A Terceira Margem – Parte CCLXXX

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  2ª Parte – XX  

Salto Utiariti

Utiariti – II  

A Missão de Utiariti  

Os missionários decidiram mudar-se, em 1945, para Utiariti, considerando que o local possuía terras mais férteis, apresentava condições ideais para a construção de uma Pequena Central Hidrelétrica e, além disso, possuía uma Estação Telegráfica instalada pelo Cel Rondon. Apenas um aspecto negativo foi considerado pelos católicos – a presença de uma missão protestante – a “Inland South American Missionary Union” – com quem, logicamente, teriam de concorrer.

A Missão Utiariti dedicava-se especialmente às crianças. Os jovens, na maioria órfãos, eram separados de seus familiares e mantidos em regime de internato ‒ os Jesuítas sabiam que as crianças eram mais suscetíveis à pregação doutrinária do que os adultos. A Missão reuniu crianças de várias etnias tais como a dos Apiaká, Canoeiro, Irantxe (Iranxe), Kaiabi, Nambiquara e Paresí.

Elas aprendiam a língua portuguesa, geografia, história, matemática e religião além de serem iniciadas nas artes e ofícios considerados mais importantes. As meninas eram adestradas no tricô, bordado, corte e costura, e artes culinárias enquanto os meninos nos trabalhos de marcenaria, serraria, pecuária, e mecânica.

O internato estabelecia, portanto, um interessante e salutar convívio interétnico ‒ membros de etnias indígenas hostis eram obrigados a participar de tarefas em conjunto, compartilhar do mesmo dormitório e dividir a mesma mesa durante as refeições, tudo isso mantido sob severa vigilância e rígida disciplina dos membros da Companhia de Jesus.

Depois do Concílio do Vaticano II e da Conferência de Medellín, nos idos de 1970, a Missão foi desativada e os jovens aborígenes retornaram à suas aldeias de origem. Embora alguns encontrassem alguma dificuldade em relação à sua antiga língua nativa, o conhecimento adquirido muito contribuiu para o progresso e absorção de novas tecnologias pelos seus pares.

Entrevista com a Professora Terezinha 

O relato abaixo é uma “adaptação” da entrevista que realizei, em Utiariti, com a Professora Terezinha da Aldeia Nambiquara Três Jacus:

Meu nome é Terezinha, sou descendente da etnia Paresí-Nambiquara ‒ Paresí por parte de mãe e Nambiquara por parte de pai. Acredito que a missão do Coronel Rondon não era somente a de construir as Linhas Telegráficas, mas, sobretudo, de pacificar os indígenas. Os Nambiquara e Paresí, antes da chegada de Rondon, eram inimigos ferrenhos, quando os Nambiquara atacavam uma Aldeia Paresí eles queimavam-lhes as ocas e sequestravam suas mulheres. Os Nambiquara, além disso, eram extremamente arredios a qualquer contato com outros povos nativos e os brancos.

Quando Rondon chegou a Utiariti ele ficou sabendo do local exato, na margem de um pequeno córrego, onde os Nambiquara escondiam suas armas e lá deixou facões e machados. Mais tarde, os Nambiquara vieram até o córrego para banhar-se e avistaram maravilhados aqueles instrumentos, estavam começando a manuseá-los quando surgiu a figura altaneira de Rondon envergando seu impecável uniforme de campanha.

Os Nambiquara instintivamente flecharam o intruso e uma das flechas endereçada a Rondon, felizmente, atingiu o bornal que ele carregava à tiracolo. Os membros da Comissão que acompanhavam Rondon preparavam-se para atirar quando este interveio impedindo-os.

Rondon, então, tranquilamente chamou a atenção dos Nambiquara e usando o facão cortou facilmente um tronco da vegetação marginal. Os indígenas acostumados com seus toscos machados de pedra ficaram encantados com o desempenho da nova ferramenta. Estabelecidos os primeiros contatos, Rondon alertou às tribos rivais que eles não podiam continuar com essas hostilidades porque logo iriam exterminar-se mutuamente. (TEREZINHA)

Entrevista com a Senhora Tertuliana 

O relato abaixo é, também, uma “adaptação” da entrevista que realizei, em Utiariti, com a Senhora Tertuliana da Aldeia Paresí Utiariti:

Quando Rondon chegou à região foi informado que o nome daquelas magníficas pedrarias era Utiariti e que por atrás das quedas habitava um belo e mítico pássaro branco que era a encarnação do espírito de um grande Pajé Paresí. (TERTULIANA)

Estação Telegráfica de Utiariti

Relato Pretérito: Estrada Tapirapuã/Utiariti 

Os muares vindos de Tapirapuã, carregados, chegavam a Juruena “estrondados” ([1]) e só com grande esforço podiam vencer os 100 km que ficam entre esse Rio e a Serra do Norte. Mas quando conseguiam fazer o percurso total, ficavam em condições de não poderem ser utilizados de novo sem um descanso completo de, pelo menos, três meses, durante os quais precisavam ser tratados a milho e alfafa. Para vencer essas dificuldades, adaptou Rondon a estrada às condições necessárias para poder ser trafegada por automóveis, desde Tapirapuã até Utiariti.

Deste ponto em diante melhoram as condições do terreno e conta-se com as pastagens existentes nas capoeiras dos índios e nos Campos Indígenas. (COMÉRCIO)

Salto Utiariti

Relatos Pretéritos do Salto do Utiariti  

Roquette-Pinto (1912)  

Utiariti onde se ergue uma estação, será, em breve, um povoado daquele Sertão bruto. Hoje é colônia de Paresí do grupo Uaimaré, chefiada pelo Major Libânio Koluizôrôcê, meu antigo conhecido do Museu, onde estivera em 1910. Vivem ali, felizes, muitas famílias, trabalhando em roças bem mantidas, tomadas pela mandioca e pelo milho. Come-se lá o que Utiariti produz. Já não é pouco. Brasileiros havia dois homens; tudo mais era Paresí. Milho, para nossas montarias, comprei-o também dos índios. Utiariti é semente forte, sã, de vila ou cidade, que se plantou naquele solo.

O Rio Papagaio passa-lhe ao lado, cheio de claro, para despencar-se, pouco adiante da estação, no mais lindo salto que se possa contemplar na terra.

Numa destas páginas, encontra-se a evocação daquela maravilha, em pálido esboço, que o Sol gravou numa placa fotográfica, alegria e prazer dos meus olhos. Escondida na mágica beleza da queda, que não quero amesquinhar em comparações, porque não sei de outra lindeza igual, vive uma força enorme. A água espirra, em ducha colossal, de 80 metros de altura por 90 de largura; sua energia atinge aos 80 mil cavalos. Uma estreita calha, escavada na rocha quartzífera que a sustenta, deixa passar o arranco do esguicho imenso.

A denominação que os índios dão aos seus médicos sacerdotes, por extensão, serve também para batizar um pequeno gavião [Falcos sparverius] que é totem da tribo.

Na expedição de 1909, chegando ao rio, viram os exploradores sobre uma árvore, ao lado do salto, um pequeno representante do tipo. Para a coleção destinada ao Museu Nacional, foi alvejada ([2]) a avezinha; mas antes que o tiro partisse, o índio Tôloírí, Mathias, influente chefe, e guia da coluna, pediu fosse poupado o Utiarití, protestando que, se o matassem, não poderiam ser felizes, nunca mais, porque daquela espécie de ave provinham os Paresí.

O gavião não morreu. Rondon, em homenagem à crença dos seus auxiliares, deu aquele nome ao Salto do Rio Papagaio.

E foi feliz… (ROQUETTE-PINTO)

Rondon na Cachoeira de Utiariti (FUNAI)

Rondon (1914) 

Dali a 13 km, atingimos outras quedas de muito maior volume e altura ‒ e muitas outras havia nessa região, capazes de fornecer força ilimitada a um parque industrial. Eram esses Saltos do Utiariti de incomparável beleza infelizmente recebeu ali o Sr. Roosevelt telegrama anunciando o falecimento da sobrinha que o acompanhara, e à Mrs. Roosevelt, nas visitas a São Paulo, Uruguai, Argentina e Chile. Havia, a uns 800 m, grande aldeamento de índios, já sob a influência do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). O Chefe da tribo envergava o uniforme de Major e eram estreitas as relações com a Estação Telegráfica que estabelecêramos, porque a esposa do funcionário, uma linda morena, dava aulas às meninas índias. Tinham as quedas de Utiariti o dobro da largura e da altura das de Salto Belo ‒ despenhavam-se as águas de 80 m ‒ a que excediam de muito em beleza e majestade. Cerca de 100 m antes da queda, alargava-se o Rio cuja água, pouco profunda e coroada de espuma se precipitava envolta em névoa que o vento, às vezes, rasgava, deixando entrever a floresta. Ouvia-se, desde muito longe, o ronco atroador das ondas furiosas e tremia o solo da borda do abismo de onde se evolavam ([3]) nuvens volumosas de eterno nevoeiro. A vista, abaixo das quedas, era de rara magnificência. O Rio lançava-se sobre uma parede de rocha, transversal à corrente, mas, à esquerda, uma saliência nessa parede formava uma belíssima catarata em avanço sobre a queda principal. “À exceção do Niágara”, disse o Sr. Roosevelt, “não há na América do Norte catarata que se possa comparar às quedas de Utiariti.” (VIVEIROS)

Annaes da Bibliotheca Nacional n° 35 

Rio de Janeiro, RJ, 1913 

Aborígenes e Ethnographos  

[…] É uma ideia filiada ao “totemismo” ([4]). Em diversas tribos essa variedade de fetichismo pode ser verificada. No “totemismo” o “fetiche”, ao qual o culto é dirigido, em vez de ser um determinado objeto é a espécie à qual esse objeto pertence; assim os Parecis, de Mato Grosso, respeitam como ave sagrada um pequeno gavião [Falco sparverius], que denominam Utiariti. Qualquer ave desta espécie recebe o mesmo culto rudimentar. O vocábulo Utiariti significa propriamente o Mestre, o Padre, o Médico. Em geral a espécie “totem” representa os antepassados do povo. […] (ABNRJ N° 35)

Jornal do Commercio n° 216 ‒ Rio, RJ
Quinta-feira, 05.08.1915 

I – Populações Indígenas Encontradas nos Sertões Mato-Grossenses; Contatos e Relações Estabelecidas Entre elas e a Comissão Rondon; Hábitos e Costumes Indígenas 

[…] A palavra “Pareci”, de que nos servimos para designar estes índios é de invenção portuguesa; o nome que eles mesmo dão à sua nação é “Ariti”, o qual se encontra nos seus cantos, nos títulos dos chefes e, em geral, em todas as instituições de caráter nacional, isto é, naquelas que compreendem o conjunto dos grupos acima indicados. Assim, ao Padre-médico Pareci chamam Uti-Ariti; “Chefe Pareci” e “Língua Pareci” dizem respectivamente Ariti-Amúri e Ariti-Niranê-nê. Como vemos entre eles existe já a separação das funções dos dois poderes fundamentais de toda sociedade organizada: o poder temporal, mandando diretamente sobro as ações dos homens, e o poder espiritual, governando as opiniões e procurando modificar ou regularizar os atos da vida individual e social, pelo conselho deduzido do um sistema de princípios aceitos por todos.

Como nas civilizações antigas, que engendraram a nossa, o sacerdote Pareci é, ao mesmo tempo, médico, e, para exercitar esta parte das suas funções, ele dispõe do vasto arsenal terapêutico tirado de ervas, folhas e raízes, das quais extrai os seus medicamentos ora por infusões, ora por cozimentos, outras vezes por maceração, etc., e os administra conforme os casos ou em aplicações tópicas ou fazendo o doente ingeri-los. Destes remédios o Coronel Rondon coligiu uma lista contendo 52 espécies, de cada uma das quais dá a indicação de como o Utiariti as prepara, como as administra e para que fim. Dos médicos e dos medicamentos, parece muito natural que se passe para as cerimônias que procedem aos falecimentos. Quando ocorre algum falecimento os parentes e amigos do morto, que constituem, por assim dizer, toda a aldeia de que ele fazia parte, pranteiam-no longamente, lamentando-se em voz alta, em coro monótono e plangente. Depois enterram-no no interior da casa em que ele morava, abrindo para isso uma cova bem próxima do lugar em que estava a sua rede: na sepultura colocam os seus arcos, roupas, utensílios diversos e as flechas, previamente quebradas.

As covas são redondas, o que faz crer que o cadáver nelas é posto sentado; enchem-nas de terra, que cai diretamente sobre o corpo; a sepultura fica assinalada por um montinho de terra que se acumula em sua abertura. Mas apesar de terem assim tão presentes esses monumentos de tristeza, os Parecis são muito joviais e nunca perdem um pretexto para dançar e cantar. Nestas ocasiões eles se fazem acompanhar de flautas e do ruído sonoro produzido por uma enfiada de castanhas do piqui que prendem no tornozelo da perna direita, com a qual propositalmente marcam o compasso. […] (JORNAL DO COMMERCIO N° 216)

Dr. Marc e “Galego” no Salto Utiariti

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 13.08.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmetes 

Bibliografia  

ABNRJ N° 35. Aborígenes e Ethnographos – Dr. Roquette Pinto– Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Annaes da Bibliotheca Nacional n° 35, Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional, 1913

COMÉRCIO, Jornal do. Missão Rondon ‒ Brasil ‒ Brasília, DF ‒ Edições Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.

JORNAL DO COMMERCIO N° 216. Populações Indígenas Encontradas nos Sertões Mato-Grossenses; Contatos e Relações Estabelecidas Entre elas e a Comissão Rondon; Hábitos e Costumes Indígenas ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal do Commercio n° 216, 05.08.1915.

ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia ‒ Brasil ‒ Rio, RJ ‒ Companhia Editora Nacional, 1938.

VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta Sua Vida ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Livraria São José, 1958.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

[1]    Estrondados: derruídos.

[2]    Alvejada: apontada como alvo.

[3]    Evolavam: elevam.

[4]    Totemismo: animal, planta ou objeto considerado por certas tribos ou clãs como seu antepassado ou guardião e venerado como símbolo sagrado.