Os quelônios, como as tartarugas e os tracajás, têm sido alvo de caça e exploração ilegais, colocando em risco a sobrevivência das espécies e desencadeando um desequilíbrio ambiental. O projeto Pé-de-Pincha, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) com a parceria do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), procura conscientizar os ribeirinhos do norte do Brasil, a partir das comunidades eclesiais, com ações de proteção dos quelônios: inclusive predadores já viraram voluntários ativos
A carne e os ovos dos quelônios da Amazônia, como de tartarugas e tracajás, são apreciados pelo homem e fazem parte da alimentação dos ribeirinhos como importante fonte proteica sobretudo em época de seca dos rios. Mas o comércio ilegal não atende esse consumo de subsistência, mas a venda em grandes centros urbanos da região, como em Manaus, Santarém, Belém e Tefé. São os traficantes de quelônios, assim, que ameaçam a extinção dos animais com a caça predatória, além do habitat deles que também está sendo destruído.
Uma iniciativa desenvolvida nos Estados do Amazonas e do Pará tem procurado sensibilizar sobre a proteção e conservação dessas espécies, salvando-as dos predadores. Trata-se do projeto ambiental voluntário Pé-de-Pincha, um programa de manejo comunitário de quelônios da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em parceria com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) que, ao longo de 22 anos de atividades, já devolveu à natureza mais de 6 milhões de filhotes de quelônios numa área de abrangência de 122 comunidades de 18 munícipios, sendo 15 do Estado do Amazonas e 3 do Pará.
Conservação e manejo comunitário das espécies
Os quelônios são répteis representados, por exemplo, pelas tartarugas marinhas ou de água doce. Esses animais são facilmente reconhecidos por apresentar uma carapaça, um tipo de concha óssea que ajuda a se proteger de predadores. Atualmente existem mais de 250 espécies. A nossa história tem como protagonista uma espécie local de tartaruga, os “bichos de casco”, como são chamados na região, popularmente conhecidos como tracajás que podem viver até 90 anos. São animais pequenos, ovíparos, que põem em média de 15 a 30 ovos a cada reprodução. Geralmente fazem buracos nas margens dos lagos, camuflando o ninho com lama e folhas. E é aí que os ribeirinhos, voluntários e parceiros do Projeto Pé-de-Pincha são envolvidos para salvar a espécie.
Criado em 1999 na cidade de Terra Santa, no Pará, para proteger o Lago Piraracá da invasão de barcos e das grandes redes dos pescadores, o Pé-de-Pincha envolve as comunidades em todas as etapas do processo, após treinamento técnico oferecido pela universidade: identificam as covas, monitoram e coletam os ovos no habitat natural, transferem os ninhos das áreas ameaçadas àquelas protegidas, num tipo de berçário, de chocadeira improvisada dentro da areia e próxima às casas dos moradores – onde os filhotes crescem o suficiente para não virar presa fácil. Depois de nascer, são soltos nos lagos com muita festa das comunidades.
Nilcinha de Jesus Amaral Ferreira, agente ambiental voluntária, conta que chegam a se deslocar às 3 da manhã para procurar os ovos com as caixinhas de isopor embaixo do braço. Assim como ela, cerca de 28 mil pessoas fazem parte do Pé-de-Pincha, o que significa que em 88% de todas as áreas protegidas de quelônios existe algum envolvimento comunitário, fazendo do projeto um dos maiores de voluntariado em toda a Amazônia. Uma transformação que começa dentro de casa, se estende aos amigos, às paróquias e às escolas, até conscientizar os próprios predadores, explica Nilcinha.
“Como o meu marido: ele era um dos predadores e hoje é o maior preservador desta área e conscientizador do povo. Ele vestiu a camisa mesmo!”
“A gente percebeu e procura mostrar para a comunidade, que como se faz a preservação e o manejo do quelônio, pode-se fazer também com os peixes, com as plantas. E, assim, já amenizamos as queimadas e o desmatamento, além da extração de madeira local.”
A Igreja é parceira histórica do projeto
Já o professor Paulo Cesar Machado Andrade, da Universidade Federal do Amazonas, que coordena o Pé-de-Pincha, explica que além da parceria com a instituição que todo ano capacita novos alunos para trabalhar no programa, a Igreja tem um papel fundamental, histórico e permanente desde o início da iniciativa, na déc. 90, quando conseguiu alcançar o máximo de comunidades possíveis para trabalhar na proteção dos tracajás.
O que se criou com o programa foi “uma ponte, um elo de articulação para se poder discutir todos os problemas ambientais encontrados na região, buscando alternativas sustentáveis de geração de renda”, explica o professor. Isso porque o Pé-de-Pincha trabalha na conservação dos recursos naturais, mas também na sensibilização ambiental das comunidades, pelo desenvolvimento sustentável “que não seja só ecologicamente correto, mas viável do ponto de vista econômico e socialmente justo”. Além disso, o Pé-de-Pincha também forma professores na área de educação ambiental das escolas rurais através de “um projeto de pesquisa e ação comunitária de monitoramento participativo”. Uma visão de se trabalhar integralmente as questões ambientais, como pede o Papa Francisco:
“A gente acredita que existe um profundo elo com aquilo que foi manifestado pelo Papa Francisco na encíclica Laudato si’. Não apenas ver o animal, o rio, a árvore como um elemento solto dentro da natureza, mas sobretudo fazendo parte de uma cadeia muito maior que permite manter a vida no planeta através dessa visão mais integral entre cada um dos elementos que envolvem a natureza, o homem e a sua cultura.”
A ecologia da vida quotidiana na Amazônia
“Essa também é a nossa contribuição para o meio ambiente”, comenta Nilcinha, considerada uma “semeadora de quelônios” do Projeto Pé-de-Pincha, ao reforçar o pensamento do Papa sobre a necessidade de se “melhorar globalmente a qualidade de vida humana” através dos ambientes onde vivemos que “influem sobre a nossa maneira de ver a vida, sentir e agir” (Laudato si’ 147). Nilcinha acredita que inclusive a pandemia acabou direcionando para a reflexão que ela mesma faz: “quem somos e o que estamos fazendo com o próprio ser humano e em relação também com o meio ambiente?”. E o professor Paulo acrescenta:
“Um projeto que iniciou num cantinho escondido da Amazônia e aos poucos foi crescendo e encontrando caminhos, parceiros que pudessem ajudar, comunitários extremamente dedicados que abraçam o trabalho, alunos que enriquecem com alegria as ações mesmo diante de tantas situações conflituosas com relação ao meio ambiente. O Pé-de-Pincha sempre procurou trabalhar com alegria pelas coisas do criador. E é isso que nos impulsiona. E é isso que nos faz nos desdobrar para procurar atender a cada um daqueles que nos procuram. Essa é a nossa missão, não só ser um programa de conservação, mas procurar atender, dar ouvidos e voz àquelas comunidades ribeirinhas que nos procuram e procurar ajudar a nossa mãe terra com cuidado nas coisas da criação.”
Andressa Collet – VATICAN NEWS