A Terceira Margem – Parte CCCLV

Epopeia Acreana   1ª Parte – VII

Correio da Manhã n° 117, 03.02.1904

Mangabeira por Múcio Teixeira – III

Cidade do Rio, n° 64 ‒ Rio de Janeiro, RJ
Sexta-feira, 10.12.1897
VI    

Os versos citados nos artigos precedentes falam mais alto que os mais retumbantes adjetivos do meu sincero entusiasmo pelo vigoroso talento de Francisco Mangabeira. Este admirável rapaz está destinado a ostentar sobre os ombros dragonas de comando, na fileira dos mais galhardos Capitães da nossa moderna legião literária. É original e é fecundo, como já ficou demonstrado. Além disso, é espontâneo e musical, correto e emancipado.

A sua estreia vai ser um verdadeiro sucesso: ele surgiu inesperadamente, de capacete de plumagens e armadura de aço, arrastando bizarramente as suas esporas d’oiro de cavaleiro valente e enamorado, com ares do paladino medieval, que vibra a guzla ([1]) dentro dos castelos, depois de haver terçado armas vitoriosas em prol e na ausência da castelã bem amada.

É um poeta de pura raça, com força bastante no pulso para vibrar em alto diapasão todas as cordas da grande lira de Castro Alves; o qual, por singular coincidência, morreu na mesma rua onde nasceu este futuro continuador das suas glórias. Francisco Mangabeira é também um prosador distinto, caprichoso na forma, obedecendo rigorosamente às imposições filológicas, timbrando por moldar os diamantes brutos da inesgotável jazida dos clássicos vernáculos, com o buril dos modernos artistas da palavra cinzelada.

Não conheço o seu último trabalho em prosa, escrito durante, os cinco meses que passou o poeta nos hospitais de sangue de Canudos, a trágica cidadela do recôncavo baiano. Mas, ainda saturado da intensa poesia do seu outro livro em prosa ‒ “Santa Thereza de Jesus”, não trepido em antecipar-lhe o meu juízo favorável.

O volume “Santa Thereza” é talhado pelos mesmos moldes da “Be Kiss”, do vigoroso chefe do simbolismo em Portugal, Eugênio de Castro, e que acaba de ser vertida em castelhano pelo argentino Berisso. Nele refletem-se os êxtases da Poetisa Santa, que amava ao seu doce Jesus com misticismo de freira e volúpias de espanhola.

O perfil da sublime apaixonada das claustros tem um quê da encantadora imagem de “Be Kiss” “a que ao trepar ao monte adormecera sobre uma almofada de anacampsero ([2]), flores do sortilégio, que despertam paixões mais violentas que o Mar e mais volúveis que o vento”; a “Be Kiss”, a desdenhosa bem amada do velho e opulentíssimo Nadar, – que procurava aquela que o deixaria pálido como uma opala.

Essa rainha de Sabá, que fazia lembrar a Sulamita do “Cântico dos Cânticos”, a namorada virgem do pastor, que resistiu ao Rei Poeta, o sábio voluptuoso, e em cujo coração se escondeu, toda vestida do medo, enquanto seus desejos morriam de frio… como leõezinhos sobre a neve, parecendo em sua melancolia que sobre o seu coração caiam folhas secas. Que ostentação de pedraria! Estranha flora e rara fauna de pompa viridente e luxuriante. Antes, porém, de por aqui o ponto final, não resisto à tentação de oferecer aos leitores da “Cidade do Rio” uma das mais recentes poesias do meu jovem amigo e confrade. As seguintes estrofes foram quase improvisadas, isto é, escritas no meu gabinete, pouco antes do jantar, no dia em que um do meus queridos filhinhos completava três anos de idade. Ei-las:

Choro e Riso
(Francisco Mangabeira)
*   Ao Menino Manuel Lopes Teixeira   * 

Quero umas rimas sonoras,
Iluminadas, sutis,
Como os teus olhos, se choras,
Como os teus lábios, se ris. 

Tenho certeza que moras
Num encantado País,
Metade do dia – choras,
Na outra metade – ris. 

Já me disseram que adoras
Esses tesouros gentis,
E eis a razão porque choras…
E eis a razão porque ris…  

De quando em vez te alcandoras ([3])
Aos celestes alcantis ([4]).
Sorris… e eu penso que choras.
Choras… e eu penso que ris.  

Se calado te demoras,
Meu peito ansioso te diz:
– Estrela, porque não choras?
– Criança, porque não ris?  

Serafim, tu revigoras
Os teus pais, a quem Deus quis
Abençoar – porque choras.
Santificar – porque ris! 

O teu choro sabe a ([5]) amoras
Teus lábios são bogaris ([6]);
Tua mãe vê o céu choras…
Teu pai vê Sol – se ris. 

E Eles, que não têm auroras
Dos corações infantis,
Choraram – como tu choras,
Sorriram – como tu ris.  

Se eu visse as aves canoras
Pipilando no matiz
Dos prados, quando choras,
Voando, quando ris; […]  

As flores murchas – coloras,
Fazem – que voem répteis…
Quando, criança, tu – choras,
Criança, quando tu – ris.   

Conversas com Deus… namoras
Princesas, fadas, huris….
O mundo ri – quando choras
E eu canto – quando tu ris.  

Só peço nestas sonoras
Rimas que sejas feliz:
Que chores – como hoje choras…
E rias – como hoje ris!  

Nada mais direi a respeito, do belo talento de Mangabeira. Num dos próximos números da “Revista Brasileira” publicarei. Alguns fragmentos do poema “Hostiário”, que considero a sua obra prima; e por aí o público julgará das aptidões do novo poeta.

Chamo, porém, desde já, para este nome a mais pronunciada atenção dos meus ilustres amigos, J. Veríssimo, Araripe Júnior, Sylvio Romero e Eunápio Deiró, os grandes mestres da crítica nacional, para a cada um deles sobra competência para dizer se eu tenho razão em prever no aparecimento do Mangabeira o despontar de um astro de primeira grandeza no vasto azul do nosso armamento literário. (CDR, n° 64)

Correio da Manhã, n° 966‒ Rio de Janeiro, RJ
Quarta-feira, 03.02.1904
Francisco Mangabeira  

Uma lutuosa notícia publicamos hoje no serviço telegráfico desta folha. Vindo do Acre para onde em março do ano passado seguira arrastado pelo indomável entusiasmo da sua alma de poeta e de moço, daquela região maldita onde a todo barracão de seringueiro faz contraste o tosco cemitério em que repousam as vítimas de sonhos ingênuos e de cobiças irrefreadas, Francisco Mangabeira sucumbiu ao impaludismo que é o apanágio inevitável e o companheiro inseparável de todos os que se arremessam para aquela terra amaldiçoada de desolação e de morte.

Vítima desse mesmo sonho e dessa mesma moléstia implacável há quatro anos a morte feria em plena mocidade um outro poeta de musa galharda, Frederico Rhossard. A Francisco Mangabeira, ao Tyrtheu ([7]) da Guerra de Canudos, ao lírico suave, penetrante, sugestivo do “Hostiário” o destino reservou a mesma sorte de outro grande poeta brasileiro. Como Gonçalves dias ao aportar à terra saudosa e dileta, ao Maranhão glorioso que lhe dera o berço, ‒ Francisco Mangabeira sorriu pela última vez ao céu do nosso Brasil, pela última vez iluminou-o o raio fugitivo que Goethe agonizando invocou, em vista da pátria doce e gentil de tantos nobres espíritos, da terra que inspirou a lírica do autor do “I-Juca-Pirama” e cuja história João Lisboa imorredouramente contou. Shelley e Nievo, dois grandes poetas, morreram assim, tragicamente, em pleno mar, também!

Mangabeira morre jovem como o seu adorado Castro Alves e si o seu nome não desperta os mesmos entusiasmos do cantor das “Espumas Flutuantes”, a morte que arrebata o autor do “Hostiário” priva o Brasil de uma individualidade literária, de um temperamento poético cuja floração madurecida e completa teria assegurado à sua obra uma glória nunca menor da do seu ilustre patrício.

Era médico e logo depois de formado fora para o Amazonas exercer a sua profissão. O governo de Manaus confiou-lhe várias missões especiais de que deu conta brilhante e satisfatoriamente. Em dezembro de 1902, regressara à sua Bahia, onde permanecera até março de 1903. Não tinha mais de vinte e quatro anos e o seu inesperado e dramático desaparecimento da cena do mundo enche-nos de profunda tristeza e de dolorosíssima estupefação. (CDM, n° 966)

O Paiz, n° 7.071‒ Rio de Janeiro, RJ
Quarta-feira, 17.02.1904
Norte do Brazil
[Do Maranhão Janeiro 1904]
A Morte de um Poeta que Deixa Nome 

Faleceu a bordo do vapor do Lloyd “S. Salvador”, ao entrar no nosso porto, vindo do Amazonas, o Dr. Francisco Mangabeira, autor dos valiosos livros “Hostiário” e “Tragédia Épica”.

Francisco Mangabeira veio ao Maranhão, há três anos atrás e, durante meses, serviu como médico num dos vapores da flotilha da Companhia Maranhão, tendo-se mudado depois para o Amazonas, onde clinicava. Atacado de forte impaludismo dirigia-se à sua gloriosa Pátria, a Bahia, a procura de melhoras no seio da sua estremecida família.

O Maranhão abriu sete palmos da sua terra para receber os despojos sagrados do poeta baiano que, segundo nos informou um passageiro do mesmo vapor, agonizou recitando versos. Ainda havia poucos meses que Mangabeira, de volta a uma visita que fizera à sua terra querida, estivera entre nós a expor-nos planos de suas obras futuras.

Mal ele sabia que a sua volta o Amazonas, onde se ofereceu a prestar os seus serviços médicos às tropas mobilizadas no Acre, era o término da sua existência! Mangabeira tinha 24 anos de idade. Morreu, como viveu, cantando como um passarinho… Entre os médicos e literatos desta capital vai ser aberta uma subscrição com o meritório fim de erigir-se no cemitério municipal um mausoléu para ser recolhido os restos do infortunado poeta conterrâneo de Castro Alves. (O Paiz, n° 7.071)

O Rio Amazonas I
(Mangabeira, 1906)  

De onde vem esta voz frenética e atroante
Que parece escapar do peito de um gigante,
E, rasgando do espaço o ilimitado véu,
Espalha-se a gritar por todo o vasto céu,
Após ter abalado a mata, a costa, a serra,
Como se acaso fosse o desabar da terra?

De onde vem ela? Agora é branda, a recordar
Um segredo de amor, nos campos, ao luar;
O gorjeio sutil de um pássaro encantado
Que, contemplando o azul, fica maravilhado,
Entreabre o bico de ouro e, quase sem querer,
Solta um canto que faz a gente estremecer.

Por acaso será de algum gênio escondido
Cujo palácio escuro, amplo e desconhecido,
Inda o não viu ninguém ‒ esta esquisita voz,
Tão rude e tão sutil, tão meiga e tão feroz?
Porque anseia, curvado e tremulo, o arvoredo,
A maneira de leões a tiritar de medo?

Assim pergunta a brisa, ouvindo com terror
Um grito que se muda em cântico de amor.
Não achando resposta o vento em ânsia estranha,
Cresce, incha, rodopia, as árvores assanha,
Ergue nuvens de pó, torna-se furacão,
E é um doido a sacudir os ferros da prisão.

O espaço é um antro azul, imenso, esplendoroso,
E por ele o tufão agita-se furioso,
Raiva, fugindo à voz que entre explosões e ais
O acompanha, e é maior, e o aterroriza mais.
É o Rio que, a rolar, canta e ruge, violento,
Respondendo talvez às perguntas do vento,
Que se amedronta, ouvindo-o.

O Rio é como um rei
Que nas árvores tem uma formosa grei
De pajens triunfais e olímpicas escravas,
A que o Sol dá broquéis ([8]), capacetes e aljavas ([9]).
Inda há pouco rolava, estourando em cachões,
Na queda… A luz do dia arrancava clarões,
Incêndios imortais, estrelas, pedrarias
Do tesouro real de suas águas frias…

A cachoeira gloriosa era o espelho do Sol,
Refletindo-se nela, às horas do arrebol.
Das águas a cair uns trêmulos salpicos
Ficam a rutilar ([10]) como adereços ricos
Nas folhas de esmeralda, apresentando assim
Pérolas e corais em cofres de cetim,
A modo de brilhante e esplendido debuxo ([11])
O mato a revestir de um espantoso luxo.

Depois ‒ era uma encosta ‒ e ele, tonto, desceu,
Desviando um filete incendiado, que deu
Um gemido tão vago, um suspiro tão doce
Que uma ave se ocultou humilhada… e calou-se.
É que o gigante, sempre indômito e revel ([12]),
Mandava um fio de água a trêmulo dossel
De flores, e ela então, louca, ficou pingando,
Como um pranto a rolar das flores soluçando… […]

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 29.11.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

Bibliografia  

CDM, n° 966. Francisco Mangabeira – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Correio da Manhã, n° 966, 03.02.1904.

CDR, n° 64. Um Novo Poeta Baiano – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Cidade do Rio, n° 64, 10.12.1897.

O PAIZ, n° 7.071. Norte do Brazil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ O Paiz, n° 7.071, 17.02.1904.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]   Guzla: instrumento musical semelhante ao violão, de apenas uma corda, típico dos povos eslavos dos Balcãs.

[2]   Anacampsero: gênero de plantas da família das portulacáceas.

[3]   Alcandoras: guindas, alças.

[4]   Alcantis: píncaros, cumes.

[5]   Sabe a: tem gosto de.

[6]   Bogaris: jasmins.

[7]   Tyrtheu: poeta lírico grego do século VII a.C.. Seus cânticos de guerra, incentivavam a coragem espartana, conduzindo-os à vitória por ocasião da Segunda Guerra Messênia.

[8]   Broquéis: escudos redondos e pequenos.

[9]   Aljavas: estojos onde se guarda e transporta as flechas.

[10]  Rutilar: brilhar.

[11]  Debuxo: primeiros traços de uma pintura.

[12]  Revel: rebelde.

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