A Terceira Margem – Parte CCLXXXIV

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  2ª Parte – XXIV  

Utensílios dos Índios da Serra do Norte

Rondônia – III 

Esteiras de palha, couros preparados, redes, jiraus de dormir, catres e camas são modalidades de leito que predominam neste ou naquele estado de cultura social. A presença das primeiras já indica certo adiantamento; os Nambiquara não têm outro leito senão a terra. Dormem sobre o chão limpo. E não tinham a rede, inseparável companheira dos Paresí, seus vizinhos; hoje, que a conhecem, estimam-na infinitamente. No meio deles, para repousar um pouco, à noite, era uma dificuldade; mal armávamos as nossas, surgiam logo três ou quatro candidatos… E, uma vez donos dela, dificilmente nô-la deixavam. Frequentemente éramos despertados por alguns índios, que a fina força, desejavam dormir nas mesmas em que repousávamos. No pouso de Três Buritis, onde estiveram acampados alguns dias conosco, à noite disputavam tosca mesa de pau, em que os encarregados da estação faziam suas refeições; […]

Por que, pois, não se utilizavam da rede? Porque não a conheciam. Trançar fios de algodão e de tucum, trançam eles, de maneira mais que suficiente para confeccionar uma delas; apreciar esse leito dos seus vizinhos, também haveriam de apreciar, como agora acontece. […]

Ora, todos os índios da Serra do Norte dormem diretamente sobre o solo. […] Deitam-se, quase sempre, em decúbito lateral, pondo o antebraço debaixo da cabeça para servir de travesseiro. Os homens raro se sentam diretamente sobre o chão. Em geral, acocoram-se. As mulheres fazem o contrário. Se estão de pé, no fim de alguns instantes, os homens, habitualmente, flexionam uma das pernas sobre a coxa, apoiando o pé respectivo sobre o joelho do outro lado; as mulheres tomam atitude característica, que nunca vi descrita e se acha bem clara nos instantâneos colhidos. Cruzam as coxas, adiantando o membro pelviano direito em simples adução, enquanto colocam o membro pelviano esquerdo mais atrás, em adução forçada. O grande eixo do pé direito, prolongado, corta o do esquerdo quase em ângulo reto. Frequentemente cruzam os braços. […]

Alimentam-se principalmente de produtos agrícolas; é um dos traços paradoxais dessa população o desenvolvimento da agricultura no seu meio atrasado. De um modo geral, pode se dizer que os Nambiquara comem tudo; não respeitam certas espécies animais, como fazem alguns índios. Um mosquito que apanham sobre o corpo, um piolho, um gafanhoto, uma lagartixa que passa correndo, nada escapa. Alguns costumam andar com uma vara para matar as cobras que vão encontrando: assam os ofídios no borralho e comem com prazer a iguaria. Só o estômago das vítimas, depois de assadas, rejeitam. No pouso do Primavera, quando algum tinha fome, corria ao cerrado e voltava trazendo um calango vivo; batia com a cabeça do pequeno sáurio num pau qualquer e atirava-o às cinzas quentes. Depois, com as unhas, rompia o abdômen do animal, retirava o estômago e saboreava o resto.

Um tatu que, noutra ocasião, foi apanhado, mataram, torcendo-lhe o pescoço. Para a caça e para a pesca usam flechas que serão descritas. Aproveitam os ovos do pato do mato fazendo covas rasas no borralho quente e lá os aninhando, depois de revolvidos com um graveto passado por pequeno orifício aberto na casca. A carne de grandes caças: veado, paca, capivara, é primeiro socada no pilão, ou batida entre dois paus, e só depois utilizada. Com as unhas, com os dentes, e às vezes com facas de madeira ou de taquara, cortam grandes bocados. Mal engolem o que lhes vai na boca, logo chupam os dedos, estalando a língua com grande ruído. […]

Bebem o mel sempre misturado com água: hidromel. Comem com prazer os filhotes das abelhas, mergulhados no mel e no própolis, que não rejeitam. Não deixam amadurecer o milho; comem-no assado, ainda verde. A mandioca sofre o mesmo processo, ou então é utilizada em raspa, com que fazem beijus. Por meio de uma fita de embira espremem a raspa, e com o amido fazem alvíssimos bolos. Para confeccionar os beijus, abrem um buraco nas cinzas quentes de uma fogueira, e lá depositam massa de mandioca, alisando o bolo com um pau qualquer e com a mão. Cobrem tudo, depois, com cinzas e brasas; no fim de algum tempo, que não sabemos como estimam, descobrem um grande bolo tostado e cheiroso, um tanto azedo, que não seria desagradável se não tivesse tanta cinza e não fosse preparado por tão desasseado processo… […]

Obtêm fogo pelo atrito de dois bastões, em nada dissemelhantes dos que se acham pelo Brasil afora. A operação é muito mais longa do que se imagina.

O índio começa forrando o chão com uma folha seca; sobre ela deita o ignígeno fixo, que mantém com o pé e com o joelho. Com as mãos espalmadas, imprime ao ignígeno móvel a rotação necessária, apertando-o, ao mesmo tempo, de encontro ao primeiro. O movimento faz descer as mãos ao longo do bastão; o índio recomeça, repondo-as na parte superior. De vez em quando para, rapidamente, e passa a língua sobre a palma que o atrito requeima. No fim de algum tempo, quando o suor já poreja a fronte do operador, surge a centelha, na moinha que se depositou na folha. O processo só difere da operação clássica pela presença da folha protetora. Por trabalhoso os índios o executam a contragosto. Desejando obter um filme, que documentasse todos os seus tempos, dificilmente obtive que um índio fizesse fogo. […]

É fato curioso a falta de utilização dos palmitos por parte dos índios da Serra do Norte. Gabriel Soares (1587) deixou bem expresso que o gentio do litoral não desprezava o gomo folhear das palmeiras: “do olho destas palmeiras se tiram palmitos façanhosos de cinco a seis palmos de comprido e tão grossos como a perna de um homem”. Quanto ao vinho do ananás era bebida corrente; é ainda Soares quem diz: “a natureza deste fruto é quente e úmido, e muito danoso para quem tem ferida ou chaga aberta; os quais ananases sendo verdes são proveitosos para curar chagas com eles, cujo sumo come todo o câncer, e carne podre, do que se aproveita o gentio: e em tanta maneira come esta fruta, que a limpam com as suas cascas a ferrugem das espadas e facas, e tiram com elas as nódoas da roupa ao lavar; de cujo sumo, quando são maduros, os índios fazem vinho, com que se embebedam; para o que colhem mal maduros, por ser mais azeda…

A comida salgada, de nosso uso, não agradava aos índios da serra do Norte. Mais de um rejeitou o prato que lhe destinávamos, dando a entender que o salino sabor o levava a proceder dessa maneira.

O leite condensado foi também, a princípio, recusado; diziam, fazendo uma visagem, que era leite de mulher, e portanto repugnante:

‒  Anungçú!

É preciso conhecer a gula dos índios, sua fome insaciável, seu ‒ animus devorandi ‒ contínuo, persistente, infalível, sincero, para bem compreender o nojo que os conduzia a tal renúncia.

Às crianças dão tudo para comer; do que levam à boca vão sempre migalhas ao pequenino que lhes anda perto ou entre os braços. […] As crianças tomam logo parte na comida; as mulheres comem depois… O que sobra, quando sobra. Aliás, esta é a regra, mesmo entre os índios já civilizados… Mas, em geral, se há abundância, cada qual se serve do que há, quando quer, como quer; a comida é de todos. (ROQUETTE-PINTO)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 19.08.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmetes  

Bibliografia  

ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia ‒ Brasil ‒ Rio, RJ ‒ Companhia Editora Nacional, 1938.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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