Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 1ª Parte – XVII
Forte Olimpo ‒ Forte Coimbra ‒ III
Em ofício de 02.10.1798, Ricardo Franco informa ao Governador:
A obra deste Forte estaria mais adiantada a não ser falta de trabalhadores próprios, tendo já assentado o portão principal, e dado princípio ao parapeito, que deve ultimar toda a Tenalha ([1]) que olha para Poente e domina pelo alto do vizinho Monte: já está respeitável; e se ao concluir-se será a necessária e indispensável segurança da guarnição deste Presídio; que encurralada na antiga e fraquíssima estacada corre evidente perigo, pois duas horas não poderiam estas delgadas estacas resistir a um ataque vigoroso de duas peças de maior alcance do que a de curtíssimo porte deste Presídio, ao mesmo passo que no novo Forte; inda ao alcance de mosquete, enquanto se não abatessem as muralhas só por um lado acessíveis se podia ofender e resistir muito.
Continua dizendo que, quando os espanhóis vierem ao presídio, dir-lhes-á que tais obras são feitas por causa dos Guaicurus, com o fim de impedir-lhes as correrias que fazem para cometer roubos e traições. Ricardo Franco, não obstante a carência de operários, trabalhava ativamente na construção do Forte, pois sabia que os castelhanos de Assunção, alarmados do que se passava em Coimbra e Miranda, concertavam medidas para precaver-se delas ou contra-arrestá-las ([2]).
Denota Ricardo Franco certa apreensão, ao informar ao Capitão-general, em ofício de 22.12.1798, da estada de Lázaro de Ribera no Forte de Concepción, ao Norte do Ipané, consoante aviso que lhe trouxeram índios daquelas proximidades. Com o ofício de 05.08.1799, Ricardo Franco envia ao Capitão-general os mapas de efetivos das três guarnições e da população da fronteira. Anexa ainda os seguintes dizeres a respeito das obras e da importância militar do Forte e dos recursos que ele precisa armazenar para torná-lo inexpugnável:
As obras deste novo Forte de Coimbra, nos passados seis meses, apenas se trabalhou nelas pouco mais de três, pelas friagens chuvosas que ouve, e pela falta de gente pois quando estão fora deste Presídio, duas condutas ficamos na inação, contudo, a muralha que forma seu recinto, está quase fechada, faltando só uma Face Flanco, e parte dessa cortina, tudo de extensão de quinze braças ([3]), pouco dos parapeitos do resto da mais obra, a qual, acomodando e eu atendendo à desigualdade deste monstruoso terreno, tem alguma diferença de configuração da planta que já remeti a V. Exª pelo que devo fazer outra, como na realidade ficar esta Praça, quando se concluir.
Esta obra é maior e mais forte do que se pensa, faltando-lhe só sua mais grossa Artilharia, e mantimento dobrado para seis meses: para se fazer respeitável a qualquer atentado dos nossos vizinhos.
Quanto ao ano de 1800, a única notícia que encontrei sobre as obras do Forte é a que consigna RFAS ao Capitão-general em ofício de 31 de maio, pelo qual se vem a conhecer que as construções prosseguiam com as dificuldades tais e tais, que enumera, faltando ainda 40 palmos de muralha, sem falar talvez as da gola, à retaguarda, como se verá a seguir.
Em 1801, ano do ataque de Lázaro de Ribera, parece quase nada se fez. Nenhuma informação encontrei a esse respeito no Arquivo Histórico de Cuiabá. Levando em conta que Ricardo Franco trabalhava sempre com reduzido pessoal obreiro e, às vezes, fazendo ele mesmo o ofício de pedreiro e carpinteiro e, além de lutar com a falta de ferramentas e ferragens, de subsistência, etc., a progressão das obras teria sido lenta e penosa. Dá-nos ideia dessas dificuldades e da assombrosa dedicação e atividade do grande soldado este tópico do ofício de 27.02.1802 de Caetano Pinto ao Ministro do Reino:
O Tenente-Coronel Ricardo Franco foi quem me propôs esta obra, foi o primeiro que conheceu a sua necessidade, e o que tem continuado até o ponto em que se acha, com a mesma guarnição, e quase sem despesa da Real Fazenda, servindo ele de Arquiteto, de Feitor, de Mestre Pedreiro e Carpinteiro.
O melhor depoimento, porém, quanto à iniciativa das obras, a carência de meios e esforços para sua realização, é o que nos dá, anos depois, um colega, colaborador e sucessor de Ricardo Franco no Comando do Forte:
[…] logo que foi comandada [a fronteira] pelo Tenente-Coronel Ricardo Franco, que conheceu a inutilidade daquela estacada incapaz de defesa, e toda dominada pela montanha contígua, propôs ao sexto General, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, o projeto de novo Forte na extremidade da mesma montanha, que abeira o Rio; porém não permitindo o estado já decadente da Província, empreender esta obra, se resolveu o próprio Comandante fazer o que pudesse com a sua mesma guarnição, e sem despesa da Real Fazenda, mais que em algumas ferramentas, e um pouco de pano de algodão já servido em sacos que conduz do Cuiabá os mantimentos para os soldados fazerem camisas e calças, que consumiam no penoso serviço da pedra e barro de que a obra carecia, animando-os igualmente com alguma aguardente e fumo de sua própria algibeira ([4]), sendo mais notável a arte que teve em criar pedreiros e carpinteiros de pessoas que não possuíam tais ofícios. Quanto pode a industriosa necessidade! […] Esta obra foi começada em novembro de 1797, entrando na sua construção pedra e barro, únicos materiais que o local oferecia; e pelo acima exposto se conhece quanto devia ser lento o seu andamento, de maneira que em 1801 ainda restava a fechar parte do recinto, faltando a cortina da tenalha da montanha, e sem que houvesse cômodo ou habitação alguma no seu recinto. Neste estado se achava o novo Forte, quando os espanhóis em setembro do mesmo ano, empreenderam surpreender o Presídio, pois ainda se ignorava o rompimento entre as duas nações; porém, sendo o Comandante Ricardo avisado pelos Guaicurus dos preparativos de guerra que os espanhóis faziam, imediatamente abandonou a estacada, passando-se com a guarnição, e o diminuto número de petrechos, para o incompleto recinto: esta resolução transtornou completamente os planos do General espanhol D. Lázaro de Ribera, que esperava encontrá-los dentro da estacada, segundo as informações que ele havia obtido pelo Frade Espinoza, que dois meses antes tinha estado de visita em Coimbra, para onde tinha sido enviado como espião, a fim de reconhecer o estado do Forte, a força da guarnição, e se ela existia ([5]) na estacada.
Por este fidedigno testemunho, de quem conviveu e trabalhou com Ricardo Franco na construção do Forte, se vem a saber que, nem mesmo em setembro de 1801, se achava completa a ossatura externa do Forte. Faltava-lhe a gola ou cortina à retaguarda, que seria, nesse tempo, como foi em 1864, o ponto preferido para o assalto. Quanto ao recinto, nada havia nele, nem uma só coberta; nem se havia começado a desobstrução da rocha para as construções internas.
A guarnição alojava-se ainda no velho Presídio. Foi nos dias 14 e 15 e na manhã de 16.09.1801 que Ricardo Franco, ao saber da aproximação da frota castelhana, mudou, às pressas, o armamento, o material prestante e o pessoal para o interior do Forte. Homens e material, tudo ficou ali ao relento. É o que nos diz o valoroso soldado em sua parte de combate de 1° de outubro:
esteve toda esta guarnição, nos nove dias de ataque, no maior incômodo, e no meio do terreno, sem casa, sem abrigo…
Incômodos esses agravados
por causa de um grande vento Norte e não menor tempestade que houve nos dias 23 e 24.
Essas eram as condições materiais do Forte ao ser atacado por Lázaro de Ribera a 16.09.1801. Veremos depois que não menos desfavoráveis – irrisórias até ‒ eram as condições da artilharia, da munição de guerra e de boca e do efetivo da guarnição; apenas sobrava intrepidez no destemido Cmt e nos poucos homens que lhe foram fiéis. Da análise do desenho do Forte tiram-se as seguintes conclusões: é um polígono irregular, atenalhado e redentado ([6]) na frente e à esquerda, e abaluartado ([7]) à direita e à retaguarda. Um pronunciado saliente, como ponta de lança, justapõe os dois baluartes morro acima. Os redentes beiravam o Rio e as rampas rochosas de onde não se podia esperar assalto. Os baluartes, pelo contrário, olhavam as encostas do morro, únicas direções vulneráveis a investidas e assaltos inimigos.
O desenho faz ver um fosso na frente abaluartada. Todavia, esse fosso não chegou a ser construído. Seria difícil cavá-lo na rocha viva, e, em Coimbra não ficou vestígio algum de que ele fosse realizado. Para supri-lo, nessa frente ao menos, as muralhas teriam sido mais altas, variando de 3,30 e 5,50 m de altura. […] diz Ricardo Franco em sua Memória […]:
Tem as suas muralhas dez palmos ([8]) de grosso, e de quinze (59) até vinte cinco palmos (59) de alto, sobre desigual terreno e áspera subida; pelos dois lados edificados sobre o angulo reto que este monte faz no Paraguai, e uma rocha cortada a prumo, e pelos outros dois mais praticáveis, cercado por um escavado recinto de áspera penedia, na áspera escarpa e descida deste íngreme monte […].
Em tais condições de local e de penúria de recursos, fez o construtor o que pôde. Adaptou a obra, tática e arquitetonicamente, ao terreno. Objeta-se que o recinto se apresentava, à maneira de um alvo, às vistas do inimigo e aos tiros diretos do canhão. Grave foi esse defeito, inclusive na forma atual do Forte. […]
Os atiradores, nas seteiras do baluarte posterior, ficavam expostos, pelas costas, aos disparos diretos partidos do Rio ou do morro fronteiro. Para corrigir esses defeitos seria necessário fossem construídos no interior do Forte três planos ou pavimentos providos de anteparos murados, não só para desenfiamento e proteção das comunicações internas, como para cobrirem as barbetas ([9]) e banquetas ([10]) escalonadas em altura. […]
Pelo estado atual do Forte, todavia, pode concluir-se que o recinto fora disposto, da frente para a retaguarda, em três pavimentos, ficando os alojamentos do pessoal e a administração no primeiro plano à frente, e, ainda assim, visíveis aos que passavam no Rio. Os outros dois pavimentos, de 2ª e 3ª ordem, estariam protegidos por anteparos de alvenaria, atrás dos quais haveria barbetas e pátios. Numa depressão do segundo plano, à esquerda, vê-se o lugar para o paiol de pólvora a prova de bomba. O portão principal dava para a direita, onde ficaria a ponte sobre o fosso, se este tivesse existido. Outro portão secundário, ao centro da face esquerda, permitia saída para esse lado. Não há indicação de saída pela gola ([11]) do Forte, à retaguarda. […]
Registro de Ordens do Forte
Tendo em 22 ou 24.08.1801, alguns índios Guaicurus participado, que os Espanhóis vinham em marcha para atacar esta fronteira, fiz os avisos necessários para a Capital, e pedi socorro de gente e mantimento a Cuiabá.
Em 29.08.1801, mandei alguns Guaicurus de confiança até Bourbon para verificar esta notícia, e tardando estes índios mais do que deviam, mandei no dia 12.09.1801, o Cabo Antônio Baptista em duas canoas, e mais três dragões, até os índios Cadiéus, vizinhos de Bourbon, a ver se davam alguma notícia dos outros, ou da guerra que nos tinham anunciado.
Pelas 03h00 desse dia 12 para o dia 13.09.1801, defronte da Boca da Baía Negra, indo as ditas canoas em descuido, navegando pela força da corrente [como de costume de noite], viram as embarcações espanholas, ancoradas; foram logo cercados por vinte pequenas canoas espanholas, gritando “entrega Portugueses” e que os pôs em algum embaraço, por irem em descuido. O dragão Manoel Correa de Mello deu seis tiros nas ditas canoinhas, que as pôs em desordem, causando-lhes algumas mortes; e as nossas se retiraram. No dia 14.09.1801, chegaram a Coimbra com esta notícia, nesse dia, e no dia 15.09.1801, nos mudamos para o Forte, onde não havia ainda casa alguma, e no Armazém apenas meio saco de farinha, um saco de arroz, e coisa de 5 libras ([12]) de toucinho. (MELLO)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 14.06.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Filmete: https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU
Bibliografia
MELLO, Raul Silveira de. História do Forte de Coimbra – Brasil –Campo Grande, MS – IHGMS, 2014.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Tenalha: pequena obra de duas faces de uma Fortaleza que forma um ângulo reentrante para o lado do campo.
[2] Contra-arrestá-las: contra-atacá-las.
[3] 15 Braças = 33 m.
[4] Sua própria algibeira: seu próprio bolso.
[5] Se ela existia: se encontrava.
[6] Redente: é uma obra de fortificação com duas faces, sem flancos, projetada da linha da murada formando um ângulo saliente voltado para o lado de um possível ataque.
[7] Baluarte: construção situada nas esquinas e avançada em relação à estrutura principal de uma fortificação.
[8] Dez palmos: 2,2 m; Quinze: 3,3 m; Vinte cinco palmos: 5,5 m.
[9] Barbeta ou barbete: é uma plataforma de uma fortificação onde estão instaladas bocas de fogo que disparam por cima do parapeito.
[10] Banquetas: degrau ao longo da parte interna das muralhas, sobre o qual os combatentes atiram contra o inimigo, devidamente protegidos.
[11] Gola: espaço compreendido entre as extremidades dos lados de um ângulo saliente, nas fortificações.
[12] 5 libras: 2,26 quilos.