A Terceira Margem – Parte CCLV

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  1ª Parte – XXXV

O canoeiro

Descalvados – II 

Jaime Cibils Buxareo comprou a fazenda do Cambará por 557.572$800 réis [quinhentos e cinquenta e sete contos, quinhentos e setenta e dois mil e oitocentos réis], com uma entrada de 150.012$800, devendo o restante ser pago em letras vencíveis em seis, doze, dezesseis, dezoito, vinte e quatro, vinte e oito e quarenta meses.

Nesse valor estavam incluídas as terras de todas as sesmarias do Major João Carlos Pereira Leite, situadas à margem direita do Rio Paraguai, entre o Rio Jauru, ao Norte, e a lagoa Uberaba ao Sul.

Estavam incluídas também, suas benfeitorias, bem como todo o gado, animais cavalares e animais de criação. O gado foi calculado por Buxareo como tendo entre 150 e 180 mil cabeças. A venda foi efetuada em 11.10.1881.

A sesmaria de Descalvados, então, já pertencente ao argentino Rafael Del Sar, também foi comprada por Jaime Cibils Buxareo pelo valor de 65 contos de réis, pagos pela sesmaria e pelas benfeitorias, equipamentos e instalações da Charqueada. Em seu diário Buxareo diz que o valor pago a Rafael Del Sar já fazia parte do total pago pela Fazenda do Cambará. No entanto a escritura de compra e venda firmada entre eles diz que o valor foi pago à vista ao próprio Del Sar.

Para intermediar a transação e acompanhar o pagamento das prestações, bem como para requerer os autos de medição das terras que havia comprado, junto ao Governo da Província de Mato Grosso, Jaime Cibils Buxareo contratou o desembargador Firmo José de Matos, comerciante de terras em Corumbá, a quem estabeleceu procuração para esse fim. Em seguida Jaime Cibils Buxareo começou a examinar o melhor local para instalar a sua fábrica de extrato de carne.

A opção da margem da lagoa Uberaba, localizada no estremo Sul da fazenda do Cambará, tinha a vantagem de ser um local onde o leito do Rio Paraguai era mais profundo, o que permitiria a atracação de embarcações de maior calado, semelhantes àquelas que se deslocavam pelo Rio Paraguai até Corumbá.

Com isso não seria necessário fazer o transbordo das mercadorias o que reduziria bastante o tempo de viagem até Montevidéu ou Buenos Aires. A outra opção seria a Sesmaria de Descalvados, onde estava localizada a Charqueada construída por Rafael Del Sar, localizada no centro da Fazenda do Cambará, local que permitiria o acesso mais rápido aos rebanhos de gado de todas as demais sesmarias. Após analisar as duas opções, Buxareo decidiu montar a sua fábrica de extrato de carne onde estava a antiga charqueada de Rafael Del Sar.

A partir desse momento toda a antiga fazenda do Cambará passou rapidamente a se chamar Descalvados, porque foi na Sesmaria desse nome que passou a funcionar a sede do novo empreendimento de Jaime Cibils Buxareo. Sua dimensão, de cerca de um milhão de hectares, se encarregaria de consolidar seu nome como o equivalente ao conjunto das sesmarias, conjunto algumas vezes chamado de “domínios do Descalvados”.

Após tomar essa decisão, Buxareo passou a se dedicar à organização do funcionamento da fazenda e da fábrica, da força de trabalho e da administração de seu novo empreendimento. De fato começou a reorganizar toda a estrutura de funcionamento e administração de Descalvados, preparando aquela rústica Charqueada e fazenda para que funcionasse como uma moderna fábrica, como um grande empreendimento capitalista.

Uma das preocupações de Buxareo era com a questão da legalização das terras de Descalvados, até aquele momento, não efetivada. O Major João Carlos Pereira Leite havia feito a medição de forma esparsa, salteando as sesmarias, de tal forma que foram medidas somente aquelas que não eram atingidas pelas enchentes do Pantanal, ficando as demais sesmarias sem medir.

Isso somente seria revelado mais tarde, quando Jaime Cibils Buxareo pediu o reconhecimento dos títulos da totalidade das sesmarias que possuía, reunindo toda a área da antiga Fazenda do Cambará.

Essa situação acabou criando embaraços para Buxareo, como veremos. No entanto Buxareo sabia dessa situação, visto que havia percorrido os campos de Descalvados e calculado a área das terras que estava comprando.

Outro problema detectado por Jaime Cibils Buxareo, ainda em relação às terras da antiga Fazenda do Cambará, foi que essas terras continuavam em direção ao Oeste, do outro lado do Corixo Grande, cruzando a fronteira do Brasil com a Bolívia e adentrando em território boliviano. No território boliviano havia duas sesmarias que pertenciam à Fazenda do Cambará: Salinas e Santa Fé.

Aqui é necessário fazer um curto comentário. O fato de que existiam duas sesmarias em território da Bolívia, que tinham pertencido ao Major João Carlos Pereira Leite, indicava o tamanho das terras daquele membro da antiga oligarquia agrária mato-grossense. Por outro lado, e é isso que mais nos interessa, indica a ausência de demarcação de limites entre os territórios do Brasil e da Bolívia, apesar do acordo para fixação desses limites ter sido ajustado em 1867, ainda durante o período da Guerra do Paraguai. Mais de 15 anos haviam se passado e os limites não tinham sido demarcados.

Isso fazia com que os proprietários brasileiros [e talvez bolivianos, de outro lado] movimentassem os limites de suas terras para o lado, em direção ao território vizinho, na expectativa de que essas terras fossem reconhecidas como suas e, portanto, pertencentes ao Brasil, quando essa região da fronteira fosse demarcada. Com isso, na prática, estariam expandindo o território do Brasil. Como veremos, essa situação irá perdurar até o início do século XX, quando explodirá a Questão do Acre, com todas as consequências dela advindas.

Para Buxareo, no entanto, criou-se uma situação em que as terras de Descalvados eram recortadas pela fronteira do Brasil com a Bolívia. Essa situação viria lhe trazer dissabores, com constantes invasões de ladrões de gado, provenientes do território boliviano.

Para resolver os problemas imediatos que essa situação criou, Jaime Cibils Buxareo logo tratou de entrar em contato com as autoridades bolivianas, com quem discutiu a situação do trânsito de animais de um lado para outro da fronteira, questão importante para seu empreendimento, que dependia fundamentalmente do gado como matéria prima.

Buxareo definiu também que Descalvados seria uma fábrica de carnes conservadas, incorporando os últimos avanços tecnológicos. A fábrica seria movida por máquinas a vapor, que acionariam carpintarias, bombas de água e ferraria, possuindo ainda um ancoradouro próprio.

Quanto à organização da força de trabalho da fábrica e da criação de gado, Buxareo procurou separar as atividades mais rústicas das mais sofisticadas. As primeiras eram confiadas aos peões brasileiros e de outras nacionalidades que viviam na região. As atividades mais sofisticadas seriam confiadas a um administrador contratado em Montevidéu e a membros de sua família.

Da mesma forma, procurou estabelecer uma rotina de trabalho mais coerente com a nova situação da empresa, mais metódica e evitando os vícios mais comuns entre os peões, como a embriaguez. Estabeleceu também um novo mecanismo de fornecimento para os peões e uma nova forma de pagamentos.

Descalvados foi então reconstruída e reorganizada. O rústico Saladeiro de Rafael Del Sar foi transformado em pouco tempo no moderno estabelecimento industrial de Jaime Cibils Buxareo, encravado no Pantanal norte da Província de Mato Grosso, próximo à fronteira com a Bolívia.

O principal produto fabricado em Descalvados era o extrato de carne, segundo a técnica já adotada na Europa pelos anglo-belgas da Liebig, que também possuíam uma fábrica no Uruguai. Além do caldo de carne, a fábrica de Descalvados também passou a produzir derivados do gado, como línguas e couro, que após serem devidamente preparados e acondicionados também eram exportados.

A localização de Descalvados, distante do litoral, longe dos centros fornecedores de produtos manufaturados, obrigou Jaime Cibils Buxareo a estruturar a fábrica de modo a operá-la com a maior autônoma possível, sem depender em larga escala de fornecedores que estavam localizados no litoral, no Prata, ou mesmo na Europa. Levando em consideração essas características, a fábrica contava com todas as máquinas destinadas ao abate do gado e a imediata transformação da carne em caldo, bem como para o aproveitamento de seus derivados e subprodutos, principalmente o couro. Além disso, produzia a própria embalagem que era utilizada no envio dos produtos ao mercado consumidor europeu. Matéria publicitária, veiculada no Rio de Janeiro, em 1891, descrevia assim a fábrica de Descalvados: (CUNHA GARCIA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.07.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmetes   

Bibliografia 

CUNHA GARCIA, Domingos Sávio Da. Território e Negócios na “Era dos Impérios”: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil – Descalvados: uma Fábrica na Fronteira Oeste – Brasil – Brasília, DF – Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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