A Terceira Margem – Parte CCCIV

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XII

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Os Cinta-Larga I 

O grupo, originalmente, usava uma larga faixa confeccionada da entrecasca de tauari ([1]) que lhes cingia a cintura e, por isso, os regionais passaram a denominá-los Cinta-Larga codinome que foi adotado pela Fundação Nacional do índio (FUNAI). Na verdade sob a denomina­ção de Cinta-Larga foram aglutinados três grupos distintos, que possuem língua e cultura semelhantes, autodenominados Kabã, Kakin e Mã. As Terras Indígenas (TI) Cinta-Larga, Zoró e Suruí estão inseridas no Parque Indígena (PI) Aripuanã localizado no Leste do Estado de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso somando uma área total de aproxima­damente 2,8 milhões de hectares. A FUNAI criou, no último decênio do século XX, quatro TI adjacentes dentro do território ocupado pelos Cinta-Larga – PI Aripuanã, Área Indígena (AI) Roosevelt, AI Serra Morena e AI Aripuanã cuja população está distribuída em 33 aldeamentos., Fany Pantaleoni Ricardo, em “Povos indígenas no Brasil”, relata:

Questão Cinta-Larga 

Até o final dos anos 1960, os Cinta Larga, ocupavam [e dominavam] uma área de 4,5 milhões de hectares entre os Rios Roosevelt e Aripuanã, repleto de riquezas historicamente exploradas por seu valor de mercado: primeiro como uma província seringueira, depois mineral, depois madeireira e hoje ambas.

Foi com seringueiros e garimpeiros que invadiram seu território que os Cinta-Larga contataram os “zaryj” [civilizados], em uma região pródiga em borracha, ouro, diamante e madeiras nobres. Os Cinta-Larga observaram que esses inimigos tinham as cobiçadas ferramentas de metal, sobretu­do machados e terçados ([2]), já que no começo desprezavam e não viam utilidade nas espingardas. Justamente aí tem início a “Questão Cinta-Larga”, na divulgação regional e nacional das riquezas minerais em suas terras e da sua antropofagia, noticiadas na imprensa nos anos 1960. A FUNAI somente chegaria à região após essas notícias, alguns anos depois de a maioria dos grupos locais Cinta-Larga do Aripuanã e do Roosevelt terem contatado garimpeiros e visitado a estação telegrá­fica de Vilhena. As primeiras ações desses funcioná­rios foram justamente as de expulsar os “amigos garimpeiros” e tomar o lugar deles, inclusive insta­lando-se em suas casas, dando aos Cinta-Larga as tão desejadas ferramentas – além de remédios e sementes.

Os funcionários do órgão indigenista ([3]) passaram, pouco depois, a organizar a vida aldeã, convocando os Cinta-Larga para o trabalho na roça, no corte de seringa e outras atividades cotidianas, de modo a concorrer com o próprio “zapivaj”, como é chamado o chefe da aldeia. No fim dos anos 1980, críticas e ameaças contra a “mesquinhez” da FUNAI se tornaram regra entre os Cinta-Larga que foram sendo transformadas em indi­ferença ao longo desta última década. Por essa ra­zão, os Cinta-Larga substituíram a FUNAI pelos “ami­gos madeireiros”, os novos doadores de ferramentas – e moradias, estradas, Toyotas e L200 ([4]).

Quando a FUNAI deixou de se comportar “no registro de zapivaj”, deixando de concorrer com os verdadeiros donos da casa, tudo voltou como antes na ordem sociopolítica Cinta-Larga. Assim, a iniciativa dos contratos de madeira, se no começo dessa atividade [1986-1988] passava pelos funcionários da FUNAI, foi completamente assumida pelos “zapivaj” de todas as aldeias quando esses funcionários foram afastados e aqueles que entraram tinham como postura predominante o “não se meter”.

Liberar” a exploração de madeira ou garimpo para “pegar dinheiro”, visando atender suas necessidades atuais de bens e serviços [como moradias, saúde, educação] – dado que a FUNAI, falida, não os propiciava, “como no começo fazia” – passou a ser a regra dominante da economia política dos Cinta-Larga. (RICARDO)

Progressivamente a cobiça desenfreada pelos recursos naturais na TI Cinta-Larga passou a contar com a participação efetiva e ostensiva de funcionários da FUNAI que contavam com o beneplácito dos mais altos escalões do órgão pseudo-indigenista.

As máfias ligadas à exploração madeireira e garimpo passaram a fazer uso de “contratos” estabelecendo como moeda de troca com os líderes indígenas corruptos e corruptores, todo o tipo de mercadorias, caminhonetes e dinheiro vivo ‒ fruto da participação nos “lucros” que pretensamente dariam respaldo às invasões e outros atos ilícitos.

Desde então o patrimônio cultural, moral e natural dos Cinta-Larga foi sendo sistematicamente dilapidado.

A mídia atual criminalizou o povo Cinta-Larga descurando, como é do seu feitio, das atrocidades que este povo sofreu por décadas até que os Governos Militares ao assumirem as rédeas da nação resolveram dar um basta. Em 1967, foi instaurada uma Comissão de Inquérito, pelo Ministro do Interior, General Afonso Albuquerque Lima, e presidida pelo Procurador Jáder de Figueiredo Correia (Ministério do Interior – Processo n° 4.483/68), para investigar as irregularidades e crimes cometidos por agentes do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Retrocedamos, reproduzindo duas excelentes reportagens da “Revista O Cruzeiro”, de 1968 e 1972, para que possamos entender o contexto histórico e as origens da “Questão Cinta-Larga”.

O Cruzeiro, n° 19 – Rio de Janeiro, RJ
Sábado, 11.05.1968

O Cruzeiro, n° 19, 11.05.1968

A Morte Como Destino   
[Reportagem Francisco Dias Pinto /
Fotos de Douglas Alexandre, Hugo Góes
e O Cruzeiro]

O Cruzeiro, n° 19, 11.05.1968

No planalto de Vilhena, região da fronteira de Mato Grosso com Rondônia, verdadeiras cidades de palha, construídas quase da noite para o dia, estão surgindo. Quem primeiro as viu foi um pastor protestante americano, que há algum tempo as sobrevoou. O fato, a princípio, não despertou maior atenção, mas os interessados no problema indígena ficaram curiosos e resolveram estudar o assunto. E chegaram a uma triste conclusão: as cidades foram construídas pelas tribos do planalto [algumas, inimigas tradicionais há muito tempo], que se coligaram para poder sobreviver aos choques com as frentes de civilização que estão explorando minério de cassiterita na região. No início, a notícia teve apenas uma repercussão local. Mas o sacerdote americano, que esteve recentemente no Rio, procurou o jornalista Queiroz Campos, que atualmente dirige a recém-criada Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e comunicou o fato. Tão logo ficou ciente, o Ministro do Interior designou Francisco Meirelles, um dos nomes mais conhecidos do indigenismo brasileiro, para que fosse a região e fizesse um relatório.

Francisco Meirelles

O sertanista está de volta e o relatório já foi entregue. Os resultados das observações são trágicos: área de cinco mil índios, de diversas tribos, esperam, coligados e em sobressalto, o fim das chuvas e o início da baixa das águas dos rios, quando as veredas, caminhos e picadas secarão e ficarão transitáveis, por elas vindo o branco, integrante da “frente de civilização”, em busca de minério, na terra que outrora pertencia ao índio, agora em luta desesperada para conservar os últimos pedaços que lhe restam.

O Ministro Albuquerque Lima já tomou as providências para que os choques sangrentos não voltem a ocorrer. Ao mesmo tempo que rumores de que a França, apoiada por países socialistas, estaria disposta a denunciar o Brasil na Conferência de Teerã, pelas mortes de índios, divulgadas na imprensa mundial. No distante planalto, mais de cinco tribos esperam que as chuvas acabem e que sua sorte seja decidida. A terra onde mora o índio é inaproveitável? Suas riquezas não podem ser exploradas enquanto ele ali permanecer? Quem responde é o sertanista Francisco Meirelles:

É perfeitamente possível o aproveitamento da terra sem o sacrifício do seu habitante natural. O índio, em seu estado tribal e autêntico, nas reservas ou parques, deve ser aproveitado para os trabalhos que está habituado a realizar e bem a caça, da qual se origina toda uma indústria extrativa de peles de animais silvestres, a extração de castanha, madeiras de lei, caucho [um tipo de borracha]. Este tipo de aproveitamento é um dos únicos que não provocam muitos choques com o branco. Isto porque ele está saindo de uma forma de vida nômade, com uma economia baseada no sistema primitivo de coleta para um estágio mais elevado de produção, então é necessário que se lhe dê uma atividade que esteja de alguma forma ligada ao tipo de trabalho que sempre realizou para subsistir.

Para isso, têm a palavra os cientistas de um modo geral, economistas, antropólogos, etc, que podem estruturar um método mais racional e humano, de aproveitamento do índio. No caso da extração de alguns minérios, ainda não foi descoberto um meio de aproveitamento direto do índio. Mas isto não quer dizer que ele tenha que sair obrigatoriamente da região, para que ela possa ser minerada. Em nosso ponto de vista, paralelo ao trabalho branco, o índio poderia ir desenvolvendo todas as suas atividades normais [caça, pesca, agricultura], ajudando, inclusive, a resolver o problema de alimentação da frente.

Quanto ao lucro do minério tirado, seria pago ao índio um royalty, o que seria justo, uma vez que ele é o proprietário da terra. Isto ainda não está se verificando, por vários motivos. Um destes era o desinteresse que tinham nossas autoridades em encontrar uma solução ideal para o problema de sobrevivência do índio e, principalmente, desinteresse e ganância das frentes, que só querem, na realidade, se apossar das terras produtivas. Pela primeira vez, em minha vida de serviços prestados ao índio, vejo um Ministro [General Albuquerque Lima] realmente interessado em resolver o problema. Para os outros ministros que conheci nos meus trinta e cinco anos de serviço, o índio era um estorvo e um entrave a sua administração.

A DENÚNCIA 

Tenho a honra de acusar o recebimento de seu aviso verbal, Confidencial e Urgente n° 20, de 29 de março último, relativo à próxima Conferência de Direitos Humanos e à possibilidade de discussão naquele conclave do tratamento dispensado às populações tribais, no Brasil. Em resposta, apraz-me esclarecer que o encaminhamento do problema, no Brasil, em confronto sobretudo com situações congêneres em outros países, só pode fortalecer, no exterior, a imagem brasileira, no que respeita à democracia racial. Com efeito, os pretensos crimes de genocídio praticados contra índios brasileiros não passam de conflitos muito mais violentos na história de outros povos, entre a cobiça da civilização sem humanismo e a propriedade do silvícola, desequipado mental e materialmente para defendê-la.

Este é o trecho inicial de um relatório contendo informações que o Ministro do Interior, General João Albuquerque Lima, enviou recentemente ao Ministro Magalhães Pinto. Estas informações servirão de base para a defesa que o Brasil terá que apresentar na Conferência de Direitos Humanos, a se realizar brevemente em Teerã, na Pérsia, caso venha a ser acusado, como especulam alguns observadores internacionais, pela França, apoiada por países do bloco socialista. Até o momento, nenhuma confirmação de fonte oficial foi feita. Entretanto, o jornal francês “Le Monde”, além de outros matutinos europeus, vem, ultimamente, atacando sistematica­mente o Governo do Brasil, com relação aos proble­mas dos índios. Para muitos observadores, se tal denúncia vier a ser feita, deixará o Brasil em situação difícil, não pela veracidade ou não dos aconteci­mentos, mas sobretudo pelo fato de que a questão será julgada por um plenário constituído por grande maioria de países subdesenvolvidos, intransigentes nas questões que afetam grandes coletividades.

Em suas informações, o Ministério do Interior sugere que o Itamarati coloque o problema “à luz da dinâmica das civilizações comparadas, a fim de pôr em evidência a posição favorável do Brasil”. Mas o documento apresenta uma característica de grande honestidade, quando afirma:

A proteção dos Direitos Humanos, no caso em espécie, tem duas faces: a das violências contra os índios e as das garantias constitucionais em relação aos acusados de sua prática. Nesse sentido, o Ministério do Interior muito apreciaria uma réplica incisiva no plano internacional, a eventuais explorações que se façam contra o verdadeiro estado em que se encontra a apuração das violências, num passado não muito próximo, cometidas contra o índio no Brasil.

O QUE HÁ DE VERDADE  

Diariamente crescem as denúncias e defesas com relação ao Serviço de Proteção aos Índios. Para muitos, ele foi o maior culpado por tudo o que houve. Outros acham que o que se está procurando fazer é destruir um dos únicos órgãos que ainda se interessam em defender o índio e sua terra. Enquanto isso, cinco mil índios, das tribos Cinta-Largas, Cajabis, Mamandêuas, Beições e Nhambiquaras, além de outras menores da região do Rio Roosevelt, aguardam aflitos a estiagem.

A situação, segundo Francisco Meirelles, é de gravidade. Poderá ocorrer com estas tribos o mesmo que já ocorreu com outras, como os Xavantes, que estão hoje, praticamente, despojados de suas terras. O Ministério do Interior está agindo de maneira vigorosa e já solicitou o auxílio do 5° Batalhão de Engenharia e Construções, sediado em Porto Velho, no sentido de que detenha o avanço das frentes.

A solução terá que ser estudada de maneira bastante detalhada. Isso porque, quem afirma é ainda o sertanista Francisco Meirelles, o Governo está gerando os seus próprios problemas, na medida em que fornece e possibilita financiamentos e concessões particulares que organizam as frentes, que muitas vezes vão agir [como no caso de uma Aldeia Xavante que foi desalojada de suas terras por uma firma particular de São Paulo que precisava da área para plantio e construções] nas terras do índio, não aparelhando, por outro lado, os responsáveis pela sobrevivência e bem-estar das tribos.

Para resolver definitivamente o problema, a FUNAI deverá criar, brevemente, um novo parque naquela região, nos moldes do que já existe no Xingu.

O ministro está realizando, realmente, um grande trabalho ‒ conclui Francisco Meirelles. ‒ Mas é preciso que fique atento às investidas que sua ação vai desencadear em diversas áreas para que no futuro possa dotar a Fundação de um sistema justo de concessões, em que as terras não permaneçam inexploradas, mas que não seja preciso sacrificar o índio, em favor do desenvolvimento da região em que ele já vivia, feliz, antes do branco. (O CRUZEIRO, N° 19)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 17.09.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmete 

https://www.youtube.com/watch?v=tYkH5YO38IQ&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=40 

Bibliografia 

RICARDO, Fany Pantaleoni. Povos Indígenas no Brasil 2001/2005 – Brasil – São Paulo, SP – Instituto Socioambiental, 2015.

O CRUZEIRO, N° 19. Cinta-Larga ‒ A Morte Como Destino ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ O Cruzeiro, n° 19, 11.05.1968.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Tauari: Couratari spp.

[2]    Terçados: facões.

[3]    Órgão indigenista: FUNAI.

[4]    L200: Camionete Mitsubishi.

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