Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 1ª Parte – XXXII
Fazenda S. João ‒ Descalvados – II
Relatos Pretéritos
03 a 04.01.1914
Rondon
Nesta época do ano, o pantanal, invadido pelas águas que se estendem a perder de vista, terras a dentro, coleando por entre os firmes coroados de verdura, apresenta-se como um lago imenso de superfície serena em que se espelham as belíssimas palmas dos carandás e dos acuris ([1]), de fuste esbelto lançado para o alto. A vida de toda aquela dilatada região concentra-se nesses encantadores refúgios, emergidos do seio da portentosa inundação: na espessura dos seus arvoredos, vagueia o jaguar famulento ([2]), bramindo sob o aguilhão do desejo sexual, que o faz, mais do que nunca, temeroso, enquanto pelas ramadas, saltam os grotescos bugios ou pousam os negros bandos de biguás, em contraste com as garças de penas alvíssimas. O romper do dia, tingindo o céu as terras e o longuíssimo lençol d’água de mil cores cambiantes, pondo nuns lugares sombras profundas e noutros claridades resplandecentes, debruando a brancura láctea de uma nuvem com a vermelhidão mordente de uma brasa, marchetando d’ouro as ondas esmeraldinas da folhagem, arrebata-nos a imaginação e atira-nos para fora do círculo em que vivemos fechados pelo jogo regular dos sentidos e da reflexão. O Sr. Roosevelt extasiava-se diante do maravilhoso espetáculo e declara-nos que nunca em sua vida experimentara emoção igual à que sentia vendo aqueles quadros da natureza da nossa Pátria. (RONDON)
Pereira da Cunha
03.01.1914: No dia seguinte soube que, durante a noite, havíamos parado no lugar denominado Acurizal, onde recebemos o Tenente Vieira de Mello, comandante do destacamento que acompanharia a Expedição, oficial que, além de trazer os cronômetros da Comissão, trouxera também uma carta para mim. Tratava-se, nada mais nada menos, do meu regresso ao Ladário, para assumir o comando da nossa Força Naval, regresso que deveria ser urgente e, se possível, feito na condução que era portadora da carta. Ora, já tendo a lancha regressado à Corumbá, havia dois dias, e não havendo meio de transporte para mim, só me restava um recurso, continuar a viagem até S. Luiz de Cáceres, agora nosso ponto de destino. Assim fiz, e agora subindo o Rio entre suas margens chatas, baixas, ladeadas sempre de renques de “aguapés”, tínhamos a impressão, quase de navegar em uma vereda ([3]) fluída através de uma baixa campina, pois, já tínhamos deixado por nosso bombordo, na margem direita, as montanhas que formam os fundos das grandes Baías de Mandioré ([4]) e de Guaíba, esta tão vasta talvez como a nossa Guanabara, e onde, ao longe, se avistava um dos marcos divisórios dos nossos limites com a Bolívia. Pelas 15h00 ou 16h00, o nosso “Nyoac” atracou à barranca para limpar fogos; a temperatura desse dia, das mais altas que suportamos, era talvez de mais de 40 graus centígrados à sombra, e o Sol, causticante como fogo, elevava essa temperatura a muito mais de 60 graus! Como o navio atracasse, todos nós pensamos em aproveitar a ocasião para caçar; eu, porém, refletidamente considerando a ardência do Sol e a quase nenhuma probabilidade de êxito, deixei-me ficar a bordo, “gozando do fresco” que nos proporcionava o abrigo da coberta. Quase todos saltaram, e até mesmo o louro e vermelho comandante do navio, resolvendo nesse dia cultuar Santo Humberto ([5]), saltou com o Dr. Soledade.
Roosevelt, mal transpôs a prancha que se lançava para o barranco, desistiu e achou que mais valia seguir o bom exemplo do “rusé commandant”. Cerca de cinco minutos depois, o robusto Dr. Soledade com a roupa encharcada de suor, e o Comandante do navio transformado em lagosta cozida, regressaram exaustos e abatidos pelo Sol realmente insuportável. Todos regressaram, enfim, salvo Kermit que, ao que parecia, não sofria as influências da canícula. Já ali estávamos, havia mais de uma hora, e, como estivessem limpos os fogos, e Kermit não aparecesse, fizemos apitar o navio para prevenir de que estávamos prontos. O nosso sinal foi compreendido, e não tardou que víssemos aparecer no barranco o infatigável companheiro, tal como se tivesse saído de um banho, tão encharcadas de suor estavam as suas roupas. Quando Kermit apareceu nós estávamos sentados à mesa do lanche, e qual não foi a nossa surpresa vendo que, desprezando a prancha, o nosso Kermit atirou-se ao Rio para galgar o navio.
Vencendo a distância, aliás curta, que nos separava de terra, o nosso bom companheiro, agora encharcado d’água, sentou-se fleumaticamente à mesa, fez lanche em nossa companhia, e só depois disso foi mudar a roupa. A viagem, nesse trecho de Rio, talvez se tornasse monótona se não fosse a agradável palestra dos bons companheiros, tranquila, porém, não poderia ela ser, porque, como se não bastassem os mosquitos, bandos de mutucas [enormes moscas ouro-negras de ferrão acerado ([6])] perseguiram-nos terríveis e importunos, sem nos dar um instante de sossego, e já era com impaciência e ânsia que esperávamos a hora dos mosquitos, isto é, a noite, único remédio contra as terríveis mutucas. Os fotógrafos não tinham agora muito que fazer, ainda assim, e talvez por isso, conseguiram uma fotografia original. Roosevelt não se conformava com a dormida em rede, e nem mesmo dela se utilizava para repousar ou ler durante o dia, mas, lá uma vez, ou por não ter à mão uma cadeira, ou porque quisesse ensaiar, deitou-se a ler, e foi quanto bastou para ser apanhado pelas objetivas. Outra vez, estando o Ex-presidente dos Estados Unidos, de agulha em punho, a remendar as calças, corri para a minha “Goerz” ([7]), mas não fui bastante feliz para ter essa interessante prova fotográfica das habilidades do notável estadista.
Durante as refeições as nossas palestras continuavam sempre e, certa ocasião, dizendo o nosso hóspede que não dava importância alguma à questão de tarifas, que tanta celeuma sempre levantava, objetei-lhe que, de fato, isso visava os interesses internacionais, o meu interlocutor, porém, que havia julgado a questão sob um ponto de vista mais geral, respondeu-me com esta pergunta:
“acredita que a Inglaterra livre cambista, e a Alemanha protecionista, teriam deixado de atingir o ponto em que estão, se tivessem trocado os sistemas!”.
E, continuando no seu ponto de vista, Roosevelt acrescentou:
“há uma série de questões teoricamente muito importantes, que apaixonam as massas e até os dirigentes, que são mesmo, às vezes, causa de lutas desastradas, e que, na prática, não têm a menor importância, isto é, que a adoção do método preconizado por um ou por outro é de resultado perfeitamente idêntico. O direito de voto às mulheres, por exemplo, é uma questão que tem sido muito debatida em toda a parte, pois bem, nos Estados Unidos, nós temos Estados em que as mulheres têm os mesmos direitos políticos do que o homem, ao passo que, em outros Estados, esses direitos não são a elas extensivos. Ora, não pode haver um melhor campo de observação do que esse, oferecido dentro de um mesmo país, de uma mesma raça e sob a influência, portanto, dos mesmos hábitos e costumes. Pois bem: quer num, quer noutro caso, as mulheres que sabem ter e manter um lar e o fazem igualmente com qualquer dos dois sistemas, ao passo que as transviadas da missão de mães de família, que não sabem e não querem ser procriadoras e educadoras de seus filhos, também não mudam de propósito, quer tenham, quer não tenham os direitos políticos, do homem”. “Um dos problemas mais sérios que eu vejo”, dizia Roosevelt, “é o do capital; e uma das coisas que eu mais admiro em nosso país é a ausência de anarquistas”. […]
Retorqui-lhe dizendo que julgava a inexistência de anarquistas no Brasil proveniente do que imputavam como um dos nossos principais defeitos, isto é, a nossa desmedida liberalidade ou nenhuma ideia de economia.
Com o nosso sistema de gastar tudo, sem pensarmos em juntar reservas, e com a nossa natural generosidade, o capital subdivide-se, espalha-se, e desaparecem a fome e as necessidades prementes, que são os alicerces do anarquismo. Se, em vez disso, fosse a índole do povo a causadora desse fenômeno que, com justa razão, entusiasmava Roosevelt, os maus elementos, uma vez importados, germinariam e progrediriam; entretanto, a planta ruim, transportada para o nosso solo bom e fértil, logo se transforma, pois que não mais mergulha as suas raízes na dura necessidade, lugar, aliás, onde florescem os grandes capitães. De pleno acordo, deixamos a mesa de jantar.
04.01.1914: Só no dia seguinte, cedo, antes das 6 da manhã, nos encontrávamos, ao enfrentar com o nosso “Nyoac” um aldeamento de Guatós, esses grandes canoeiros e caçadores. Um velho e um rapazinho, cada um em sua canoa, correram para o navio assim que o viram parado, e aquele, já viciado pela civilização, e já também conhecedor e escravo desse grande flagelo que é o álcool, pedia instantemente que recebêssemos um remo em troca de meia garrafa de cachaça. Mas, seguindo adiante, deixamos sem cachaça o inconsolável Guató, destinado, como a sua grande tribo, a rápido desaparecimento.
Esses índios são grandes caçadores de onças, e, em tais caçadas, adotam um processo que tem tanto de original quanto de ardiloso e arrojado: aproveitando que o pantanal cheio transforme alguns capões de mato em ilhas, o nosso Guató observa em qual destes terá ficado uma onça ciosa de amores ou de combates, e, conforme a época, de um outro capão julgado próprio, o ardiloso Guató provoca o animal ao combate, ou o atrai aos desejos, imitando o urro que for conveniente; a mulher do índio acompanha-o na perigosa empresa, e quando a onça, iludida pelo arremedo do índio, procura a nado ganhar o capão de onde a chamam, o casal de índios lança-se na canoa ao encontro da fera, e o vasto e deserto pantanal é testemunho desse combate em que, o índio armado de zagaia e a índia de espingarda, ou flecha, nem sempre levam de vencida o nosso valente felino, que tem na água quase que a mesma assombrosa agilidade com que em terra faz prodígios.
Já deixamos para bem longe o pequeno aldeamento de Guatós, subimos sempre, e agora, quase sem aguapés em suas margens, o Rio corre entre imensas campinas cobertas de macega alta onde, de longe em longe, rareiam pequenas ilhas de vegetação mais alta, ou pequenos capões.
Nessas vastas planícies abunda o nosso belo galheiro, o cervo, e já viramos, distante, o majestoso galopar desse garboso animal; no dia seguinte, porém, tão próximos apareceram três desses cervos que, sem refletir na maldade e só ouvindo o instinto de caçador, corri ao meu mosquetão Mauser e alvejei o mais belo exemplar.
O nosso vaporzinho trepidava bastante, o que muito dificultou a precisão do tiro, e, por isso ou porque tivesse mal visado, o caso é que, infelizmente, errei o tiro, e os três cervos, galopando velozes e soberbos, desapareceram na campina imensa. (CUNHA)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.07.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
- Filmetes
- https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU
- https://www.youtube.com/watch?v=GPT99KsJjD8&t=38s
- https://www.youtube.com/watch?v=z6sVrma9a24
- https://www.youtube.com/watch?v=zlPfAYWRGpA&t=18s
Bibliografia
CUNHA, Comandante Heitor Xavier Pereira da. Viagens e Caçadas em Mato Grosso: Três Semanas em Companhia de Th. Roosevelt – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Livraria Francisco Alves, 1922.
RONDON, Cândido Mariano da Silva. Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição Roosevelt-Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] O Acuri (Scheelea phalerata) é uma palmeira da família Arecaceae também conhecido como Bacuri, Auacuri , Cabeçudo , Coqueiro-acuri , Guacuri e Ganguri.
[2] Famulento: esfomeado.
[3] Vereda: trilha.
[4] Mandioré: lagoa de 25 km de comprimento por 10,5 km de largura com uma área de 152 km² dos quais 90 pertencem à Bolívia (município de Puerto Quijarro) e 62 ao Brasil (município de Corumbá).
[5] Santo Humberto: patrono dos caçadores.
[6] Acerado: aguçado.
[7] A C. P. Goerz, fundada em 1886, por Carl Paul Goerz, produzia instrumentos matemáticos, e a partir de 1887, câmeras fotográficas.