A Terceira Margem – Parte CCCXXXV

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  3ª Parte – XLIII

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Pousada Rio Roosevelt ‒ Aripuanã – III  

Relatos Pretéritos 

22.04.1914 

‒ Relata Rondon ‒ 

22.04.1914 – Às 11h30 de 22, terminados os trabalhos de varação das canoas, prosseguimos a viagem. Desse ponto para baixo tínhamos de lutar contra alguns obstáculos importantes, tais como a cachoeira da Glória, que exige um varadouro por terra com a extensão de 528 m, e a do Inferninho. Mas, apesar desses embaraços serem agravados pelo mau estado de saúde do Sr. Roosevelt, que mal se podia suster sobre a perna doente. (RONDON)

‒ Relata Cherrie ‒ 

22.04.1914 – Outro dia satisfatório apesar de navegarmos apenas 15 km. Inicialmente passamos nossos três barcos pelos Rápidos “Inferninho”, carregamos e partimos. Para nossa grande surpresa e prazer, fomos capazes de passar os Rápidos da Glória sem problemas. O restante do dia foi bom e sem incidentes.

23.04.1914 

‒ Relata Roosevelt ‒ 

23.04.1914 – No outro dia, percorremos cerca de 50 km, fazendo o Rio uma longa curva para Oeste. Encontramos meia dúzia de batelões que subiam, cada um com uma tripulação de seis ou oito homens, dois deles levando também mulheres e crianças. Os tripulantes usavam compridos varejões com ganchos na extremidade, ou melhor, forquilhas de pau servindo de ganchos. Com estes enganchavam os ramos e impeliam o batelão Rio acima, tocando-o também a varejão onde o fundo permitia. O Rio era tão caudaloso como o Paraguai e o Corumbá, mas, em contraste frisante com o Paraguai, muito poucas aves aquáticas se viam. Descemos uma corredeira aliás bem forte, a do Inferninho, pela manhã, mas sem descarregar as canoas. À tarde, desembarcamos para pernoitar em uma grande casa aberta, espécie de rancho, onde havia dois ou três porcos, a primeira criação viva que encontrávamos, além de galinhas e patos. Era um lugar sujo, mas obtivemos alguns ovos. (ROOSEVELT)

‒ Relata Cherrie ‒  

23.04.1914 – Excelente dia, cobrimos 49 km. Avistamos e adicionamos diversas aves hoje ‒ Anhinga, night hawk ([1]). Nosso ponto de paragem tinha muita sujeira e lama, os porcos, cães e galinhas disputavam um lugar. O Coronel Roosevelt está melhor. (CHERRIE)

24.04.1914   

‒ Relata Roosevelt ‒  

24.04.1914 – Descemos cerca de 50 km, até o Rápido Carapanã, que Lyra verificou estar a 07°47’ S ([2]). Encontramos vários batelões no percurso, e as casas das margens indicavam que os moradores dispunham de recursos mais amplos do que os da parte mais alta. Na corredeira, havia uma grande casa de comércio, propriedade do Sr. Caripé, o mais abastado seringalista que trabalhava naquele Rio […]. Foi muito gentil e hospitaleiro e nos deu uma boa canoa para substituir nossa última canoa de proa quadrada. Sua casa ampla e arejada era fresca, limpa e confortável. (ROOSEVELT)

‒ Relata Cherrie ‒ 

24.04.1914 – Mais um dia de sete horas de curso ameno. Chegamos às 15h30 depois de percorrer um trajeto de 55 km. Paramos na Barraca de quem pode, com toda razão, ser chamado de “Rei” dos seringueiros do Rio Roosevelt (ex‒Rio da Castanha). (CHERRIE)

25.04.1914 

‒ Relata Cherrie ‒ 

25.04.1914 – Nossa jornada hoje foi de apenas 11 km, mas enfrentamos uma longa série de corredeiras, incluindo três transportes da bagagem e um arrasto das canoas por terra. Acreditamos que este será o nosso último carregamento de canoas por terra. O cão “Triguero” de Kermit foi deixado para trás em uma de nossas paradas. Ele provavelmente foi ao mato e ninguém notou quando ele não voltou para as canoas com a gente. É provável que seja encontrado por algum dos seringueiros que cruzam o Rio para sangrar as seringueiras. (CHERRIE)

26.04.1914 

‒ Relata Rondon – 

26.04.1914 – Pela manhã de 26 de abril deixamos o nosso acampamento de Samaúma, na lat. austral de 7°40’55,6” e long. O do Rio de 17°2,4’22”, continuando a descer o antigo Castanha. Atravessamos a cachoeira da Galinha, com as canoas descarregadas, em seguida a das Araras, inteiramente submergida nesta ocasião, como em todas as estações de chuvas. Pouco depois passamos pela Foz do Igarapé ‘‘Do Ouro”, assim chamado por se acreditar ser ali o lugar de uma jazida de areias auríferas há anos secretamente explorada por um negro africano, que aparecia com esse metal e o vendia a certo português, negociante do Aripuanã. Prosseguindo a viagem, às 1 hora da tarde chegamos ao ponto de confluência do Rio que vínhamos navegando, com o Aripuanã, que descia de Sudeste.

Ali encontramos acampados, esperando-nos desde 21 de março, o Tenente Pyrineus, com a sua turma auxiliar composta de seis pessoas.

Ten Antonio Pyrineus de Souza

A esse lugar chegara a turma embarcada em canoas, visto não lhe ter sido possível transpor com o aviso “Cidade de Manaus” a cachoeira de Matamatá, distante dali uns 7.900 metros. Havia 59 dias que partíramos da ponte da Linha Telegráfica, com a nossa flotilha de sete canoas, sulcando as águas do Rio cujo nome resumia todas as indecisões resultantes do mistério do seu curso e da região desconhecida por ele atravessada. Nesse tempo percorremos 686.360 metros, dos quais os primeiros 276.000 foram tão ásperos e hostis que, para os vencer, tivemos de lutar durante 48 dias seguidos, sem nos deixarmos abater por nenhuma fadiga, nem pelos transes dolorosos que amarguraram os nossos corações e por instantes abismaram as nossas almas na contemplação da insondável fatalidade das cousas da nossa vida. Chegávamos ao fim dessa penosa travessia, quase todos doentes e esgotados de forças. O eminente chefe da Comissão Americana, depois do insulto palustre, sofrido na cachoeira do Paixão, nunca mais recobrara a saúde de que dantes gozava.

O seu filho, Kermit, estava também bastante combalido dos demorados acessos de febre que o atormentaram por muitos dias, em seguida ao acabrunhador trabalho de varar as canoas naquela cachoeira. O Ten Lyra e o Sr. Cherrie tinham tido longos padecimentos gástricos, e os homens das equipagens, atacados de febres e esmagados de cansaço, apresentavam-se todos enfraquecidos e com certeza estariam literalmente derrotados se não fossem da tempera dos nossos admiráveis caboclos e sertanejos. Mas a alegria de vermos o feliz êxito que tiveram os nossos esforços e trabalhos, realizados sempre com a esperança de alcançarmos este prêmio, fazia-nos esquecer todas as atribulações passadas, e, acalmado o alvoroço do encontro, só num ponto permitia concentrarmos a atenção: queríamos, de um relance, avaliar a importância dos resultados que acabávamos de obter. (RONDON)

‒ Relata Roosevelt ‒ 

26.04.1914 – Pelo meio da tarde, transpusemos a última corredeira perigosa. Os remos foram manejados com energia, [Cherrie e Kermit trabalhavam tanto quanto os Camaradas] e as canoas seguiram dançando pela volumosa e rápida torrente. A floresta equatorial chegava de cada lado até à beira d’água. E, embora o nível do Rio já estivesse descendo, ainda se achava tão elevado, que em muitos pontos pequenas ilhas encontravam-se submersas, e as águas corriam por entre troncos de árvores copadas. Às 13h00, atingimos a Foz do Rio da Castanha, onde avistamos as barracas do Ten Pyrineus, tendo à frente, desfraldadas, as bandeiras dos Estados Unidos e do Brasil; e com as carabinas a salvarem das canoas e da praia, encostamos no barranco do acampamento asseado e bem cuidado, de feição militar.

O Alto Aripuanã era Rio mais ou menos do mesmo volume que o Rio da Castanha, porém mais largo que este, e provavelmente mais curto. Naquele ponto, se juntava ao Rio da Castanha, vindo de Leste, formando o que os seringueiros chamavam o Baixo Aripuanã. A Foz deste último estava indicada nos mapas, e, algumas vezes, trazia seu nome, mas somente como um Rio pequeno sem importância. Tínhamos viajado de canoa, de 27.02.2014 a 26.04.2014. Percorrêramos 750 km (!). Desde as cabeceiras, pela altura do 13°S, até o ponto onde se tornava navegável e nele entramos, o Rio tinha um curso de 200 km – talvez mais, 300 km –, provavelmente. Por consequência, havíamos incluído no mapa um Rio de quase mil quilômetros de comprimento, cuja existência não só era desconhecida, como também impossível, se os mapas oficiais estivessem certos. Mas isso não era tudo. Parecia que aquele caudal de quase mil quilômetros era realmente o verdadeiro curso superior do Aripuanã, caso em que o curso total atingia 1.500 km (?).

Pyrineus esperava-nos havia cerca de um mês, na junção dos Rios a que os seringueiros chamam Rio da Castanha e Alto Aripuanã. Não podia ele saber em qual deles apareceríamos, nem se por qualquer deles viríamos. A 26.03.2014, medira o volume dos dois, e verificara que o Rio da Castanha, embora mais estreito, era mais profundo e correntoso, excedendo em volume de 84 metros cúbicos, por segundo, ao Aripuanã. […] Ficamos muito alegres por encontrarmos Pyrineus e por nos acharmos em seu acampamento. Quatro horas de Rio abaixo nos levariam ao povoado ribeirinho de São João, um porto de escala das gaiolas, as maiores das quais vão a Manaus em dois dias. O maior número daqueles pequenos vapores pertencia ao Sr. Caripe.

Por Pyrineus, soubemos que Lauriadó ([3]) e Fiala tinham chegado a Manaus a 26.03.1914. Nas águas encachoeiradas da garganta do Papagaio, a canoa de Fiala virara, perdendo ele todos os seus objetos, tendo ele por pouco escapado de morrer. Senti verdadeira satisfação ao saber que o valente e distinto rapaz se salvara. A canoa canadense se portara muito bem. Tivemos não menor alegria ao saber que o Chefe da Expedição que descera pelo Ji-Paraná também se achava a salvo, embora sua canoa se tivesse emborcado nas corredeiras, perdendo ele todos os seus instrumentos e notas. Chegara a Manaus a 10.04.2014. Fiala havia regressado à Pátria. Miller estava colhendo espécimes nas proximidades de Manaus, realizando trabalho de capital importância. As piranhas eram ferozes no lugar onde estávamos e ninguém se podia banhar. Cherrie, quando em pé na água, junto à praia, foi atacado e mordido, mas de um salto ganhou o seco, antes que sofresse maior mal. Dormimos pela última vez em barraca no acampamento de Pyrineus. Chovia a cântaros. (ROOSEVELT)

27.04.1914 

‒ Relata Rondon ‒ 

27.04.1914 – No dia 27 de abril, no acampamento do Tenente Pyrineus, próximo à Barra do Aripuanã, eu, como Chefe da Comissão Brasileira, inaugurei a nova placa comemorativa da mudança dos antigos nomes de Dúvida e Castanha, para o de Rio Roosevelt, tal como já vinha fazendo em todos os lugares notáveis de nosso percurso, a partir da Foz do Kermit. A cerimônia dessa inauguração quis assistir o ilustre homenageado; e apesar disso lhe custar grandes sofrimentos, provocados pelo esforço exigido da perna doente, veio colocar-se de pé ao lado do marco inaugural, comungando assim mais uma vez com os pensamentos de fraternidade internacional e com os sentimentos de amizade e de consideração pessoal que nós, os que tivemos a satisfação e a honra de ser os seus companheiros de trabalho durante a dificílima travessia, queríamos por aquele ato externar. […]

Terminada a cerimônia da inauguração da placa indicativa da nova denominação do Rio, o Sr. Roosevelt, acompanhado dos outros membros da Comissão Americana e do Dr. Cajazeira, tomou as canoas e dirigiu-se para o lugar onde estava fundeado o aviso “Cidade de Manaus”. Eu e os Tenentes Lyra e Pyrineus deixamo-nos ficar no acampamento, para realizarmos as medições dos Rios, e à noite fazermos as observações astronômicas necessárias ao cálculo da latitude e da hora. (RONDON)

‒ Relata Roosevelt ‒  

27.04.1914 – De manhã, nos reunimos junto ao marco que o Cel Rondon fizera erigir e onde leu a Ordem-do-Dia, destacando o fato de havermos nós, explorando e investigando, descoberto que o Rio, cujo curso superior fora denominado Dúvida nos mapas da Comissão Telegráfica, e cuja maior parte acabáramos de percorrer; que o Rio conhecido por alguns seringueiros por Rio da Castanha, e cuja parte inferior era pelos mesmos chamada Aripuanã [que não figurava nos mapas, salvo pela sua Foz algumas vezes indicada, porém, sem indicação de seu curso] eram todos partes de um único mesmo Rio. Por decisão do governo brasileiro, passava a ser denominado Rio Roosevelt, e que era o maior afluente do Rio Madeira, com suas nascentes próximas do 13°S, e sua Foz pouco ao Sul do 05°S, absolutamente ignorado dos cartógrafos e em grande parte ignorado por quem quer que fosse, salvo pelas tribos locais de índios.

Deixamos Rondon, Lyra e Pyrineus fazendo suas observações astronômicas e embarcamos pela última vez nas canoas. Conduzidos sem abalos pela corrente veloz, passamos uma série pouco importante de corredeiras e rumamos ao pequeno povoado do Sr. Caripe, de nome São João, onde chegamos às 13h00 de 27 de abril, exatamente antes da queda de um pesado aguaceiro. Tínhamos percorrido cerca de 800 km durante os 60 dias que passáramos nas canoas.

Ali encontramos o vaporzinho fluvial de Pyrineus e nele nos instalamos; e todos achamo-lo confortável ao extremo. Na aprazível residência do proprietário, foi-nos apresentada sua esposa, mostrando-se ambos mais que atenciosos e generosos em sua hospitali­dade. Só tínhamos pela frente a perspectiva de 36 horas de viagem até Manaus. Uma excursão como a que fizéramos era uma prova de fogo. (ROOSEVELT)

Observamos, nitidamente como o cansaço, a doença, a alimentação inadequada e a pressão psicológica foram minando pouco a pouco a capacidade de discernimento do Naturalista Cherrie. A dificuldade de entender o idioma levou-o a achar que Rondon teria sido capaz de dar uma ordem que ele reproduziu, mais tarde no seu “Dark trails: adventures of a naturalist”:

‒  Rondon: Teremos de abandonar as canoas e seguir, cada um por si, pela floresta.

Cherrie estarrecido escreveu:

‒  Cherrie: Para todos nós aquilo era praticamente uma sentença de morte.

A partir daí o tratamento respeitoso que Cherrie tinha para com Rondon e seus atos ruíram como um castelo de cartas.

Cherrie deixa de tratá-lo de Coronel, quando menciona seu nome junto ao de outros membros da Expedição, coloca-o por último na relação e contesta suas decisões de forma veemente nos seus escritos, afora isso o diário é mais uma das peças importantes que se tem para aquilatar o hercúleo esforço destes indômitos desbravadores.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 01.11.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.   

Filmete  

https://www.youtube.com/watch?v=OQcTRq9sYnY&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=31   

Bibliografia  

CHERRIE, George Kruck. Dark trails: Adventures of a Naturalist ‒ USA ‒ New York ‒ G. P. Putnam’s Sons, 1930.

RONDON, Cândido Mariano da Silva. Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição Roosevelt‒Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.

ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Night hawk: bacurau-norte-americano ‒ Chordeiles minor.

[2]    07°47’ S: 07°50’43”S / 60°57’57”O.

[3]    Lauriadó: Tenente Alcides Lauriadó de Santana.

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