasos de guerra. Se como espero, a Bolívia e o Brasil, no interesse da sua própria tranquilidade e em benefício do comércio e da indústria dos seus habitantes, adotarem as medidas necessárias para impedir que do território de uma se vá perturbar a ordem pública da outra nação; que aventureiros irresponsáveis cometam depredações contra o comércio internacional em suas águas territoriais, pode estabelecer-se que nunca se necessitará de elementos de Forças Navais ou Terrestres para garantir a vida e a propriedade dos habitantes.

Mas, se por desgraça, aquelas eventualidades possí­veis se realizarem, a Bolívia, no cumprimento do dever capital que têm todos os povos que vivem na comunidade do direito, estaria obrigada à defesa e segurança dos interesses acolhidos à sua bandeira. Para essa hipótese, ela tratou de se habilitar, impondo à Companhia a obrigação de ministrar-lhe os meios eficazes de desempenhar o seu dever internacional. As forças organizadas deste modo, debaixo da res­ponsabilidade e direção do Governo, seriam sempre respeitosas dos direitos e atributos do Brasil. O perigo suposto pelo sr. Ministro é, pois, mui remoto e estimo que em sua alta probidade assim haja de reconhecê-lo. Meu governo, longe de cometer um ato censurável, prepara-se para cumprir seus iniludíveis deveres e o desta nação que recorda que “o Acre é dependente em todas as suas relações do Brasil” seria olhar com simpatia os esforços da Bolívia para garantir a vida e os interesses dos seus nacionais ali residentes.

Esse Contrato corresponde à ideia de impulsionar seriamente o processo material da região, arrancando-o do Estado embrionário em que até hoje se encontra. Tratasse de aproveitar suas naturais riquezas, para a fazer entrar na economia boliviana como elemento de atividade. O propósito do governo é o de atrair para ali as correntes fecundas do capital e do esforço civilizador da imigração, a exemplo das demais nações da América, e espera que o inteligente e progressista Governo que rege os destinos deste povo não quererá obstruir o desenvolvimento a que aspira um país, por tantos motivos a ele vinculado, obrigando-o a enlanguescer no abandono e no esquecimento.

Se, para alcançar tão altos fins, outorgou a Bolívia concessões, mais ou menos amplas, no uso de seus direitos de povo livre e independente, a apreciação de sua conveniência é função de ordem constitucional interna que escapa à competência de poderes estranhos por mais vinculados que estejam a seus vizinhos. As francas e sinceras explicações que antecedem manifestam que a Bolívia não “delega sua autoridade soberana a funcionários irresponsáveis”. A Administração Nacional há de se exercer em todos os ramos por seus legítimos representantes, de tal maneira que, como já disse em outro documento, e julgo conveniente reiterá-lo aqui, meu Governo, consciente de manter íntegra a sua soberania, se considera o único responsável dos atos praticados pelas autoridades que ele nomeia e constitui em seu território e aceita a obrigação de resolver todas as reclamações que se lhe dirijam, por abusos ou faltas daquelas.

Neste empenho considerar-me-ia muito feliz, se pudesse levar ao ânimo do Sr. Ministro a segurança de que meu Governo, não transfere do de nenhum modo parte alguma de seus direitos soberanos, assim como a força pública será supervigiada e regida pelo Delegado Nacional, que é autoridade superior da região.

Nas sensíveis emergências desses assuntos do Acre [há de me permitir o Sr. Ministro], mais de uma vez as autoridades inferiores do Brasil se consideraram habilitadas para contrariar a política honesta e justiceira da União. Meu Governo se viu em frente de elementos obstrucionistas e não pensou sequer por um momento que a personalidade internacional do Brasil ficava debilitada em termos que escusavam a inteligência de ambos os governos.

Quanto ao mais, qualquer dificuldade que se possa apresentar, o que não é de esperar, será removida conforme o remédio radical que o Sr. Ministro indica, efetuando a demarcação da fronteira, ou para melhor dizer a locação dos Marcos Divisórios, como a Bolívia o tem solicitado há vários anos. Assim, cada um conhecerá à simples vista o que lhe pertence e o poderá explorar tranquilamente em benefício do comércio e da indústria.

Impugnar o Contrato Aramayo pela anormal situação que cria em um território não limitado, e não limitá-lo por causa deste mesmo Contrato, é colocar a Bolívia em uma situação sem saída, que o ilustrado Governo desta República não quererá certamente perpetuar, à custa de um país que foi sempre bom amigo do Brasil. (OCS, N° 34) (Continua…)

 

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 11.03.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

OCS, n° 001. Ao Nascer ‒ Brasil ‒ Cruzeiro do Sul, AC ‒ O Cruzeiro do Sul, n° 001, 03.05.1906.  

OCS, n° 34. O Território do Acre Resumo Histórico da Questão – Brasil – Cruzeiro do Sul, AC – O Cruzeiro do Sul, n° 34, 03.03.1907.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Erimitério: convento.

[2]   Morigerar: educá-lo e ensiná-lo.

[3]   Fementidos: falsos.

[4]   Retrogradava-se: retrocedia-se.

[5]   Gonfalão: estandarte, de três ou quatro pontas pendentes, sob o qual se alinhavam, na Idade Média, os vassalos convocados pelo suserano.

[6]   Toute passe: Tudo passa.

[7]   Lustro: quinquênio.

[8]   Indefessa: incansável.

[9]   1906.

[10]  Engravescendo: agravando-se.

[11]  Alvedrio: bel-prazer.

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