A Terceira Margem – Parte CCCLXXX

Epopeia Acreana

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Manifesto dos Revolucionários Acreanos – III

O Cruzeiro do Sul, n° 009
Cruzeiro do Sul, AC ‒ Sábado, 07.07.1906
Manifesto dos Revolucionários Acreanos
(Continuação) 

Esses, alucinados pelo erro ou pela idolatria, cognominam-se fanáticos. Mas os Revolucionários do Acre, cujos intuitos se abroquelam ([1]) na razão da História e nas convenções do Direito, não venderam ainda as suas retinas e claras, nem tão pouco se deixaram obcecar por falazes aparências. Os Rebeldes Acreanos, se insistem no termo, entremostrarão o fanatismo da Pátria! E esse é belo como as auroras, puro como as vestais, inatingível por ditérios ([2]), inatacável por desconchavos ([3]).  

V – A Comissão Boliviana  

O fato da ida da Comissão boliviana a Puerto Alonso merece uma narração circunstanciada. A Comissão foi chefiada pelo falecido Sr. Ladislau Ibarra, em razão de se haver dado em Manaus o passamento do Delegado Pedro Kramer. Esta Comissão pacífica, que seguiu no Manaus, principiou por armar em guerra este vapor.

No Acre, onde se achava já praticando as maiores arbitrariedades o detestado Capitão Antônio Leite Barbosa, comandante geral das armas bolivianas, este renegado fardou quatro brasileiros com o uniforme da Bolívia. Foram presos, ao mesmo tempo, cinco portugueses, sendo forçados a vestir a farda boliviana. O navio Rio Acre foi preso nesta ocasião, por se ter avisado de Manaus que ele ia fretar-se à gente da Bolívia. O comandante deste vapor, Sr. Neutel Maia, enchera o Acre de boatos aterradores.

Em 12 do janeiro, tendo à sua frente o Coronel Antônio de Souza Braga, as forças acreanas travaram combate com “Manaus”, hasteando neste vapor e na cidade a bandeira do Acre.

Os primeiros pelotões militares foram comandados pelos Coronéis João Passos de Oliveira e Hipólito Moreira. É bom frisar, antes de prosseguir, que o Coronel Braga tinha mandado a bordo um parlamentário, que se viu obrigado a recuar, sendo morto pela Comissão boliviana um dos tripulantes da montaria. Esta barbaridade inaudita é que decidiu o definitivo rompimento. A Comissão tinha transportado para bordo do “Manaus” tudo quanto havia encontrado na cidade do Acre, no momento desabitada ‒ mercadorias, artigos de farmácia, armamento, etc. ‒ arrombando as malas das poucas pessoas que estavam na capital.

O Cel Braga ordenou que revertessem esses furtos aos seus primitivos lugares e legítimos proprietários. Os guerrilheiros do Capitão Leite, brasileiros, aderiram aos acreanos, sendo preso e sentenciado e vendido, ‒ que declarou estar ao serviço da Bolívia, por lhe ter prometido esta comprar o seu Seringal “Humaitá”, por dois mil contos. Este simples traço caracteriza a Bolívia e os seus defensores.

O boliviano Romualdo de la Peña, membro da Comis­são, oficiou ao Presidente Braga que não mais hos­tilizaria a independência do Acre e o comandante Vinhas, do “Manaus”, escreveu que todos os abusos e vexames se deviam ao Capitão Leite. No Seringal deste, que foi tomado, apreenderam-se 80 rifles e 32 cunhetes de bala, além de sacos com munições, fardas e bonnets ([4]) bolivianos. Estes sucessos, juntos ao ameaçador decreto do estado de sítio, no qual se anunciava o fuzilamento dos patrióticos chefes do movimento acreano, demonstravam à evidência que a Comissão “pacífica”, calcando as regalias dos cidadãos brasileiros, desejava impor-lhes a ferro e fogo o seu domínio sanguinário. Os insurretos tinham bem patente aos seus olhos o pelourinho que o Sr. José Paravicini fizera levantar em Puerto Alonso, quando a desídia ([5]) diplomática o levou a inaugurar naquele local uma Alfândega ilegalíssima e atentatória da soberania da República Brasileira. Essas e outras saudosas recordações é que induziram a receber à bala os intrusos, que pretendiam decepar o tronco aos nacionais, depredar os haveres alcançados com tantos sacrifícios e povoar de bolivianos a riquíssima zona. O patriotismo segredava-nos que expulsássemos esses algozes. Assim o fizemos, com coragem e nobreza!

VI – A Visita do Jutaí   

De há muito tempo se noticiava a partida para o Acre do aviso de guerra “Jutaí”, sob o cominando do Sr. Capitão-Tenente Raimundo Valle, Vice-Cônsul brasi­leiro em Puerto Alonso. Chegaram, finalmente, ordens positivas do Governo Federal e o barco seguiu ao seu destino, sem talvez saber a missão que ia desem­penhar.

O “Amazonas Comercial”, de Manaus, inspirado pelo Cônsul da Bolívia naquela cidade, e que desde a missão Paravicini tem defendido a ocupação boliviana, infamando os homens que se acham na vanguarda revolucionária do Acre, os quais todos têm muitíssimo que perder, aventou a emergência de ser aprisionado pelos revoltosos o “Jutaí”, visto conduzir uma diminuta guarnição. Os irmãos do comandante Vale quiseram mesmo responsabilizar o ilustre Capitão do porto pelos desastres que pudesse haver.

Mas todas estas conjecturas não passavam de graciosas, não obstante a publicação de uma carta imprudentíssima do 1° Tenente Pina Júnior. O temor dos Srs. Dr. Domingos Vale e Enéas Vale afigura-se-nos muito justo. Outro tanto não sucedia, contudo, no jornal aludido, que só tinha em vista alvoroçar o Brasil com o lançamento desairoso daquela atoarda ([6]) comprometedora. Esta gazeta, cujas simpatias inconfessáveis pela Bolívia foram registradas no volume “O Rio Acre”, de Serzedello Corrêa, tem malsinado os intuitos bons da Revolução Acreana, desconceituando-se na sociedade manauense, porque todas as suas fantasias de órgão boliviano hão sido desmentidas, desde os crimes irrogados ([7]) a Luiz Galvez à descrição mentirosa dos sucessos de Riozinho.

A mais recente e solene refutação às caluniosas afirmações do “Comercial”, que alguns jornais do Pará impensadamente reproduziram, reside nas festas estrondosas com que o aviso “Jutaí” foi recebido. O Coronel Hipólito Moreira, que a elas assistiu, certifica-nos de que o Navio de Guerra brasileiro foi aclamado entre delirantes vivas à armada brasileira, tendo o aviso saudado o Governo do Estado Independente do Acre com um tiro de canhão, que foi galhardamente correspondido pelas descargas do Exército Acreano, enfileirado em terra. Em seguida, visitando a cidade, no meio do frenético entusiasmo dos habitantes, o comandante Vale retirou-se para Antimarí ou Floriano Peixoto, onde tem cobrado os emolumentos ([8]) do seu vice-consulado, aliás arbitrariamente, porque a ninguém apresentou as suas credenciais.

Este é o documento caloroso de que os acreanos estão prontos para submeter-se a qualquer autoridade brasileira. O Brasil que mande para o Acre um único representante, um só, seja ele qual for, e os rebeldes sujeitar-se-ão sem objeções às suas ordens. Consente, por outro lado, que subam pelo Amazonas os usurpadores bolivianos, ainda que vão aos milhares, acompanhe-os com a sua força, retire-se depois, porque não é tutor de nação alguma, e verá que nas pinturescas ([9]) ribeiras do Acre, como o Sr. Ibarra disse poeticamente, no Decreto do Estado de Sítio, não ficará à sombra de um fantasma do berço do negregado ([10]) Melgarejo ([11]), ‒ porque os acreanos querem ser brasileiros e não tolerarão que o Brasil os obrigue a reconhecer outra Pátria!

VII – Os Interesses da Amazônia   

Concordamos em que são sensíveis as complicações sobrevindas ao comércio amazônico, mas não tantas como os alvissareiros alugados à Bolívia supõem.

A pendência resolver-se-á nos gabinetes diplomáticos ‒ e melhor será assim, porque os insurretos não estão dispostos a ceder um palmo do seu território, nem um ápice das suas prerrogativas. As verdadeiras conse­quências mas, as únicas para temer, efetivamente estupendas, adviriam da paralisação dos negócios comerciais. Essa lamentável interrupção, que a força das circunstâncias impôs, embora não se prolongasse e fosse mais originada pela dificuldade dos transportes do que pelas determinações da Junta Governativa, germinou em toda a Amazônia um começo de crise. A falta de borracha, que é em grande parte colhida naquela fértil região, cobiçadíssima pelos abutres norte-americanos e bolivianos, alastrou um transtorno deveras notável. Sentimos, por todos os motivos, este obstáculo passageiro das duas importantes praças do Norte, que estão sofrendo o que há pouco magoou a Bahia [Motim de Canudos] e não há muito molestou o Rio Grande do Sul [Revolta dos Federalistas]. Estes contratempos mínimos são naturais, todavia, apoia­mos os que se lamentam desta quebra nos seus interesses, da qual participamos por igual. Mas acaso o ideal desta Revolução comparar-se-á aos fins inclassificáveis dos promotores daquelas sedições condenáveis? Porventura o proceder patriótico dos acreanos pode semelhar-se aos distúrbios fomentados pelos jagunços o pelos maragatos? Não valerá a pena, em verdade, suportar um abalo econômico financeiro transitório, a bem do pundonor pátrio, manchado pela ousadia boliviana. Pertencemos ao número dos que entendem que a Pátria é credora de todas as imolações no seu altar augusto. Quem se não sacrifica pela sua Pátria é incapacíssimo de possuir um sentimento bom. E o comércio tem proporcionado cabais provas de que sabe aguardar com calma e prudência os acontecimentos, certo de que os seus pequenos prejuízos de hoje, se existem, terão amanhã uma rasgada compensação. (OCS, n° 009)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 12.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

OCS, n° 009. A Questão do Acre – Brasil – Cruzeiro do Sul, AC – Jornal O Cruzeiro do Sul, n° 009, 07.07.1906.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Abroquelam: fortalecem.
[2]   Ditérios: zombarias.
[3]   Desconchavos: tolices.
[4]   Bonnets: casquetes, bonés.
[5]   Desídia: desleixo.
[6]   Atoarda: boataria.
[7]   Irrogados: infames.
[8]   Emolumentos: impostos.
[9]   Pinturescas: pitorescas.
[10]  Negregado: amaldiçoado.
[11]  Manuel Mariano Melgarejo Valencia: militar e político boliviano. Foi presidente da Bolívia de 28.12.1864 a 15.01.1871. Como Ditador perseguiu tenazmente seus opositores e despojou os indígenas de suas terras. Passou grande parte de sua gestão reprimindo rebeliões intestinas.

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